sábado, 29 de outubro de 2022

Ford Madox Ford, Some Do Not

O romance Some Do Not, publicado em 1924, é o primeiro da tetralogia Parade’s End, de Ford Madox Ford, um dos mais importantes escritores modernistas ingleses. Aparentemente, a tetralogia teria como objecto a primeira guerra mundial. É reconhecidamente um dos grandes monumentos literários provenientes da experiência traumática desse acontecimento que levou à morte uma geração de jovens europeus. Contudo, pelo menos no primeiro romance, a guerra é um assunto distante, que por vezes aflora não nela mesma, mas nas consciências das personagens. O que está em jogo, na trama narrativa, será quase um exercício filosófico, não porque o romance tenha um carácter especulativo e aborde problemas teóricos, mas porque é, na verdade, uma experiência de pensamento, como o são a Alegoria da Caverna, de Platão, ou a Hipótese do Génio Maligno, de Descartes. Não tem, todavia, finalidade de construção conceptual, como as referidas experiências, mas existencial. Apesar de marcadamente orientada para a captura da vida no seu fluir, esta experiência de pensamento não deixa de partilhar com as referidas uma preocupação com a distinção entre aparência e realidade, um cuidado com a verdade. Trata-se de transplantar um homem do século XVIII, Christopher Tietjens para as primeiras décadas do século XX. Não que se esteja perante um romance de ficção científica, em que se faz acordar alguém nascido num passado já remoto num tempo presente. O caso é outro. Christopher Tietjens, o último tory, é um homem cujos valores se pautam pela solidez moral dos gentlemen século XVIII. Pertence a uma família de ricos terratenentes, chegada a Inglaterra com Guilherme de Orange, em finais do século XVII, na sequência da Revolução Gloriosa.

O romance divide-se em duas partes. Na primeira, centra-se num fim-de-semana que vai ter importantes consequências tanto para Christopher como para o seu amigo Vincent Macmaster, um escocês, pertencente a famílias pobres. Ambos foram colegas de faculdade e trabalham agora como estatísticos para o governo de Inglaterra, embora o escocês tenha pretensões em transformar-se em crítico de arte, tendo acabado de publicar um pequeno livro sobre o pintor Dante Gabriel Rossetti, um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, um movimento artístico do século XIX. O primeiro parágrafo da obra é um retrato do mundo ordenado anterior à primeira grande guerra: Os dois jovens – ambos pertenciam ao funcionalismo público inglês – iam sentados numa carruagem de comboio perfeitamente equipada. As correias de couro das janelas eram virginalmente novas; os espelhos debaixo dos porta-bagagens estavam tão imaculados como se tivessem reflectido muito poucas coisas, o tapete acolchoado, de formas regulares, mas luxuosas, era escarlate e amarelo, com pequenos e intrincados motivos de dragão, desenhado por um geómetra de Colónia. O compartimento cheirava leve e higienicamente a verniz; o comboio circulava com tanta suavidade – recordou Tietjens ter pensado – quanto a dos títulos do tesouro da coroa britânica. Viajava depressa, mas se tivesse balançado ou saltado ao passar sobre as juntas dos carris, salvo na curva de Tonbridge ou na mudança de agulhas em Ashford, onde eram permitidas essas excentricidades, Tietjens estava seguro de que Macmaster teria escrito à companhia. Talvez mesmo ao Times. É este mundo de uma ordem geométrica e de uma moral rigorosa que se encontra já em diluição.

É no campo da sexualidade que emerge a dissolução dos valores e da velha ordem do império britânico. Tietjens mostra a Macmaster uma carta de Sylvia Tietjens, uma católica, que tinha trocado o marido, o próprio Christopher, por um major, do qual se fartou em pouco tempo. Pedia para regressar a casa. Durante o fim-de-semana, Macmaster conhece Mrs. Duchemin, também ela escocesa, mulher de um clérigo enlouquecido, proprietário de quadros pré-rafaelitas, com a qual inicia um caso que conduzirá ao casamento, no dia a seguir ao óbito do senhor Duchemin. Também Christopher trava conhecimento com a jovem sufragista Valentina Wannop, filha de um casal amigo do pai, e com a qual estabelecerá uma relação amorosa, mas nunca consumada durante o tempo desta primeira narrativa. É neste ambiente, já marcadamente sexualizado, que Christopher vai pôr à prova os seus sólidos princípios de cavalheiro, tanto na aceitação do retorno da mulher, como na preocupação com a reputação dela. Um cavalheiro não se divorcia. Se a mulher quiser o divórcio, concedê-lo-á, mas não dará qualquer passo que possa prejudicar a imagem da mulher, uma rica e, aparentemente, frívola socialite, sexualmente promíscua, que o odeia. Têm um filho, um acaso, embora não seja claro se Christopher é ou não o pai da criança, embora as provas existentes sejam fortes a favor da sua paternidade. Graham Greene considera que Sylvia possui o pior carácter do romance moderno.

À hipersexualização do ambiente, pois a promiscuidade da mulher é apenas um sintoma do espírito do tempo, responde Christopher com o seu desejo de ser um santo anglicano. À libertinagem reinante, responde: Eu defendo a monogamia e a castidade. E que não se fale mais nisso. Não é, todavia, esta defesa da castidade e da monogamia que leva a que a mulher, Sylvia, o odeie. É o facto de ele ser tão sólido e de estar de tal maneira fundado nos seus valores de pertença a uma velha família terratenente que a deixam fora dela. Ainda por cima, ele é servido por uma superior inteligência, com capacidade de não apenas deslindar os enigmas do presente como de prever o futuro, não por possuir qualquer dom profético, mas pela capacidade de cálculos das consequências das coisas que ocorrem. Esta segurança torna-o, num primeiro momento, insuportável para a mulher. Contudo, na segunda parte do romance, passada já bem dentro da grande guerra, quando Tietjens está em casa, depois de uma recuperação de um ferimento de guerra, no qual perdeu parte substancial da memória, de tal como modo que se obriga a ler a enciclopédia britânica, como modo de recuperação da informação perdida, o autor torna manifesto que, apesar de alimentar uma espécie de conspiração contra a honra do marido – e honra aqui tem a ver com as contas em ordem e um comportamento sexual exemplar –, Sylvia está apaixonada por Christopher, na verdade o único homem verdadeiramente substancial que conhece, ela que tem um lato conhecimento dos homens na intimidade.

É a desadequação entre o sentimento manifesto e o sentimento real de Sylvia ou, ainda de uma forma mais clara, entre a imagem que foi criada à volta de Christopher, de um homem devasso, valdevinos, com filhos ilegítimos, à beira da falência, por ser um gastador inveterado, coisa acreditada pelo próprio pai, e a sua realidade de homem moralmente imaculado, contido nas despesas, um cavalheiro em todos os sentidos da palavra. Assim como o ódio de Sylvia esconde uma intensa paixão pelo marido, também a má reputação mascara a verdade de alguém que vive segundo exigentes preceitos de rectidão, de tal modo que o amor que se acendeu entre ele e Valentina permanece por consumar. Entre a aparência e a realidade vai uma longa distância. A verdade é uma outra coisa que não aquilo que é manifesto. Ora, é a solidez, deste último tory, ancorada no passado, num romântico feudalismo, como notou Julian Barnes, que lhe permite, sem exaltações, viver num mundo marcado pela duplicidade, pela mentira, pela libertinagem e pela dissolução daqueles valores sólidos que fizeram da Inglaterra a primeira potência mundial e que se manifestavam inclusive na suavidade com que os comboios circulavam. É ainda essa solidez moral que leva Christopher a voltar para a frente de combate, enquanto facilmente poderia ficar em segurança numa repartição em Londres. Some Do Not significa, na prática, que nem todos são iguais, nem todos se dobram ao espírito do tempo. Por isso, o primeiro romance termina com a partida de Tietjens para França, para a frente de combate.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Dinis Machado, O que diz Molero

Publicado em 1977, O que diz Molero, romance de Dinis Machado, foi quase imediatamente, apetece dizer, um grande sucesso de bilheteira. Não apenas porque há na sua construção qualquer coisa de teatral, o que permitiu uma posterior adaptação à representação no palco, mas também porque há um ritmo cinematográfico exuberante, por vezes sufocante, uma sucessão de imagens vertiginosa, transformadas em texto, de onde os pontos finais estão ausentes durante largos excertos textuais, uma técnica que precipita o leitor a acompanhar a velocidade da produção imagística. Luís Pacheco refere “uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos, mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.” Por outro lado, Eduardo Lourenço sublinha estar-se perante o indício de novas relações entre a literatura contemporânea e uma nova cultura que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos decisivos. Tese, na verdade, bastante discutível, pois não são poucas as passagens textuais que ecoam temáticas que naqueles dias obsidiavam o mundo literário académico em Portugal.

O romance, como uma das suas marcas de modernidade, não apresenta um plot, mas não deixa de ser todo ele movido por uma intriga. Existem nele várias camadas diegéticas. Uma primeira camada é a conversa entre Austin e Mister Deluxe, e que o primeiro vai contando ao segundo, entrecortado por comentários de ambos, sobre o relatório de Molero, a segunda camada narrativa, referente a um rapaz nunca identificado pelo nome, sobre a vida deste, o que terá feito, dito, ouvido, as pessoas com que se terá relacionado, etc., uma terceira camada narrativa, na qual não apenas as palavras como as acções são textualidade. Apesar de não haver plot, o rapaz não deixa de ser um herói – ou, se se preferir, um anti-herói – de uma intriga em que a vida é tomada como um processo de descoberta existencial, uma procura sobre quem é, uma espécie de questionamento metafísico, que em momento algum encontra resposta, pois de princípio ao fim não lhe é dado um nome, nunca deixando de ser o rapaz. Há, contudo, nesta caracterização um excesso de informação sobre essa identidade, pois alia a pertença ao género masculino a uma adolescência – consignada, precisamente, na denominação o rapaz – nunca ultrapassada, já que é sempre desse modo que Molero o refere no relatório. Apesar das peripécias, das viagens e dos amores, ele nunca é o homem.

