quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Thomas Bernhard, Perturbação


Publicado em 1967, Perturbação (Verstörung) é o segundo romance do escritor austríaco Thomas Bernhard. O autor faz parte de uma linhagem notável de escritores austríacos, onde se inscrevem Robert Musil e Hermann Broch. Como nestes autores, também em Bernhard encontramos uma literatura que mais do que contar histórias pretende desvelar a realidade não apenas do mundo humano, mas do próprio mundo que se manifesta através da humanidade. Se o leitor pretender uma boa história, com uma intriga bem urdida e um desenlace de cortar a respiração, então não vale a pena abrir o romance. Se, todavia, achar que a arte, no caso a literatura, é um lugar de aprendizagem e de reflexão sobre aquilo que é essencial e um questionamento sobre o sentido da existência, então terá no escritor austríaco uma proverbial companhia.

O livro parte de uma ideia simples. Um médico da zona dos Alpes austríacos perante a incomunicabilidade crescente entre ele os dois filhos, agravada com a morte da mulher, decide convidar o mais velho, estudante de engenharia de minas e com a pretensão de se tornar cientista, a acompanhá-lo num dia de visitas aos pacientes que tem nas diversas aldeias. A ideia seria lançar uma ponte para estabelecimento de comunicação. O tempo romanesco corresponde assim apenas a um dia, a uma viagem de um dia pelo mundo dos enfermos tratados pelo pai. Se olharmos para a ordem do mundo, faz parte dela a doença. Esta, na verdade, não representa uma perturbação, mas apenas um elemento negativo em tensão com a saúde, tal como a morte se encontra em tensão com a vida, fazendo ambas parte de um mundo organizado e não caótico. O que o jovem candidato a cientista, um representante da racionalidade, e narrador, vai descobrir é uma realidade profundamente perturbada, muito além – ou aquém – da doença. O mundo rural da montanha que descreve Bernhard está longe da imagem idealizada da ruralidade que ainda hoje transportamos. Pelo contrário, é um mundo brutal, violento e profundamente perverso, onde o assassinato, a violação de crianças e o suicídio parecem ser correntes. Se se pensar que o mundo rural é o lugar onde persistem as sagradas normas da moralidade, as descrições de Bernhard são um terrível soco no estômago. Todo aquele mundo sofre, para além da doença física, uma doença moral resultante de uma incomunicabilidade entre os seres humanos, reflexo de uma perturbação radical da ordem do mundo.

Este mundo é descrito na primeira parte do romance, através dos diversos pacientes do pai do narrador. Esta primeira parte da viagem do jovem é uma verdadeira peregrinatio ad loca infecta, uma iniciação à vida tal como ela é. A segunda e última parte, mais de metade do romance, narra a visita ao príncipe Saurau, um grande latifundiário, cuja sombra se estende por toda aquela zona montanhosa. Aquilo que o narrador descreve é o longuíssimo monólogo do príncipe que se estende por cerca de 140 páginas. Tudo aquilo que inquieta, desassossega e perturba o príncipe é objecto do seu monólogo. As relações familiares, as relações com o mundo envolvente, o futuro da sua propriedade. Tudo é passado em revista, tecendo o príncipe comentários contraditórios, produzindo afirmações que se anulam entre si, deduzindo conclusões sustentadas por premissas inverosímeis. A questão central, porém, é a relação com o filho, e herdeiro único, e por causa disso a profunda preocupação com o futuro de Hochgobernitz, a propriedade da família, com os seus interesses económicos diversificados e o grande número de pessoas dependentes dos Saurau.

Se a incomunicabilidade entre o médico e o filho/narrador é grande, este assiste à exposição de uma incomunicabilidade mais radical. Um dos momentos mais extraordinários do monólogo do príncipe é quando este, numa espécie de prolepse profética, descreve minuciosamente a destruição de Hochgobernitz pelo filho, após a sua morte. É uma destruição que é apresentada como se fosse uma luta de alguém que se afastou para Londres e se pretende defender de tudo o que há de perturbante naqueles lugares, na sua própria família, nas gentes que dependem ou vivem na área de influência dos Saurau. O facto de o filho do médico assistir ao discurso do príncipe é o ritual final da cerimónia iniciática ao mundo da vida como desrazão, iniciada na primeira parte, em que foi tomando conhecimento da perturbação do mundo rural. O jovem candidato a cientista toma conhecimento de uma outra realidade onde a razão com os seus imperativos técnicos e morais não funciona.