Alguma crítica refere estar-se perante a fragmentação da subjectividade, que o próprio texto, com a sua natureza fragmentária acentua, apesar de ter, no nível intermédio, um relatório, o que suporia uma coerência, seja jornalística ou detectivesca. O facto de nunca se perceber quem são, na verdade, Austin, Mister Deluxe e Molero, e o modo como é referido, nos diversos níveis narrativos, o rapaz acentuariam essa natureza fragmentária das identidades, que eventualmente se poderiam sobrepor. A questão, porém, é que mais que uma subjectividade fragmentária, se está perante uma subjectividade que, na verdade, nunca amadureceu, nunca entrou na idade adulta, nunca saiu da menoridade culpada. E isto será o mais notável, no aspecto da crítica cultural, que o romance de Dinis Machado torna manifesto. Apesar de uma hiperinflação cultural presente no texto. Serão poucos os lugares comuns do mundo cultural português dos anos setenta do século passado que não estejam referidos no romance e referenciados em o rapaz. Apesar disso, ele não deixa de ser o rapaz. Não se está perante a fragmentação pessoana do sujeito, tão pouco perante uma visão freudiana de um ego em negociação constante com um id ameaçador e um superego veiculador da ordem, mas de um eu eternamente adolescente.

A obra é uma máquina de produção mitológica e são esses mitos que impedem a transição de o rapaz para o homem. Está-se perante duas fontes mitológicas essenciais, as da pequena Lisboa e as da grande Lisboa. Por pequena Lisboa, denota-se o bairro popular. São os mitos localizados numa cultura específica, com os seus heróis e vilões, onde a vida exuberante se estrutura e ganha sentido. São os mitos que constituem o lastro de o rapaz. Por grande Lisboa, significa-se um certo meio cultural lisboeta dominante nos anos setenta, no pós-revolução, mas que viria já de antes. São, agora, os mitos das viagens, do cinema, da cultura, da filosofia, da literatura, do amor ou do sexo, para não falar das mitologias new age emergentes na parte final do livro, mas como se tudo se passasse numa dimensão onírica, mesmo quando se fazem viagens, se escrevem livros, etc. O jornalismo ou a literatura policial fazem a mediação que permite a fusão entre a pequena e a grande Lisboa, entre ambas as mitologias. A sensação que daí resulta, e que contamina o leitor, é que nunca nada é consumado realmente. Viaja-se como se não se viajasse, citam-se autores que não se compreenderam ou não se leram. Na verdade, um exercício de pura adolescência. As mitologias criadas por Dinis Machado, apesar de divertidas, não são meras diversões. São retratos impiedosos de uma certa pequenez – menoridade – envolvida no artifício da referência e da citação, mediadas pela cultura jornalística ou pela literatura policial.

O relatório de Molero, ao qual nunca se tem acesso, a não ser pelos comentários e diálogos entre Austin e Mister Deluxe, com a sua natureza fragmentária, é o relato irónico de um mundo cultural lisboeta que transformava a boémia e a referência superficial aos objectos culturais em voga num mito de alta cultura. O romance entretece uma analogia entre a sua estrutura romanesca e a situação desse mundo cultural da capital. Assim como Austin, Mister Deluxe e o próprio Molero, apesar da sua peregrinação investigativa, nunca conseguem chegar à essência de o rapaz, também esse mundo cultural e boémio lisboeta, apesar da frequência cinematográfica e da referenciação superlativa aos objectos culturais, nunca toca de forma séria nessa alta cultura, que diz admirar, mas que não passa de tema de conversa, entre dois copos, ou de técnica de engate, pois o desejo tem os seus imperativos e há quem só se dispa se for embalado por uma conversa de alto valor cultural. Os lugares-comuns em que o romance abunda são uma estratégia narrativa para tornar patente o irrisório, senão a impotência, dessa comunidade cultural que se acharia a vanguarda espiritual da nação. Na verdade, uma comunidade de velhos adolescentes, mergulhados na menoridade, de que são, eles próprios, culpados, mas parafrasear, mais uma vez, Kant. Um fogo-de-artifício para mostrar que, apesar da seriedade de Pombal, o Iluminismo nunca terá penetrado seriamente por aqui, para tornar manifesto que aqueles que parecem herdeiros desse século das Luzes são, na verdade e todos juntos, uma rapaziada. 

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Michel Houellebecq, Serotonina

Tornou-se um hábito surgir uma espécie de guerra cultural sempre que Michel Houellebecq publica um romance. Serotonina, de 2019, não foi excepção. Em muitas das recensões que se encontram disponíveis na internet parece haver uma maior preocupação em atacar ou defender o escritor do que enfrentar-se com a obra. Fica-se sempre com a suspeita que o que dinamiza os textos são aspectos ideológicos que se presume serem os do próprio autor. Há uma obsessão em identificar narrador e autor. Para além de um certo fogo-de-artifício com uso de expressões que infringem os ditames do denominado politicamente correcto, tais como afirmações misóginas, um elogio a Franco como criador do turismo de massas, embora claramente irónico, considerações xenófobas relativamente a ingleses, holandeses e japoneses, a consideração, pelo narrador, da possibilidade de assassinar uma criança para recuperação de uma amante, ou o ódio visceral à proibição de fumar, a obra sublinha, não muito sub-repticiamente, a tensão entre tradição e modernidade. É uma crítica rude dos valores cristalizados pelo Iluminismo.

Dois núcleos centrais do romance questionam a livre-escolha. Por um lado, na vida sexual; por outro, na vida económica. Em ambas, a liberdade de escolher conduz a um beco sem saída. Aquilo que está em jogo é sempre a tensão entre a existência regulada e a vida deixada ao livre-arbítrio dos indivíduos ou ao jogo livre das forças do mercado. De modo mais preciso, entre a menoridade e a maioridade, para usar o tema do ensaio de Kant sobre o Iluminismo. O que Houellebecq põe a nu é a incapacidade de os indivíduos gerirem a sua própria existência, quando libertos de tutores e entregues a si. O que se manifesta é a falência de cada um em fazer uso da sua razão para dirigir a existência. Camille representava para o narrador, Florent-Claude Labrouste, a mulher com que gostaria de casar, mas a sua liberdade de escolha, a quebra de um compromisso tácito – na verdade, de uma promessa não formulada – levou a que ela se desligasse dele. Na base, um caso de sexo, pouco mais que esporádico. Se se olhar a vida sexual das pessoas que rodeiam Labrouste, a sensação é sempre a mesma. A nossa liberdade sexual é impotente para gerar a felicidade e dar um fim à existência. Esta liberdade não passa de uma licença para suspender os contratos amorosos, o compromisso com o outro e com a vida. No romance, nota-se a nostalgia de um tempo em que o livre-arbítrio dos indivíduos não era sinónimo de licença nos costumes. Nostalgia de um tempo, onde a força das instituições – esses artifícios apolíneos – colmatava a fraqueza dos indivíduos perante os apelos e injunções de Diónisos. A abertura infinita das possibilidades, das possibilidades de busca de objectos para consumação do prazer sexual, é um mal, um gerador de equívocos e de vidas falhadas.

Por outros motivos, também os produtores de leite da Normandia estão em guerra com as instituições que, no lugar de superintenderem e regularem as relações económicas, procurando assegurar a rentabilidade do mundo rural, servem apenas para criar uma legislação que desregulamenta a vida económica, favorece o agro-negócio e entrega os agricultores a esse mar tenebroso do livre-comércio. O mercado acaba por ser visto, ainda que não de forma explícita, como um lugar onde o génio de Diónisos se compraz com a dança das bacantes. Labrouste que teve, do ponto de vista profissional, um papel que deveria proteger a especificidade do queijo da Normandia e, desse modo, a vida económica desses agricultores, descobriu que as intenções de Bruxelas e do governo são deixar morrer, um-a-um, esses homens que asseguravam uma certa tradição agrícola, mantinham viva a especificidade dos lugares e ligavam as comunidades ao fio histórico das gerações. A revolta dos produtores de leite normando não é mais do que a manifestação de uma impotência perante as forças dissolventes da globalização, com a sua natureza niilista.

Perante essas forças que actuam na vida privada e no mudo da economia, não há, na perspectiva do narrador, modo de se lhes opor com êxito. Ele próprio é um sintoma dessa impotência. Nascido numa família das classes médias-altas, com uma boa educação académica, a sua vida profissional não passou de um desastre. Nela não encontrou, a realização que o tempo da universidade lhe parecia prognosticar. A retórica sobre a boa formação como abertura de possibilidades existenciais para uma vida boa não passa de um engano. Os empregos modernos não trazem consigo uma possibilidade de auto-realização. São antes um dos múltiplos motores de alienação, do estranhamento a si mesmo, que estão em acção. A rasura do sentido para a existência conduz à fuga da realidade e à depressão. É este o destino do narrador e protagonista,

Quando Labrouste descobre que a sua namorada japonesa, filha de boas famílias, de quem já estava completamente farto, se entregava a orgias na sua ausência, que incluíam sexo com cães, e tendo a noção de que a sua vida profissional não o conduzia a lugar nenhum, decide desaparecer, perder-se no anonimato da grande cidade, sem comunicar a ninguém. Essa defecção, porém, não tem poder salvífico. Liberta o protagonista de factores que produzem um mal-estar contínuo, mas não fornece força regeneradora. O perigo de suicídio passa a acompanhá-lo. Salva-o o captorix, um medicamento à base de serotonina, um neurotransmissor que regula o humor. Como efeito secundário, porém, causa impotência. O dilema que enfrenta Labrouste é o complemento da reflexão sobre o carácter dissolvente da liberdade sexual. Perante ele, está a escolha entre a vida ou o sexo. Este dilema sobrecarrega a ligação da sexualidade à morte.

Esta é, na verdade, a grande protagonista do romance. Ela está omnipresente e desenha-se como o horizonte para o qual tudo tende, não como resultado de se ter vindo à vida, mas pelo caminho que se desenhou ao viver. Seja a vida mergulhada no prazer sexual, seja o destino dos homens que lutam contra as grandes instituições que os deveriam salvar e proteger, mas que se tornaram suas inimigas. Aymeric, um aristocrata e amigo de Labroust, suicida-se num protesto de agricultores, desencadeando distúrbios, entre a polícia e os manifestantes, com várias vítimas. A certa altura o narrador vê no assassínio de uma criança de quatro anos, filha de Camille, a possibilidade de recuperar o amor desta, ao tirar de cena o pequeno ser que concentra o amor da mãe. Em todo o lado, a morte é a sombra que reina e superintende a vida no mundo ocidental, de onde a promessa na vida eterna desapareceu da consciência dos indivíduos. Essa promessa era o princípio de esperança que orientava, nas sociedades estruturadas pré-modernas, a existência dos homens, dando-lhes um sentido para a vida e para a morte. A morte desfez-se da promessa numa outra vida e Houellebeccq compraz-se em tornar manifesto ao leitor o mundo em que apenas a morte é rainha. 

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ernst Jünger, Eumeswil

O romance Eumeswil foi publicado em 1977, tinha Ernst Jünger 82 anos. Pode ser visto como um repositório das principais crenças do autor em relação ao indivíduo, à sociedade ocidental, à política, ao estado do mundo. Contudo, o centro nevrálgico da obra é uma meditação romanesca sobre o destino de um espírito aristocrático num mundo que deprecia os aristoi (literalmente, os melhores em grego clássico) e vive para a satisfação dos desejos e o cuidado dos temores do demo. Qual será o comportamento possível, num ambiente político marcado pela democracia liberal, no qual as concepções de bem se privatizaram nas consciências, para acabarem soterradas na submissão à volubilidade do desejo, às pulsões inferiores, aos interesses materiais? Esta meditação é colocada, contudo, num tempo e num espaço exteriores à sociedade contemporânea em que Jünger escreveu, a República Federal Alemã, nascida da queda do nazismo e da secessão da República Democrática. O tempo é o de um futuro indeterminado, época posterior a uma catástrofe de que não são dados a conhecer os contornos, mas que produziu significativas reorganizações do mundo, se comparado com o do século passado, ou mesmo do actual. Também o espaço político, a cidade-estado de Eumeswil, não deixa de ser um território indeterminado para os conhecimentos actuais, apesar de situada no Norte de África. O romance apresenta uma tonalidade, embora moderada, de ficção científica ou de romance de antecipação, mesmo do ponto de vista tecnológico.

No centro da narrativa, encontra-se Martin Venator, um jovem historiador, proveniente de uma família de historiadores. Para além desta sua ocupação académica, Venator consegue o lugar de barman ou camareiro nocturno junto do Condor, o tirano que governa a cidade-estado. A estranha opção do historiador, aliás recomendada pelos seus mestres (o historiador Vigo, uma encarnação de Giambattista Vico, e o filósofo Bruno, outra reencarnação, agora de Giordano Bruno), tem como finalidade poder observar de perto o próprio poder. A ocupação de barman é uma espécie de trabalho de pesquisa, quase à maneira do método etnográfico utilizado na Antropologia. Uma descrição de uma pequena sociedade – isto é, do círculo restrito do poder. A sua aparente finalidade será a de conhecer o estilo de vida desse grupo e a sua cultura. Um trabalho de campo. Esta ocupação na esfera do poder foi sempre mal vista tanto pelo pai como pelo irmão, também eles historiadores, mas adversários políticos do tirano, adeptos daquilo que, no romance, é denominado como os tribunos. A vida política de Eumeswil balanceia entre tiranos e tribunos, percebendo-se que o tipo de regime muda fruto de golpes mais ou menos violentos.

As palavras usadas por Jünger não são menos equívocas do que o espaço e o tempo da narrativa. Venator reconhece no Condor não um déspota, não um ditador do século XX, mas um tirano, como Pisístrato, que figura nas listagens dos Sete Sábios. Ou, então, como os tiranos da tragédia clássica, talvez como Creonte da Antígona. O Condor não é um déspota iluminado, mas um tirano compassivo, que interfere o menos possível na vida privada dos indivíduos. Também a designação de tribunos, para os oficiantes do regime alternativo, contém diversas camadas semânticas. Neles, pode-se ouvir o eco dos tribunos da plebe, na antiga Roma, mas também o do orador público, marcado pela eloquência, enfim, o demagogo, ou o que hoje se costuma denominar por populista. Uma linha de interpretação plausível dos tribunos é vê-los como os políticos dos regimes democrático-liberais. Apesar do seu íntimo descomprometimento político, é clara a preferência de Martin Venator pelo regime do Condor, cujo comportamento é o de um aristocrata que, na perspectiva do narrador, é menos invasivo da vida das pessoas do que os políticos liberais que, pela trama da legislação e da demagogia, acabam por prender nas redes do poder as liberdades individuais.

Um dos temas do romance é o conflito com o pai. Não se trata do habitual conflito edipiano, em que o filho deseja a morte do pai para ficar com a mãe. Estamos perante uma inversão da narrativa freudiana. É o pai que quer a morte do filho e não tanto pelo desejo de assegurar a mulher – no caso, a amante – para si, mas porque um novo ser incomodava os seus interesses. Martin nasce contra a vontade paternal, que preferia que tivesse sido abortado. Este conflito com o pai é usado simbolicamente como denúncia do carácter mortal das opções liberais, da livre escolha. O pai, um adepto dos tribunos, não hesitou em querer suprimir uma vida nascente, o que não aconteceu apenas pela determinação da mãe. A forma como Martin se refere ao pai e ao irmão (na verdade, meio irmão, porque filho de mãe diferente) é sempre irónica. Apesar de não gostar nem de um nem de outro, nunca deixava de cumprir os seus deveres familiares, como se estes fossem fruto de uma missão, mas não de uma afecção. E isto é o que distingue um espírito aristocrático, o de Martin, de um espírito liberal, o do pai e do irmão.

Como pode um espírito aristocrático viver num mundo marcado pelo niilismo, numa cultura em que foi banida todo o valor da superação, de se tornar melhor ou, na perspectiva clássica, de exercitar a excelência? Martin reconhecia-se a si mesmo como um anarca. Uma interpretação possível da figura do anarca é vê-la como uma consumação do Único e a sua propriedade, de Max Stirner. Seria um equívoco ver a figura do anarca seja à luz do anarquista tradicional que pretende mudar o mundo, seja a dos libertários de direita que têm, hoje em dia, algum peso intelectual nos EUA. A política não o interessa, mas não desafia a autoridade. Reconhece que precisa dela, embora não acredite nela. O anarca segue os seus próprios interesses e tudo o que faz visa protegê-los. Contudo, esses interesses são meramente espirituais. Não confia na política, e a história, apesar de ser historiador, cansa-o com as suas eternas repetições. Há que sair dela.

Eumeswil é rodeada por dois estranhos mundos, o das catacumbas, onde se desenvolvem os prodígios da tecnologia, e o mundo da floresta, universo perigoso, habitado por seres mitológicos, o lugar da mais autêntica liberdade, aquela que, com o perigo sempre presente, representa um desafio à coragem e à superação de si. Ali está-se perante um mundo onde a lei civil e estado desapareceram. Resta uma outra lei, a natural. Com a aproximação de um novo golpe de estado e o retorno dos tribunos – isto é, uma nova transição à democracia e ao domínio da plebe – o Condor e a sua corte decidem fazer um passeio pela floresta, para o qual Venator é convidado, como uma espécie de historiador oficial. Dessa viagem não há retorno. São dados como mortos, mas isso tão pouco está confirmado pela presença de cadáveres. Ora, esta imersão na floresta é uma saída da história. O historiador sai do espaço histórico para se confrontar como uma outra lei. Qual o destino, nos tempos modernos, dos aristoi? Transformarem-se em anarcas, abandonarem as ilusões políticas e as peripécias da história, mergulharem na floresta em busca, por certo, das provas necessárias que os legitimem na pretensão aristocrática.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Italo Svevo, Senilidade

Publicado em 1898, o romance Senilidade, de Italo Svevo, é o segundo da sua vida de escritor. A publicação é feita em folhetins no jornal de Trieste L'Indipendente. Assim como o primeiro, Uma Vida, este é completamente ignorado pela crítica. De tal modo que o autor toma a decisão de abandonar as ilusões literárias. Só passados 25 anos, em 1923, volta a publicar um romance, o último, A Consciência de Zeno. Há diversos motivos para a indiferença original em relação aos primeiros romances de Svevo. Não seria um cultor exímio do italiano. Movia-se num ambiente linguístico marcado pelo triestino – um dialecto do véneto, uma língua românica, mas com consideráveis diferenças do italiano – e pelo alemão. Por outro lado, os seus romances tinham já uma inclinação marcadamente modernista, afastando-se das escolas realista e naturalista. O seu carácter inovador poderá ser também uma razão decisiva para o desinteresse com que foram acolhidos. O grande defensor de Svevo foi James Joyce, que o conheceu quando esteve em Trieste, onde lhe ensinou Inglês, e reconheceu naqueles romances o seu valor literário.

A personagem central da narrativa é Emilio Brentani, um escritor falhado, apesar de o seu primeiro, e único, romance ter sido bem acolhido e de lhe ter dado uma certa aura de intelectual e, com o passar dos anos, alguma autoridade nos meios cultos da cidade, pelos menos era isso o que ele imaginava. Tem 35 anos quando se passam os factos que compõem a narrativa. Não é propriamente um velho, embora a senilidade que está presente no título da obra se aplique ao seu comportamento amoroso. O romance explora a relação do eu, de Brentani, com a realidade, tanto através do conhecimento como da acção. Está-se perante a análise do processo de falência cognitiva e volitiva do sujeito. A Idade Moderna começa, no século XVII, com a afirmação do sujeito como fundamento do conhecimento, de um sujeito que procura as evidências como forma de evitar as ilusões e, desse modo, encontrar a segurança e a correcção na acção. Brentani é o contrário disto. Ilude-se sobre a realidade e age de forma desadequada nela.