Existem algumas leituras do romance que defendem que a principal personagem é a morte. É verdade que em diversas passagens a morte se encontra presente, seja num homicídio, seja num cancro em estado avançado, seja no suicídio. Todavia, como se disse acima, a morte faz parte de uma ordem e de um cosmos, não representando aí qualquer perturbação. Não será perda de tempo dar atenção à epígrafe escolhida, por Bernhard, para abrir o romance. Trata-se do célebre fragmento 206 de Pascal: Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie (O silêncio eterno destes espaços infinitos assusta-me). Ora aquilo que, no início dos tempos modernos, descoberto a partir dos trabalhos de Galileu, se apresentou com algo assustador, não deixou de crescer com o passar dos séculos até se tornar uma grande perturbação, uma incapacidade de encontrar uma orientação existencial e, como descobre na sua delirante eloquência o príncipe, para estruturar um futuro. Esta perturbação nasceu no momento em que o homem olhou o céu e nele apenas viu um silêncio eterno de espaços vazios.

sábado, 22 de agosto de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Estío

Depois da Sonata de Outono (1902), o primeiro romance da tetralogia conhecida como Sonatas, Valle-Inclán publica, em 1903, o segundo volume das memórias amorosas do Marquês de Bradomín, com o título, em castelhano, Sonata de Estío. A ordem de publicação dos romances não obedece à ordem cronológica das aventuras galantes deste marquês, um dândi galante, feio, católico e sentimental, tal como ele se define. A tetralogia inicia-se com as aventuras da idade outonal, onde a maturidade se prepara para dar lugar à velhice, seguem-se as aventuras estivais, as de uma primeira maturidade. O terceiro volume, Sonata de Primavera, retrocede aos tempos de juventude do inveterado conquistador e a série conclui-se com a Sonata de Invierno. O Marquês de Bradomín é uma reinterpretação do mito, muito espanhol, de D. Juan. No entanto, esta reinterpretação é profundamente irónica, como se torna patente em Sonata de Estío.

O amável e amoroso marquês decide fazer uma viagem para o México. Um triplo objectivo o guiava. Conhecer os bens de família que por lá herdou, reviver a conquista espanhola daqueles territórios e esquecer uma certa Lilí que o traíra. Estamos assim, ao entrar no romance, perante um D. Juan seduzido e abandonado, que sente necessidade de mudar de lugar para se recompor da falência amorosa. A ironia de Valle-Inclán acentua-se na tensão entre o D. Juan conquistado e abandonado e a necessidade compensatória de reviver a conquista espanhola de novos mundos. Uma das linhas de leitura do romance é então o jogo de compensações que enquadravam a aventura galante deste dândi quixotesco. Tudo isto não deixa de lançar uma sombra sobre a época áurea castelhana. Todo aquele processo de submissão dos povos ameríndios teria sido, também ele, a compensação de que frustração espanhola?

Esta linha de subtil reflexão histórica emerge também numa cena rocambolesca em que o Marquês de Bradomín enfrenta corajosamente um grupo de bandidos para defender a vida de Juan Guzman, um homem com aspecto corajoso e nobre, mas na verdade um bandoleiro como aqueles que o atacavam. Ao tomar conhecimento do tipo de homem que tinha salvo, lamentou-se da decadência dos tempos. Na época da conquista colonial, homens como aquele teriam sido elevados à condição de nobres pelos serviços prestados à coroa, mas hoje em dia, numa antiga colónia agora independente, não passam de criminosos. Aquilo que nos tempos gloriosos da conquista seria motivo de glória é, agora, motivo de castigo. Não é a crítica histórica ou política que dá o conteúdo ao romance. Aparece incidentalmente, sempre envolta na ironia, como acontece quando Bradomín se depara com o mordomo do palácio que herdara no México, um velho soldado que conspira para reconquistar o México e a partir daí colocar na coroa espanhola Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias, naquilo que ficou conhecido como o movimento carlista, de natureza tradicionalista, antiliberal e absolutista, que esteve na origem de três guerras civis em Espanha, durante o século XIX.