Emilio, apesar das suas aspirações literárias, sempre adiadas, necessita de trabalhar para se sustentar, bem como à sua irmã Amalia. É escriturário numa companhia de seguros. Há neste facto duas curiosidades. Em primeiro lugar, parece ser uma premonição casual de duas grandes figuras da literatura europeia, que eram escriturários e, também, escritores. Franz Kafka e Fernando Pessoa. A segunda curiosidade, não é casual como a primeira. Brentani quer ser escritor, mas não passa de escriturário. Entre o ideal e a realidade há uma diferença assinalável, aquilo que ele é não passa de uma sombra daquilo que deseja. Esta tensão entre o ideal e o real envolve por completo a personagem. O caso é uma história de amor aparentemente trivial. Inexperiente das coisas amorosas, Emilio conhece a jovem Angiolina Zarri. Teria chegado a sua hora de conhecer a felicidade. Contudo, a rapariga é o contrário do pretendente. É exuberante e tem uma vida amorosa agitada, cheia de casos, muito longe do anjo que, a certa altura Emilio, quis ver nela.

A sua inexperiência condu-lo a comportar-se como alguém senil perante uma jovem amante, que o trai sem escrúpulos. A paixão amorosa conduziu o protagonista a um afastamento da sua irmã, de quem cuidava, e do seu principal amigo, o escultor Steffano Bali. Este, ao contrário de Brentani, não se ilude com a realidade e insiste para que Emilio não se deixe envolver, que se divirta, mas que não dê mais importância ao caso do que a de uma simples aventura, como aquelas em que ele se envolve. Svevo acaba por traçar dois tipos contrapostos de homem, nas figuras dos dois amigos. Steffano vivido, saudável, afirmativo, apesar de a sua carreira de escultor não ser particularmente sucedida, apreciador da vida, pouco dado a devaneios românticos. É o homem que na vive na realidade e a olha com uma mistura de cinismo e complacência. Emilio é inexperiente, pouco saudável, incapaz de uma verdadeira afirmação de si, temeroso e propenso, a meio da vida, a deixar-se envolver numa fantasia romântica, que tem por contrapartida o mergulho nas águas pantanosas do ciúme. O primeiro é o homem do real, pés na terra, o segundo é o do ideal, um subproduto da cultura romântica. Por outro lado, também no campo feminino encontramos a mesma diferença entre a saudável, exuberante e bela Angiolina e a doente, sofredora – apaixonou-se, também ela, pelo indiferente amigo do irmão – e feia Amalia. O que emerge da obra é que aqueles que sofrem são vítimas de si mesmos, da sua deficiente apreciação tanto de si, como da realidade em que vivem.

Dois traços da narrativa são indicadores de se estar já perante uma obra de ruptura. Por um lado, o foco não na realidade social ou numa pretensa descrição científica da vida social, mas na complexidade psicológica das personagens, no modo como apreendem a realidade e aquilo que as motiva nas trivialidades da vida quotidiana. Por outro, o papel do próprio narrador (narrador na terceira pessoa) que constrói as personagens e, ao mesmo tempo, vai intervindo na sua desconstrução, mostrando o pensamento e a acção de Emilio a partir do ponto de vista deste, mas acompanhando essa manifestação com subtis comentários que tornam patente a equivocidade em que o protagonista está mergulhado. Constrói um herói que não passa de um anti-herói. Na verdade, um zé ninguém atolado numa compreensão nebulosa e de pouca vitalidade da realidade. Por fim, saliente-se o modo como a temática do amor é usada. Não se trata de um romance de amor, de um amor falhado, mas de um romance que usa o amor como revelador daquilo que as personagens são. O amor não tem, na obra, um valor intrínseco, mas puramente instrumental. Steffano e Angiolina percebiam-no e eram saudáveis. Emilio e Amalia, cada um a seu modo, erigiam-no como um valor em si mesmo, o que os conduziu à derrota existencial, revelando a sua fraqueza vital e, também, moral. Só os fracos e doentes se apaixonam. 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Mário Ventura, O Reino Encantado

Publicado em 2005, o romance O Reino Encantado é o último de Mário Ventura, que morre no ano seguinte. A obra combina dois interesses distintos. Por um lado, a atenção despertada por dois episódios, ocorridos, em 1819 e 1838, na região de Pernambuco, Brasil, à volta de seitas sebastianistas. Por outro, mais que uma reflexão sobre a condição do trabalho de romancista, está-se perante uma descrição do modo como o próprio romance se vai compondo, acabando, nas próprias palavras do escritor, numa entrevista na época da publicação, por ser uma motivação narrativa mais pesada do que os acontecimentos ocorridos, há muito, no Brasil. Uma pista possível de leitura do romance pode ser aquela que explora a tensão entre a natureza precária do artista e do seu trabalho e a crença fanática dos adeptos sebastianistas. Uma tensão entre o relativismo da construção artística e o absoluto de crenças absurdas e inquestionadas, que se tornam o horizonte existencial de gente à deriva na vida.

O ponto de partida do romance é, segundo o narrador, a leitura de um pequeno excerto – não chega a 30 linhas, nas quais se descrevem factos e se faz reflexão ideológica sobre eles – do livro A Evolução do Sebastianismo, de João Lúcio de Azevedo, publicado no ano de 1918. O caso de um destes episódios ter conduzido à prática de sacrifícios humanos e, também, a uma repressão militar não pouco violenta, assim como a imprecisão daquilo que Azevedo contara no seu livro, terão obsidiado a imaginação do narrador, o qual é a personagem principal da obra, e terão acendido o desejo de escrever um romance sobre o assunto. Grande parte do livro narra o processo de construção do romance. Este processo começa com um vislumbre das relações no meio literário da época, dos jogos de poder e vingança, do uso do sexo como pedra de arremesso entre escritor e crítica. A escrita entrelaça aspectos da vida pessoal do protagonista, o desaire do casamento, as relações com as mulheres, etc., e a busca, em Portugal e, fundamentalmente, no Brasil, de materiais que permitam compreender os nebulosos acontecimentos ocorridos no século XIX, pouco antes e pouco depois da independência do Brasil.

O narrador mostra-se, em primeiro lugar, na sua precariedade moral. Por exemplo, de alguém que necessita de se vingar de uma crítica desfavorável. O que deixa, no romance, pelo menos um traço questionador da relação entre arte e ética. O escritor, para o ser, não é, necessariamente, uma figura ética exemplar. A qualidade da arte não dependerá da natureza moral do autor, mas do domínio dos próprios aspectos formais da arte. Em conexão com esta relatividade moral do artista surge uma outra, a da própria consistência dos materiais que utiliza na construção das narrativas. O que coloca um problema interessante sobre a relação entre arte e verdade. A preocupação aparente do narrador-protagonista é encontrar informação fidedigna sobre um episódio ocorrido há quase duzentos anos. Ainda por cima, de um episódio real, mas mal conhecido, que terá despertado pouco interesse dos historiadores, mas que interessou escritores como José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Ariano Suassuna (Pedro do Reino). Um leitor ingénuo poderá pensar que essa preocupação está ligada à busca da verdade histórica. O conhecimento factual dos acontecimentos não visará estabelecer uma verdade histórica, mas poderá dar um contributo para a verdade narrativa, isto é, para que a narrativa possa patentear um módico de verosimilhança que permita ao leitor suspender a descrença sobre aquilo que está a ler. É esta busca da informação, como se fosse uma investigação jornalística, que possa conduzir à verdade narrativa que é mostrada como o trabalho do romancista, sujeito às peripécias das fontes, aos acidentes da fortuna, à disponibilidade dos outros. À fragilidade moral do escritor soma-se a fragilidade dos materiais com que trabalha.

A parte final do romance, efectivamente, ficciona os acontecimentos de Pedra Bonita, assim se chama o local onde ocorreram os episódios relatados. A crença do retorno de D. Sebastião, que estaria ali encantado, à espera de voltar à existência, para trazer a justiça aos que sofrem, encontrou um número significativo de seguidores, entre pessoas perdidas na vida. Um enorme acampamento reunia os sebastianistas, que viviam na expectativa da vinda do rei ajudados por uma beberagem alucinogénia. Até que, com o intensificar das emoções e a manipulação dos dirigentes, se dá um passo decisivo em direcção às práticas arcaicas do sacrifício humano, a estratégia definitiva para desencantar o rei, trazê-lo à vida e, com ele, as vítimas sacrificiais. Então, D. Sebastião distribuiria pelos crentes as imensas riquezas de que seria depositário. É este episódio que Mário Ventura descreve, tentando traçar as motivações que conduzem a crenças tão absurdas, quanto absolutas, que impeliam as próprias mães a entregarem os seus filhos para sacrifício.

A tensão entre a descrição do trabalho do escritor e a dos trágicos acontecimentos pode ser vista como uma reflexão sobre o papel da arte, e da arte do romance, em particular. O carácter absoluto que as ideias – mesmo as mais absurdas ou, de preferência, as mais absurdas – podem tomar exige uma desconstrução. Esta não poderá ser a análise e a contraposição de outras ideias, a substituição de crenças infundadas por outras que encontrem fundamento. O fanático é incapaz de um olhar crítico sobre as ideias que o possuem, pois de uma real possessão se trata. A arte tem esse poder de mostrar que tudo o que é humano é relativo, marcado pela incerteza, construído pelas virtudes e pelos defeitos dos homens. A filosofia e a ciência poderão opor às ideias absurdas da superstição ideias fundamentadas, mas estas não tocarão no coração e na sensibilidade do homem possuído pela certeza. Só a arte pode, explorando o sentimento e a sensibilidade, abrir um frágil caminho ali onde as crenças se petrificaram e se tornaram uma ameaça existencial.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Herta Müller, A Terra das Ameixas Verdes

 

Herztier (1996) é um romance da escritora alemã, nascida na Roménia, Herta Müller, prémio Nobel (2009). Literalmente, o título original significa coração animal. Em França, o título escolhido foi Animal du Coeur, em Espanha, La bestia del corazón, e em inglês, The Land of Green Plums. A tradução portuguesa (1999) seguiu a inglesa. O romance começa e acaba com as mesmas palavras: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Esta estratégia confere à narrativa uma espécie de ciclicidade, de eterno retorno do mesmo, mas também o sentimento de um círculo fechado. Este cerramento não é um mero exercício de estilo, mas o modo como autora cria no leitor a sensação de opressão existente na Roménia sob a ditadura comunista. Ciclos contínuos de expectativas (a da sempre adiada morte do ditador), mais do que esperanças, e de desesperos, um ambiente fechado, controlado, de onde qualquer liberdade individual fora banida.