A obra gira em torno da nova paixão do marquês, agora por uma crioula, uma mulher de beleza espantosa, a Niña Chole e que, de alguma maneira, lhe recordava a traidora Lilí, um novo jogo compensatório. Esta mulher, porém, é filha e amante de um terrível militar mexicano, o general Bermúdez, que, se descobre que ela se envolve com o marquês, não hesitará em matar ambos. Como já acontecera, de certa forma, no primeiro romance da tetralogia, a Sonata de Otoño, também aqui emergem motivos que se integram numa área que, na altura da publicação dos romances, estava a consolidar-se, a psicanálise, podendo o incesto entre o general e a filha ser lido como uma refiguração do complexo de Electra, para usar uma designação de Carl-Gustav Jung. O conjunto de peripécias amorosas entre Bradomín e Niña Chole é todo ele atravessado por situações equívocas, nas quais a conduta do nobre galego parece desacordar-se com a imagem que dá de si mesmo. Na verdade, não apenas o marquês não passa de um D. Juan pífio, como a coragem e ousadia são dúbias. Valle-Inclán é notável no uso de processos que, numa primeira leitura, parecem dizer uma coisa, mas que, na verdade, não deixam de sugerir o contrário do que afirmam.

Notável é a capacidade do escritor galego em recriar ambientes. As suas descrições do Novo Mundo são extraordinárias, dando-lhes uma vida exuberante, salientando o que naquelas paragens é excessivo e perigoso, mas ao mesmo tempo extremamente atractivo para quem nasceu na Europa, num mundo muito mais contido e cinzento. A descrição da exuberância da paisagem mexicana e dos ambientes sociais é ainda perpassada por uma grande sensualidade, a qual, claro, não emana do marquês, mas da bela crioula. Se se meditar no título da novela, o Estio encontra-se mais na própria paisagem e ambiências do que na idade do marquês. Tudo isto torna um pequeno romance de aparência simples – estruturado em torno dos delíquios de Eros – numa obra complexa, que permite diversas e contraditórias linhas de leitura, tal como sucede com a primeira Sonata.

sábado, 8 de agosto de 2020

Carlos Fuentes, Aura


A fortuna da obra é quase inversamente proporcional ao seu tamanho. Aura é uma pequena novela publicada em 1962 pelo escritor mexicano Carlos Fuentes. Desenrola-se numa ambiência própria à literatura gótica e essa não será a menor das razões que estará na base do seu sucesso. São múltiplas as leituras – a que de certa forma o próprio escritor dará fundamento – que vêem na novela um exercício simbólico de feitiçaria. Aliás, Fuentes convoca para epígrafe uma citação de La Sorcière, de Jules Michelet. Essas leituras, que fazem uma hermenêutica exaustiva de todos os elementos da obra, desde os nomes dos personagens até aos animais e plantas nela referidas, passando pelos acontecimentos em que se estrutura a acção, são plausíveis. No entanto, é possível uma outra leitura que, não negando o compromisso da obra com esse mundo, tente encontrar aquilo que a literatura questiona e procura na forma de experiência literária.

Por norma, as narrativas são feitas na primeira ou na terceira pessoas. Aura, todavia, é narrada na segunda pessoa, o que introduz de imediato um elemento de perturbação. Logo no início diz-se: Lês esse anúncio: uma oferta dessa natureza não se faz todos os dias. Lês e relês o aviso. Parece dirigido a ti, a ninguém mais. Toda a narrativa é feita neste registo. À partida, o narrador parece dirigir-se para o leitor, como se este fosse o protagonista, como se ele estivesse envolvido nos acontecimentos. No entanto, pode ser também uma estratégia narrativa que leve à letra o dito platónico que afirma que pensar é falar consigo mesmo, uma espécie de diálogo em que o eu se cinde artificialmente para tentar alcançar a verdade. Pode ainda ser uma radicalização do topos platónico, o eu se tenha cindido efectivamente, e o tu seja uma forma coloquial com que o eu se dirige a um tu que é e não é ele mesmo. Seja como for, o primeiro efeito literário está conseguido. Há um efectivo questionamento da identidade do eu. Esta ideia será a chave que pode permitir uma leitura da obra que não se perca nos efeitos góticos com que ela é construída.

Um anúncio num jornal, prometendo um salário generoso e acomodação condigna para a tarefa a realizar, pede alguém, do sexo masculino, que domine o francês e seja historiador. Felipe Montero responde a esse anúncio. Trata-se de ordenar e completar as memórias, escritas em francês, de um homem ligado à revolução mexicana, o General Llorente, que terá morrido há sessenta anos. Quem o pede é a viúva do militar, Consuelo Llorente, que, pelos cálculos que a certa altura o historiador faz, terá então 109 anos. Não tem muito tempo, dirá ela, para publicar as memórias do marido. Vive acompanhada por uma sobrinha, Aura, que, para sobrinha de uma mulher mais que centenária é surpreendentemente jovem. Os olhos verdes dela fazem de imediato Montero apaixonar-se. É entre estes três personagens que se desenrola a trama narrativa, que segue, sem nunca o afirmar explicitamente, o fio de um ritual de feitiçaria, segundo alguns intérpretes da obra.