Um outro elemento estrutural liga-se ao anonimato da narradora num romance autodiegético. Ela é a principal personagem, mas nunca se sabe o seu nome, enquanto o das outras personagens – Lola, Edgar, Georg, Kurt, Tereza e o capitão Pjele – são conhecidos. Várias recensões da obra vêem nela um romance autobiográfico, devido à existência de traços biográficos comuns à autora e à narradora. O anonimato desta seria uma ocultação do nome da autora. Existe, todavia, uma outra possibilidade de leitura mais interessante. Essa ausência de nome da personagem principal, esse espaço em branco na trama narrativa, permite que ele fique em aberto e possa ser preenchido por qualquer um. Ao espaço fechado da narrativa corresponde o espaço aberto do sujeito da acção. Num mundo opressivo e fechado, num regime totalitário, o lugar da vítima está sempre em aberto, para que qualquer um, se for esse o desejo do poder, o ocupe. O anonimato da narradora significa que aquele lugar não é pessoal e intransmissível. Pelo contrário.

Contrariamente ao que se possa pensar, não se está perante uma obra de matiz ideológico nem perante um romance de tese. Dentro do espaço fechado da narrativa, o que Herta Müller faz é dar a ver o impacto do universo político sobre as pessoas, não apenas nas suas condições sociais, mas, fundamentalmente, nas suas condições psicológicas ou, melhor, na sua ipseidade, isto é, na forma como se constituem enquanto pessoas. Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, pessoas que vivem sob regimes totalitários ou autoritários não percebem que a opressão se abate de forma muito insidiosa sobre a construção da personalidade de cada um, mesmo sobre a dos adeptos e sicários desses regimes. Não são apenas os corpos que são presos, torturados, violentados, ou o discurso que é censurado. O que qualquer regime opressivo faz é manietar os indivíduos não lhes permitindo desenvolver, muitas vezes sem que eles próprios percebam, as suas possibilidades mais fundamentais. Neste tipo de regimes, a política não é apenas a política, mas uma forma de rasurar a humanidade e de impedir a pessoa de se descobrir a si mesma. É uma prática sistemática de amputações, mesmo que os corpos pareçam ilesos.

Apesar de a narrativa ser fechada, ela parece pouco estruturada. Não há divisão por capítulos. O texto corre de princípio até ao fim, composto por pequenos parágrafos, quase como se fossem versos que não coubessem numa linha e tivessem de se expandir por várias. Esta sensação é intensificada pela própria natureza imagética da escrita. Por exemplo: Eu puxo o fio, escreve Lola, a coroa de espinhos vira-se para baixo. A mãe canta. Deus tende piedade de nós, e eu puxo para abrir o polegar da luva. Há uma clara preocupação de dar a ver os pequenos gestos, os acontecimentos insignificantes, tudo aquilo que constitui a vida. Há uma atenção hiperbólica ao real, como se essa atenção fosse o outro lado da opressão e, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e afastamento do universo concentracionário.

O romance gira em torno de quatro amigos todos com a mesma origem. A narrador sem nome, Edgar, Kurt e Georg. São todos romenos de origem alemã e todos eles tinham pais que fizeram parte das SS nazis, tal como o pai da própria autora. Essa comunidade alemã presente na Roménia era o resultado de acontecimentos políticos, passados no século XIX, que envolveram o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. No romance, a opressão acentua também o conflito de nacionalidades, o choque de culturas, a exclusão dos romenos de origem alemã. O sonho de todos os quatro amigos, depois de terem concluído os cursos superiores, de terem entrado no mundo do trabalho e de dele terem sido excluídos por desagradarem ao regime, era emigrar para a Alemanha. A vida na Roménia tornara-se insuportável, embora eles não tivessem qualquer actividade política digna desse nome. Limitavam-se a cantar canções alemãs, ler livros que não faziam parte do cânone permitido pelo regime ou, no caso de um, de tirar fotografias, que ninguém via, aos autocarros que transportavam presos para os trabalhos de construção das obras do regime. É a insignificância destes gestos e as retaliações que eles suscitam que mostra a natureza totalitária da sociedade romena daqueles dias. Não havia aspecto da vida que não fosse vigiado.

Há, no romance, duas alegorias poderosas, ambas ligadas à morte. Os comedores de ameixas verdes e os tragadores de sangue. Na comunidade camponesa alemã, corria o mito de que se as pessoas comessem ameixas verdes morreriam. Ora, os quatro amigos ficaram espantados quando descobriram na cidade que os polícias, os defensores da ordem do regime, enchiam os bolsos de ameixas verdes e as comiam. Era como se comessem a própria morte e a trouxessem com eles, tornando-os agentes mortais. O poder heurístico da alegoria, porém, não fica por aqui. Uma ameixa verde que é comida não tem o tempo suficiente para desenvolver as suas potencialidades, e de se tornar uma ameixa no pleno sentido. As ameixas verdes são os próprios indivíduos que acabam tragados na boca dos polícias, isto é, nas mandíbulas de um estado policial. A outra alegoria provém da experiência profissional, acabada a universidade, de Kurt. Entra como engenheiro para um matadouro. Descobre, então, que os trabalhadores tragam o sangue dos animais mortos, o que o perturba profundamente. Essa vampirização das vítimas – os animais mortos tornam-se, como as ameixas verdes, uma imagem das pessoas perseguidas pelo estado policial – por parte dos trabalhadores do matadouro torna manifesto que o poder opressivo não se limita aos aparelhos de estado, mas que a própria população se torna uma roda no mecanismo da opressão. No processo, porém, o que mais horrorizava Kurt era a aceitação das famílias da situação. As próprias crianças eram já cúmplices dos pais e não almejavam outra coisa senão o matadouro. É este universo mortal que sustenta as primeiras e a últimas frases do romance: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Num espaço concentracionário ninguém sabe o que fazer com o discurso, com a luz do logos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Michel Houellebecq, Aniquilação

Publicado, em França, no início de 2022, Aniquilação é o oitavo romance de Michel Houellebecq. Como se tornou hábito, o lançamento de um novo romance deste autor gerou uma enorme controvérsia entre defensores e detractores do romancista. No campo da detracção, é sublinhado com insistência o facto do romance ser composto por temáticas diversas que parecem não se encontrarem devidamente soldadas umas nas outras, para que façam sentido estarem presentes numa mesma obra. Aniquilação seria, então, uma obra descosida, e grande parte das páginas desnecessárias. Essas linhas romanescas sem real conexão seriam o terrorismo como ameaça ao mundo ocidental, um terrorismo não identificado e com recurso a uma simbólica satânica do século XIX. Isto aconteceria no período que antecederia as eleições presidenciais francesas de 2027, uma outra linha temática, onde o candidato da maioria actual seria um homem de mão do presidente ainda em funções. Neste ponto, estar-se-ia perante um romance de antecipação e um thriller político. Por fim, o destino do protagonista Paul Raison, o principal conselheiro político do ministro da Economia, um homem chave no triunfo do candidato da maioria perante um adversário do partido da senhora Le Pen. No caso de Paul Raison, o que estaria em jogo seria o seu confronto com o destino, isto é, com o amor e a morte. Para muitos, esta é a parte fundamental do romance, que dispensaria as outras linhas narrativas que, no seu entender, não contribuem para o desenlace romanesco.

Uma outra leitura é possível, começando por não aceitar que o protagonista principal do romance seja Paul Raison, mas a família Raison e seria esta a solda que une as diversas linhas que parecem sem ligação. Não deixa de ser estranho que a generalidade dos comentadores não tenham atribuído qualquer importância ao apelido Raison, a palavra francesa para razão. Falam, muitas vezes, de se estar perante um romance crepuscular, mas parecem não compreender onde está a essência desse crepúsculo, confundindo os efeitos do crepúsculo (o terrorismo, a eutanásia, a diluição dos valores, etc.) com aquilo que o provoca. Ora, é a crise da própria razão – encarnada na família Raison – que gera o imenso crepúsculo a que o mundo ocidental estaria sujeito, na perspectiva do romancista. Édouard Raison, um antigo quadro superior da segurança nacional, um homem que teria tido um importante papel nos serviços secretos franceses, é o pai de Paul, um alto quadro do ministério das Finanças e conselheiro político do ministro Bruno Juge, que procura devolver França à glória económica, de Cécile casada com um notário no desemprego, um casal católico tradicionalista e apoiante do partido da senhora Le Pen. Também Aurélien é um Raison, filho mais novo de Edouard, o mais próximo da mãe, já desaparecida no tempo da narrativa, e como ela restaurador de tapeçarias medievais.

Cada um dos Raison representa uma vertente da razão, tal como o Ocidente, no decurso da sua história intelectual, a entendeu. Edouard representa a razão de Estado marcada pela busca de segurança, uma razão inspirada, em parte, em Thomas Hobbes. Não deixa de ser sintomático que uma das suas leituras seja Joseph de Maistre, o principal pensador da contra-revolução e um defensor do Absolutismo, contra as pretensões do terceiro-estado e a visão liberal do mundo. Paul simboliza a razão económica, cujo protagonista no romance é Bruno Juge, considerado como o melhor ministro da Economia desde Colbert. A referência a Colbert não é um acaso, mas uma afirmação, no campo da Economia, da razão de Estado contra a razão liberal. O Colbertismo é marcado pelo dirigismo estatal da Economia, por políticas intervencionistas e proteccionistas. Tanto Edouard como Paul representam simbolicamente a afirmação da razão de Estado e do Estado-Nação. Aurélien encarna uma razão estética, percebida como incapaz de lidar com a própria existência e os problemas que ela coloca. Uma razão marcada, por outro lado, por laivos de romantismo, manifesto no interesse pela Idade Média. Por fim Cécile, simboliza uma razão prática, preocupada com a família, submetida ao império da fé católica.