Aquilo que o leitor vai encontrar de imediato é a ambiguidade das personagens. Será que Aura existe mesmo ou não passa de uma projecção de Consuelo? E a Aura com que Felipe faz amor será mesmo a Aura, ou será na verdade Consuelo ou, ainda, o feminino que habita em Felipe e que, no decorrer da trama narrativa, se separa de si mesmo, simbolizando o acto sexual o desejo de união que todo o ser humano aspira a realizar consigo mesmo, pois todos os seres racionais sofrem desse sentimento de cisão consigo e a concomitante nostalgia de um estado existencial onde estariam completos. Há uma clara utilização do mito do andrógino original narrado por Platão. Por outro lado, também não é claro que Felipe não seja uma metamorfose do próprio General Llorente, cuja parecença ele descobre numas velhas fotografias.

Ao lado do problema da identidade pessoal, outras são trabalhados e que se entretecem com ele. Salientem-se apenas três. Em primeiro lugar, o problema do espaço. Pode-se recorrer à distinção introduzida por Mircea Eliade entre espaço profano e espaço sagrado. Ao entrar na casa de Consuelo Llorente, Felipe Montero abandona o espaço profano da vida quotidiana e entre no espaço sagrado onde decorre a acção. O que é interessante, no entanto, não é associar o espaço onde decorre a narrativa à sacralidade devido ao facto de nele ocorrer, eventualmente, um ritual de feitiçaria, mas perceber que toda a literatura vive da distinção que Mircea Eliade observou no fenómeno religioso. A arte, a literatura narrativa, no caso, introduz uma cisão no espaço, sacralizando aquele onde decorre a narrativa, por oposição ao espaço profano da vida real.

Em segundo lugar, o problema do tempo. A vida quotidiana decorre segundo a regra do calendário. Vivemos inquestionadamente num presente. Recordamos o que se passou e apontamos a seta dos nossos temores e desejos para o que há-de vir. O tempo é vivido como uma linha contínua, que se desloca uniformemente do passado para o futuro. O que a novela de Fuentes faz é questionar essa compreensão do tempo. O tempo de amor entre Consuelo e o General não está apenas num passado irremediável que a morte de um pôs fim. Esse amor torna-se presente, pois Aura é a mulher que o General amou e Felipe é o General amado por Consuelo. Esse tempo compreendido como uma seta arremessada no início do mundo em direcção ao seu fim pode não ser mais que uma capa ilusória de um outro tempo, mais real que se vai manifestando no tempo do calendário.

Por fim, o problema do amor. A novela de Fuentes abra para um conjunto de interrogações sobre a natureza do amor, sobre quem ama aquele que ama, sobre a persistência do amor para além da morte. Contrariamente a um exercício filosófico que tentaria dar resposta a estas questões, expondo teses e argumentos, a literatura enfatiza os próprios problemas, dá-lhes um corpo, para que elas não despareçam e continuem a atormentar o homem. O notável em Aura é que no final estas questões tornam-se mais vivas, mais perturbantes, mais inquietantes. Ela rapta o amor do hábito, da sua quotidianidade e torna-o sujeito de questionamento, como se apenas na inquietação do questionamento de si mesmo o amor fosse possível. Ora, isto mostra, por fim, que o amor vive fundado num princípio de incerteza e é este princípio que o alimenta.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ernst Jünger, El Teniente Sturm


A pequena obra El Teniente Sturm, do escritor e pensador alemão Ernst Jünger, foi publicada pela primeira vez em 1923, como romance-folhetim nas páginas do Hannoverscher Kurier, e, nos anos sessenta do século passado, integrada nas obras completas do autor. Trata-se de um romance que tem como pano de fundo a relação entre arte e vida observada a partir da tensão entre literatura e guerra. O baptismo do personagem principal, o tenente Sturm, simboliza isso mesmo. Em alemão, Sturm significa tempestade, o que não será uma das piores metáforas para reflectir sobre a primeira grande guerra, cenário dos acontecimentos narrados. Por outro lado, a palavra tem de imediato uma conotação literária, evocando o movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) que, na Alemanha do século XVIII, afrontou as concepções estéticas provenientes de um certo classicismo e a influência francesa, e talvez, mas os analistas dividem-se, o próprio projecto da Aufklärung (Iluminismo).