O destino dos membros da família Raison fornece uma chave para compreender o que está em jogo. Torna também patente o motivo pelo qual muitas análises vêem em Aniquilação um romance crepuscular e, ao mesmo, tempo uma obra onde existe um sopro de esperança. Édouard, durante todo o romance, está num estado de saúde mais próximo da morte do que da vida, fruto de um AVC. Independente das peripécias que o envolvem, que passam pelo seu rapto, de uma instituição de saúde pública, por parte da família, o que transparece é a doença da própria segurança do Estado. Também a doença que atinge Paul é um sintoma da doença de uma razão económica que se furta ao liberalismo e adopta o proteccionismo em nome do Estado-Nação. Paul não era ministro, apenas um membro do staff, mas seria uma espécie de voz da razão económica. O caso de Aurélien que se suicida torna patente a fragilidade da razão estética que se apoderou de parte do discurso ocidental. Na visão que se desprende do romance de Houellebecq, essa razão é impotente para lidar com os problemas que a existência coloca. Resta Cécile Raison. Nela a razão submete-se à fé, a um catolicismo que não se nega a si mesmo nem se põe em causa. Ela é a única que sobrevive verdadeiramente na tormenta que atinge a família Raison. Só ela resistiu ao processo de aniquilação da família. Há no romance uma visão crepuscular da cultura ocidental, mas é preciso compreender que no crepúsculo existe ainda uma luz, embora ténue. Essa luz é Cécile.

Muitas leituras do romance apontam a existência, nesta obra de Houellebeca, de um princípio de esperança e que este se revelaria no amor entre Paul e a mulher, Prudence, um amor que esteve posto entre parêntesis durante 10 anos, mas que pouco antes de Paul saber do seu estado de saúde se reavivou e foi uma luz na vida dele. Contudo, esse amor não tem qualquer poder salvífico e é impotente para contrariar o destino de Paul. Se o romance é marcado por um princípio de esperança, este só poderá residir em Cécile, isto é, numa conexão entre fé e razão. Também neste romance de Houellebecq se pressente a influência de Joris-Karl Huysmans, o romancista do século XIX que começou no naturalismo, passou pelo decadentismo e acabou numa conversão ao cristianismo. A doença mortal que atinge, no romance, Paul Raison é a mesma que levou à morte Huysmans, uma espécie de sinal de reconhecimento de Houellebecq para com o escritor do século XIX. Raison não chega a dar o passo que deu Huysmans, embora, em certos momentos, o leitor fique com a ideia de que está próxima uma conversão. Contudo, o facto de Cécile ser a única Raison sobrevivente torna manifesto, de um modo claro, onde permanece ainda, para o autor, um sopro de esperança para o Ocidente e, em particular, para França. A salvação não se encontra nem nos delírios estéticos, nem numa razão de Estado que combine a segurança hobbesiana e o intervencionismo económico colbertista, mas nessa aliança entre fé e razão, que um dia deu vida ao Ocidente, mas que se lhe tornou completamente estranha com a vitória do liberalismo. Na verdade, um programa não muito diferente do de Joseph de Maistre.

sábado, 30 de julho de 2022

Teixeira de Queirós, Os Noivos


O romance Os Noivos, de Teixeira de Queirós, foi publicado, originalmente, em 1879. A segunda edição, a de 1896, foi, segundo o autor, completamente refundida, sendo definitiva. Hoje em dia, exceptuando os iniciados na história da literatura portuguesa, ninguém conhece o autor. No entanto, desenvolveu uma importante obra literária no último quartel do século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. É um nome marcante do realismo naturalista português, tendo sido considerado por Óscar Lopes e António José Saraiva “o melhor realizador, em Portugal, do romance tal como o concebeu Balzac”. Os Noivos apresenta-se como um romance crítico, considerada a melhor forma literária para exprimir “a complicada vida moderna”. A obra é a primeira de um amplo conjunto de romances – oito ao todo – a que o autor deu o nome, de clara inspiração balzaquiana, de Comédia Burguesa. Tanto na edição de 1879 na de 1896, o romance é apresentado em dois volumes.

Há no título escolhido por Teixeira de Queirós uma aparente inconsistência com o próprio romance que acompanha a vida de casados de Arminda e Gustavo, os principais protagonistas desta Comédia Burguesa. Existe, contudo, nesta decisão uma avaliação dessa instituição social que é o casamento. No prólogo da edição de 1896, referindo-se às suas personagens, o autor escreve: Não eram bons, nem eram maus; mas não cumpriram com o seu dever como elementos sociais. Gozaram um fausto reles, e desuniram-se sem ódio. Nunca chegaram a conceber o que fossem virtudes com que se resistisse à adversidade; não tiveram abnegação, nem paciência, nem heroísmo na pobreza… tudo despreocupação e fatuidade. O romance mais do que uma crítica à instituição casamento é uma análise minuciosa dos motivos que conduzem à sua derrocada. O casamento é um dever social e não um mero direito dos indivíduos. Esse dever exige um conjunto de virtudes que provam a maturidade de mulher e homem que se empenham na sua realização. Um casamento exige capacidade de resistir à adversidade – na língua-de-pau do psicologês que invadiu a sociedade actual, dar-se-lhe-ia o nome de resiliência – exige abnegação, paciência e heroísmo, uma qualidade dos espíritos nobres. Tudo isto faltou na vida de casados de Arminda e Gustavo. Na verdade, nunca chegaram a ser, no pleno sentido da palavra, marido e mulher. Apesar de casados, não eram mais do que noivos incapazes de consumar um casamento, não no plano sexual, entenda-se, mas no plano da instituição social.

Há, em Os Noivos, duas linhas fundamentais que ajudam a compreender essa efectiva não consumação matrimonial. Por um lado, a desadequação de ambos à sua situação social e económica. Provenientes de uma pequena/média burguesia do funcionalismo, sem fortuna, eram tentados por uma vida de fausto que a sua realidade não suportava. Teixeira de Queirós faz um retrato desapiedado desses meios, daquilo que move homens e mulheres, tornando patente como, por exemplo, a inveja desencadeia comportamentos miméticos que levam à perda dos protagonistas. De certa maneira, muito antes de a dissolução do casamento se ter tornado uma banalidade, o autor faz um retrato preciso daquilo que está na base de um casamento destruído. Uma segunda linha de compreensão é a da influência de uma visão do mundo romântica. O amor romântico é agora alvo não de uma recepção apoteótica, mas objecto de uma crítica rigorosa. Isso torna-se patente durante a lua-de-mel do casal, passada em Sintra. Não apenas o romantismo do lugar é um sinal, como as sessões de leitura a que os noivos se entregavam e lhes enchiam a alma. Liam, melhor, Gustavo lia para Arminda o romance de Alphonse de Lamartine, Graziela, um dos expoentes do romantismo francês. A modelação dos sentimentos encontrava nesse romance a sua ideia reguladora. O facto de não ter contribuído, pelo contrário, para fortalecer a união dos dois é o sinal de que o autor considerava esse romantismo uma forma ideológica incapaz de produzir nos noivos a atitude virtuosa que lhes permitiria a levar a bom termo o compromisso que o casamento representaria à época.

Influenciado por Honoré de Balzac, Teixeira de Queirós empreende, com Os Noivos, um conjunto de estudos fisiológicos e sociais – A Comédia Burguesa – da classe actualmente dominante. Ele observa-a nas suas diversas manifestações. Desde o duro homem de negócios, passando por militares, por funcionários bem colocados e por pessoas que sendo burguesas pela sua condição de classe, não o são, como Gustavo e Arminda, pela fortuna, herdada ou adquirida. Em torno do drama conjugal, o autor mostra em acção essa gente que está já em fase adiantada de relegar a velha aristocracia – ainda reverenciada – para o lugar onde se coleccionam relíquias históricas. Não deixa de ser sintomático, porém, que o ciclo seja iniciado por um caso claro de fracasso, um fracasso de burgueses em consumarem não apenas o seu casamento, mas a sua própria condição social. Não será inútil, para uma interpretação do romance – e, porventura, de todo o ciclo – a distinção feita por Aristóteles entre tragédia e comédia. A tragédia imita a acção dos homens superiores, dos heróis; a comédia, a dos homens inferiores. Contudo, o filósofo acrescenta relativamente aos homens inferiores imitados na comédia: (imitação) não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. Gustavo e Arminda não eram bons nem maus. Não eram heróis e seres nobres. Eram apenas ridículos no modo como se relacionavam com a sua própria realidade.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Liudmila Ulitskaya, Sonechka

O pequeno romance Sonechka, da escritora russa Liudmila Ulitskaya, foi publicado originalmente em 1992, na revista Novyi Mir (Novo Mundo). Como todas as boas obras de arte, esta abre-se a uma pluralidade de interpretações, que realçarão este ou aquele aspecto, organizando, a partir daí, uma estratégia hermenêutica para apropriação da obra. Aquela que se propõe aqui sublinha, como ponto fulcral do romance, a relação entre a vida e a literatura. Qual o lugar desta e como se relaciona com aquela? A ligação da protagonista – Sonechka (diminutivo russo de Sónia) – com a literatura – mais especificamente, a literatura russa – é o ponto fulcral deste primeiro romance de Ulitskaya.

Poder-se-á ler a narrativa a partir de uma perspectiva política, como uma denúncia do regime soviético. Poder-se-á sublinhar o questionamento do papel da mulher na sociedade russa. Poder-se-á, ainda, partir do confronto entre o espírito individualista do artista – o marido de Sonechka é um artista, um pintor – e a concepção soviética de arte subjugada ao estado, de arte ao serviço de uma causa que ocupou o poder político e se tornou uma perspectiva totalizante. Contudo, estes pontos – ainda que presentes no romance – são meramente instrumentais e não essenciais.

Liudmila Ulitskaya preocupa-se em contar uma história, melhor, em contar várias histórias que se entrelaçam, criando o enredo que conduz do ponto de partida, a situação em que se encontrava, no princípio, Sonechka e aquele aonde chegou, quando o romance acaba. A autora conta a história de Sonechka, mas também do seu marido, Robert Viktorovich, Tânia, a filha de ambos, e de Jasia, uma jovem polaca que acaba por se tornar amante de Robert e, ao mesmo tempo, protegida como uma filha por Sónia, que sentiu a vinda de Jasia como uma dádiva generosa do destino para a velhice do seu amado Robert.

Apesar de ser claramente uma autora pós-soviética, não foge, na concepção do romance, a uma estruturação dialéctica, talvez uma reminiscência de uma concepção do mundo proveniente da educação a que a juventude da URSS foi, durante décadas, submetida. Esta dialéctica da narrativa tem como primeiro momento a intensa relação da protagonista principal com a literatura russa. O segundo momento, o da negação do primeiro, acontece quando Sónia conhece, numa biblioteca onde trabalhava, Robert e casa com ele, constituindo uma família. O terceiro momento da dialéctica dá-se com a morte do marido, o que constitui a negação dessa negação e um retorno do primeiro momento, mas de modo completamente transformado.

A jovem Sonechka – movida por uma relação difícil com o corpo e a realidade envolvente – entrega-se a uma paixão devoradora pelos livros e pela literatura russa. As personagens dos grandes autores russos são, para ela, tão ou mais reais do que as pessoas com quem contacta. Para ela (Sonechka), o sofrimento de Natasha Rostova (personagem de Guerra e Paz, de Tolstói) à cabeceira do moribundo conde Andrei (idem) era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido. Esta afirmação de si como grande leitora é feita por uma espécie de alienação, um estranhamento ao curso da realidade, uma imersão num universo simbólico e onírico, uma forma ligeira de loucura (reminiscência, por certo, desse leitor compulsivo de novelas de cavalaria conhecido como D. Quixote). É a partir desse lastro que consegue encontrar uma justificação e um sentido para a sua existência. O seu self constituiu-se pela absorção desse mundo de papel. Ali, ganhou elasticidade e capacidade de perceber a vida muito para além daquilo que poderia aspirar caso a paixão pela leitura não existisse.

O segundo momento dialéctico é o da vida real, com um inesperado amor, um casamento, uma filha e tudo o que isso supõe na Rússia da segunda guerra mundial e dos tempos que se lhe seguem. Este é um momento de negação daquela ligeira loucura que a levava a confundir a vida real e a ficcional. Esta negação, porém, não é uma aniquilação do self anteriormente construído no contacto com os livros, mas a oportunidade de o pôr à prova, de lhe dar carne no dia-a-dia. Sem esse self construído no mundo da ficção nunca teria casado com Robert Viktorovich, um artista plástico bem mais velho, que tivera grande êxito em Paris, mas que regressado à Rússia, acabou num campo de concentração. Esta negação dialéctica é uma reapropriação de si e um mergulho na torrente da existência, que a prepara para as peripécias que essa vida de casada lhe trará.

Quando o marido morre, dá-se a segunda negação, a negação dessa vida quotidiana e uma reafirmação do interesse pela literatura. Ela recusa sair da sua casa para se juntar, na Suíça, à sua filha Tânia, ou ir para Paris, para junto de Jasia, que para ela era como uma segunda filha. À noite, colocando uns óculos suíços no nariz em forma de pêra, ela mergulha nas profundezas doces, nas alamedas escuras, nas águas primaveris… Deste modo, Ulitskaya afirma a literatura como forma de dar um sentido final à existência. Não nega a vida, mas nega que esta tenha sentido fora da arte, que é esta, em última análise, que integra o heteróclito das vivências numa unidade da qual se pode contar uma história e, desse modo, retirá-la do sepulcro do esquecimento.

 

terça-feira, 12 de julho de 2022

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores


Concluído em 1957 e publicado em 1959, o romance A Cidade das Flores é a primeira obra de Augusto Abelaira. A trama – melhor, as diversas tramas que compõem o discurso romanesco – desenrola-se em Florença, num período em que o regime fascista de Benito Mussolini estava consolidado e a Itália preparava-se para entrar na segunda guerra mundial. As personagens – jovens – pertencem à classe média de Florença e vivem o drama de uma consciência dilacerada perante a situação que o país vive, os seus valores morais e a sua impotência para agir. O autor terá deslocado o espaço romanesco para um lugar fora do território nacional para iludir a censura, naquilo que seria, também, um questionamento da situação portuguesa, do regime autoritário de Oliveira Salazar, e de uma geração de portugueses oposicionistas ao regime, provenientes da classe média, mas com um pathos muito diferente daquele que habita os protagonistas do romance neo-realista em voga desde a década de quarenta.

O que ocupa o espírito daqueles jovens não será tanto os problemas da igualdade e da justiça social, mas o da liberdade que lhes era negada. Esta questão orienta o romance para o problema das subjectividades, da sua construção e do confronto dessas subjectividades com o peso da realidade. São subjectividades questionadoras mais, muito mais, do que subjectividades actuantes ou militantes. Questionam-se sobre o sentido da vida, sobre o amor, sobre a acção política, sobre a moralidade e o dever fazer. Não têm certezas, mas dúvidas. Esta natureza das personagens conduz a uma situação paradoxal que está no centro do romance. Todos os protagonistas provêem de famílias burguesas, com conhecimento da arte, da literatura, da música erudita. Ora, o que marca a burguesia europeia – o terceiro estado – é o seu dinamismo, a iniciativa, o facto de terem elegido a acção para se afirmarem contra a aristocracia e, posteriormente, ocuparem o poder no mundo. Para compreender o romance não basta sublinhar a inércia dos resistentes, é necessário considerar o paradoxo central que atravessa os jovens burgueses. A tensão entre a acção (a não acção) e as preocupações morais e filosóficas que essas personagens encarnam. Essa tensão traz para o centro do romance o velho conflito entre a acção e a contemplação, entre a praxis e a theoria.

A solução que o romance de Abelaira oferece parece ser aquela que não agrada a ninguém, nem aos homens práticos, nem aos contemplativos. Naquele grupo de jovens, apenas um se engaja no combate político, vive na clandestinidade. O problema é que a sua acção é marcada por um terrível equívoco. Ao perpetrar um atentado contra um comboio, confunde aquele que transportava pessoas com o que transportava combustível para fornecer o exército nazi. Este facto não é uma mera peripécia na narrativa, mas um juízo cruel sobre o poder da acção na transformação do mundo, aproximando de forma perigosa um acto político e um acto meramente criminal. Por outro lado, os jovens contemplativos conduzem as suas existências a becos sem saída, como se tivessem absorvido um pathos ético que vem do spleen de Baudelaire, até à náusea de Sartre, passando pelo absurdo de Camus. Na economia romanesca, nenhum destes partidos – o da acção e o da contemplação – sai vitorioso.

Mais do que um libelo antifascista – ou anti-salazarista – o romance de Abelaira explora a situação extrema posta por um regime autoritário para testar a humanidade, os seus valores morais, a força das suas convicções e o poder das suas ilusões. Não toda a humanidade, mas aquela que se filia na tradição da subjectividade, da consciência de si, na afirmação do indivíduo. No fundo, é um questionamento daquilo a que se pode chamar a tradição liberal. Como é que os indivíduos que lhe pertencem podem lidar com situações de extrema opressão, como podem conjugar os seus valores morais e a realidade que lhes é adversa? Giovanni Fazio, a personagem principal do romance, tem uma solução. Escrever um romance utópico, precisamente A Cidade das Flores. Esta ideia nunca concretizada, apenas esboçada, permite, todavia, compreender uma outra questão, a denominada reterritorialização presente no romance.

Lisboa dos anos cinquenta, com o seu ambiente oposicionista, terá sido reterritorializada em Florença, dos finais dos anos trinta, um ardil para iludir os censores portugueses. Contudo a reterritorialização romanesca é mais do que um estratagema. É um momento de transição para a desterritorialização. Colocar a acção romanesca em Florença – numa Florença já inexistente – é um passo que ganha o seu sentido pleno no desígnio de Fazio de escrever uma utopia. Qualquer utopia é uma desterritorialização, um aniquilamento do espaço real em proveito de um não-espaço, de um não-território. Considera-se, muitas vezes, as utopias como uma abertura dos possíveis mais próprios da humanidade, mas não se atenta que elas são confissões da dificuldade – senão da impossibilidade – de lidar com esse território de que fazemos parte e dos caminhos que nele estão inscritos. O romance de Abelaira, marcado por um apuramento técnico e estético longe dos cânones do neo-realismo, coloca-nos nessa encruzilhada em que a grande tentação é não escolher qualquer caminho possível, mas desejar um território e um caminho que não existem e não poderão existir. Na verdade, é entregar-se a uma visão pessimista da acção e procurar um refúgio que sirva de colírio à alma dilacerada pelo conflito entre o real e o possível.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Italo Svevo, A Consciência de Zeno

Uma autobiografia publicada por vingança. É deste modo que o Doutor S., o psicanalista de Zeno Cosini, numa espécie de prefácio, apresenta o livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, publicado em Bolonha, no ano de 1923. A intervenção prefacial do Doutor S., contudo, faz parte da trama romanesca. Ao paciente, Zeno (filho de um comerciante rico, que se sente inepto e doente, a quem o pai não confia, mesmo depois de morto, os seus negócios), é solicitado, como fazendo parte do método de tratamento, que escreva uma espécie de autobiografia. O ele que faz e entrega ao cuidado do psicanalista. Contudo, quando, segundo este, se aproximava da cura, Zeno abandona o tratamento. Como um amante traído, S. publica o texto do seu paciente. A obra explora a consciência do protagonista e é um dos textos fundamentais da literatura do século XX, com a sua exploração da consciência, com uma utilização rigorosíssima da linguagem comum, sem, no entanto, se deixar envolver pelo senso comum. É um dos grandes romances formalmente inovadores no tratamento da subjectividade, no uso da corrente de consciência, ao lado dos de James Joyce ou de Knut Hamsun.

O texto de Zeno estrutura-se em torno de seis pontos: 1. A relação com o tabaco; 2. A relação conflitual com o pai; 3. A história do seu casamento (melhor, do seu noivado); 4. A relação com a mulher e com a amante; 5. A relação comercial com um seu cunhado que, por acaso, casou com a mulher que Zeno amava e irmã daquela com quem, na realidade, casou; 6. Psicanálise e cura. Há na cultura ocidental uma longa tradição confessional, cujo ponto decisivo é Agostinho de Hipona e as suas Confissões, que emergiram na sequência da conversão ao cristianismo. Apesar de não haver uma relação directa entre o texto de Santo Agostinho e o de Svevo, pois o primeiro estabelece-se num processo narrativo que se pretende não ficcional, o que não se passa com o segundo, e ainda, no caso de Agostinho, haver uma reflexão filosófica em torno de problemas religiosos e metafísicos, o que não acontece na autobiografia de Zeno, há uma estreita relação entre o problema da conversão e o da cura. Toda a conversão é sentida como uma cura, a cura do modo como o sujeito se relacionava com o mundo, assim como toda a cura é uma conversão – pela persuasão – a um novo modo de ser, a um modo de ser saudável.

O texto apresenta-se como uma rememoração, um trabalho sobre a memória de acontecimentos passados, já longínquos. Quando, em 1915, Zeno empreende o tratamento psicanalítico, é já um homem velho, segundo os padrões da época. Muitos dos acontecimentos narrados passam-se muitos anos antes. O trabalho sobre a memória tem sempre um risco, o da infidelidade. Isso é sublinhado pelo Doutor S. que ao acabar o seu pequeno texto inicial afirma: Se (Zeno) adivinhasse as surpresas que lhe reservava o comentário do monte de verdades e mentiras que acumulou nas páginas seguintes! Esta intervenção da mentira – isto é, da infidelidade da memória aos factos – coloca o romance de Svevo como uma metaficção, a ficção de uma ficção. O leitor, logo à entrada da obra, é avisado que uma parte do que vai ler é falso. Contudo, não sabe o que é verdadeiro e o que é falso. Esta é uma estratégia ousada para reforçar, no próprio leitor, a suspensão da descrença, a qual, como ensina Coleridge, é fundamental para seguir a trama narrativa de uma obra ficcional. A infidelidade memorial alimenta a crença do leitor na verdade da ficção que tem diante de si.

O romance do Svevo não deve ser desligado da aventura da modernidade ocidental. Do ponto de vista literário, podemos vê-la emergir com o Dom Quixote, de Cervantes. Do ponto de vista filosófico, todavia, o momento fundamental é o pensamento cartesiano. Pode estabelecer-se entre esses dois momentos proveitosas relações. Quixote sofria de um problema epistémico grave, confundia o que desejava ver com a realidade, mergulhado num universo de fantasias e ilusões. Descartes, por seu turno, pretendeu encontrar um caminho em que se eliminassem as ilusões, em que a verdade fosse possível. Ora, é este projecto cartesiano que, de um outro modo, a psicanálise recupera. A terapia psicanalítica pretende conduzir o paciente à descoberta das situações traumáticas (a descoberta da verdade que o inconsciente oculta) que dão origem a comportamentos anómalos. Ora, o facto de Zeno recusar terminar o tratamento e considerar-se curado, ao contrário da pretensão do psicanalista, é uma crítica frontal à psicanálise e à crença que ela encerra sobre a possibilidade de se chegar à verdade. Nos seus apontamentos finais, Zeno escreve: Julga ele (o Doutor S.) que vai receber a confissão dum doente, dum fraco. Pois engana-se! Receberá a descrição duma saúde sólida, perfeita – tanto quanto o permite a minha idade. Não só não quero entregar-me à psicanálise como já não tenho necessidade dela. E, se falo da minha saúde, não é só por sentir que sou privilegiado entre tantos mártires. Não é por comparação que digo que estou saudável, é de modo absoluto. Isto significa, também, uma crítica à tradição originada em Descartes e uma afirmação da filiação do romance na tradição romanesca nascida com Cervantes. Zeno estava saudável, porque se persuadiu que estava saudável: Há muito sabia eu que a saúde, para mim, não podia ser outra coisa além da convicção de estar perfeito e que é tolice digna dum sonhador hipnagógico querer «tratar-me» e não persuadir-me. A realidade não é outra coisa senão aquilo que dela fazem os dispositivos retóricos mobilizados para essa tarefa que é a persuasão. Dito de um outro modo, a verdade é aquilo de que me convenço ser a verdade.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros


Publicado originalmente em 1863, Lágrimas e tesouros – fragmento de uma história verdadeira, de Luís Augusto Rebelo da Silva, é um romance histórico cuja acção se situa durante o reinado de Maria I, a Piedosa, também cognominada a Louca. Inserido na corrente estética do romantismo, a obra parece centrar-se na suposta paixão entre Maria de Meneses, filha do então estribeiro-mor da Rainha, o Marquês de Marialva, e o inglês William Beckford, então em viagem por Portugal, para, segundo o autor, curar o profundo desgosto pela morte da mulher, Margarida, embora as razões da viagem de Beckford pela Europa pareçam ter sido outras. Em torno deste amor luso-britânico, contudo, desenrola-se o jogo da política e, também, da religião, as quais naquela hora ainda se misturavam.

A tensão amorosa deve-se não a um obstáculo formal e exterior aos apaixonados, como a pertença a famílias inimigas, mas por um conflito que, apesar de vir de fora, é subjectivado e torna-se um conflito dentro da consciência. Trata-se da oposição entre tradições religiosas, o catolicismo de Maria de Meneses e o protestantismo de Beckford. Este recusa-se a uma conversão à Igreja de Roma, pois ofenderia com isso a memória dos pais, seria uma apostasia. Ela, tomada pelo escrúpulo religioso de casar com alguém fora da sua religião e pelo temor perante um amor que não pode prosseguir na vida eterna, assumindo que ela, como católica, teria à sua espera o paraíso, e ele, como herege protestante, estaria condenado à perdição. O tormento nas consciências, principalmente na da rapariga, é o nó do caso amoroso e tem um papel fundamental no desenlace. Rebelo da Silva serve-se da personagem Maria para, de algum modo, espelhar a própria Rainha perdida no labirinto da consciência, no temor pela condenação eterna do pai, devido às perseguições políticas de Pombal contra uma parte substancial da aristocracia da época, no temor da sua própria condenação.

O que será mais estranho, para um leitor do século XXI, é o pathos em que o amor, entre a filha do marquês de Marialva e o jovem viúvo inglês, é declinado. Há toda uma linguagem artificiosa, uma declamação da paixão e da pureza que se nos tornaram estranhas. Contudo, essa artificialidade do discurso amoroso serve para sublinhar o contraste entre a nobreza do de um amor puro, nascido do sentimento, e a vulgaridades dos negócios públicos e da política. É um exercício retórico romântico que sublinha o valor da interioridade por oposição ao mundanismo. A partir das estratégias retóricas seleccionadas, Rebelo da Silva manifesta a oposição radical entre o mundo do coração e o mundo da razão política. De modo bem diverso da tragédia grega, as acções dos seres humanos nobres fundam-se na pureza do coração, enquanto a acção no palco político, mesmo se os agentes são aristocratas, nunca deixa de parecer uma comédia, onde se representam as paixões dos homens vulgares.

A trama política gira em torno de uma aliança entre a aristocracia ainda dorida pelo tratamento a que foi submetida por Pombal e a Companhia de Jesus. Pretende-se manobrar de modo a que a Rainha, presa na sua debilidade mental e no terror religioso, anule, por decisão política, as condenações a que as várias famílias aristocráticas foram sujeitas, bem como a expulsão dos Jesuítas. Há, no romance, um paralelismo entre a consciência dilacerada de Maria I e a de jovem Maria de Meneses. Esta, como se escreveu acima, vive o conflito entre o amor e a fé, uma fé rigorosa e o medo do juízo eterno. A consciência da Rainha cinde-se também entre o amor à honra e à memória do pai – uma reabilitação dos condenados seria uma condenação do pai – e o dever de caridade e misericórdia, que lhe poderia evitar a condenação depois da morte. No cenário político, movem-se três facções. A dos fiéis a Pombal, que pretendem evitar qualquer revisão dos processos, incluindo a condenação da posteridade dos culpados. A dos que pretendem uma revisão total e anulação das condenações e aqueles que, de um modo aristotélico, pretendem encontrar um meio termo, partido em que é envolvido, pelo talento de um jesuíta, Beckford. Não querem tanto a absolvição dos condenados, mas um acto de misericórdia para os descendentes que, na verdade, são inocentes.

Rebelo da Silva, a partir deste conflito, dá a ver a natureza da corte, das forças que jogam de modo dissimulado, como se toda a realidade – feita de múltiplos desejos, da busca desesperada de reconhecimento, de uma luta sem fim e sem escrúpulos – se escondesse atrás da afabilidade das convenções palacianas. Não esquece o retrato da Companhia de Jesus, ainda banida no país durante o tempo da acção narrativa, da sua capacidade diplomática, do seu poder de manobra, da sua inteligência táctica e da sua moderação religiosa, adversária do fanatismo a que hoje chamaríamos fundamentalismo religioso. Também os Jesuítas esperam reverter a sua situação. Qualquer revisão do processo dos aristocratas seria uma porta aberta para a Companhia fazer valer os seus direitos. 

O romance é um hábil jogo de espelhos, em que Maria de Meneses, a jovem apaixonada e temerosa do juízo divino, e Maria de Bragança, a rainha dividida e atormentada pelo temor do inferno, se reflectem uma à outra. Entre elas, uma na sua inocência virginal e a outra na inocência da loucura, desenrola-se um carnaval sem fim, feito vaidades, orgulhos feridos, vinganças, enganos, traições, alianças tácticas e rupturas estratégicas, feito de poderes dissimulados e de submissões sem carácter, isto é, tecido com o fio da própria vida. As duas mulheres são, na verdade, presenças metafísicas. A Rainha não entra na trama romanesca, mas é uma sombra que paira sobre ela. A filha do marquês de Marialva, a heroína do romance, é uma bela sombra encarnada, uma presença metafísica que entra no jogo, mas que não lhe pertence. Um anjo, caso os anjos tivessem sexo. Entre elas e a suas belas e atormentadas consciências, decorre o jogo em que as consciências se conspurcam para poderem gritar vitória ou apenas para sobreviverem.