O cenário é o das trincheiras numa frente de guerra onde se opõem tropas alemãs e inglesas. Sturm e dois outros oficiais de baixa patente, comandantes de pelotões, encontram-se no abrigo do primeiro, ao pôr-do-sol, para discutir a evolução da guerra e literatura. Sturm é um zoólogo formado em Heidelberg, mas essencialmente as suas preocupações são literárias. Quando não tem de estar em combate, passa o tempo a fazer esboços de personagens de um eventual futuro romance. Entre as discussões sobre a guerra e as sobre estética e literatura, Sturm lê esses esboços aos seus camaradas de armas. Jünger, um combatente voluntário da primeira grande guerra, medita sobre dois possíveis focos produtivos da obra de arte.

Aqueles que ficaram de fora da guerra e que hão escrever sobre ela e os que, como Sturm, escreverão a partir da experiência própria, do facto de estarem no centro dos acontecimentos. A arte nasce de uma esteticização da experiência ou é um produto da imaginação criadora que suspende os laços com a realidade? Se romance de Jünger é um exemplo do realismo, nas descrições de ambientes e das peripécias do combate, as personagens de Sturm – Tronck e Kiel – são idealizações produzidas a partir de um foco imaginário. Por um lado, um Tronck flâneur que, com elegância e fechado na sua solidão, passeia entre a massa, num exercício de esteticização de si, de maneira a que os olhos da multidão ou das mulheres se virem para ele. Kiel, por outro lado, é a idealização do indivíduo cuja força vital, ardente e violenta, o leva a rejeitar a ordem burguesa, a razão e a convenção, trocando tudo isso pelo sentimento, com as consequentes explosões de violência.

O romance contém também uma meditação sobre a guerra, o indivíduo e o Estado. A primeira grande guerra é um conflito em que a técnica é determinante para os resultados. Não é que a guerra, desde há muito, não tenha em si elementos tecnológicos, tanto ao nível das armas como da estratégia militar. O que se passa agora, porém, é que o desenvolvimento tecnológico aniquilou a ideia do confronto face-a-face com o inimigo. O indivíduo é submergido pelo aparato tecnológico, tornando-se uma mera célula num organismo gigantesco que combate contra outro organismo gigantesco. Na prática, o velho conceito de honra militar desaparece. Este desenvolvimento da guerra é concomitante ao desenvolvimento do Estado, o qual produz o mesmo efeito sobre os indivíduos na sociedade civil. São apenas pequenas rodas dentadas numa engrenagem mecânica desmedida.

Não se pense, contudo, que esta crítica ao peso desmesurado Estado e aos efeitos dele – e da guerra – sobre os indivíduos se inscreve numa perspectiva liberal, ou que anuncie, ainda que ao longe, os devaneios libertários, de um liberalismo radicalizado. Não é a individualidade do burguês, seja na empresa ou na universidade, que Jünger, no romance, lamenta. Isso faz parte de um mundo convencional, o qual transforma os indivíduos em meras repetições uns dos outros, submetidos à ditadura da massa, que se expressa através dos desejos de consumo. O indivíduo que o Estado mata é o homem que se singulariza pela acção ou pela arte, na verdade o aristocrata – entendendo-se a aristocracia como uma casta político-militar – e o artista. O primeiro seria um artista que, através da acção, configuraria a comunidade política, o segundo seria um guerreiro que dobraria a resistências da matéria à realização dos objectivos do espírito. O encontro, neste romance, entre guerra e literatura não é um acontecimento fortuito. Há em ambos o poder de configuração da realidade. Jünger, entre as duas guerras mundiais, é adepto do se chama revolução conservadora, um projecto político em confronto com a república de Weimar, o liberalismo e o marxismo. Como todo o revolucionário, vê na revolução um trabalho de artista. Resta saber se, com a morte da singularidade do guerreiro, não desaparece também a singularidade do artista. O leitor poderá encontrar uma resposta ao ler este pequeno romance de Ernst Jünger.

sábado, 1 de agosto de 2020

Anatole France, A Revolta dos Anjos


Estava-se no ano de 1914, um ano de má memória na história do mundo, quando foi publicado o romance A Revolta dos Anjos, de Anatole France. Não se trata de uma utopia ou, numa versão negativa, de uma distopia, nas quais se apreenda um aspecto particularmente sedutor ou decididamente repulsivo do poder político. Há, na verdade, uma prosaica meditação sobre o poder, mas ela é feita através de uma fantasiosa rebelião dos anjos contra o poder de Deus, a retomado do projecto luciferino de conquista do poder. A obra combina elementos teológicos com elementos políticos, como se fosse um sinal irónico sobre o que a história da Europa começaria a trazer com o advento das teologias políticas que foram ocupando, a partir de 1917, o poder em importantes países europeus.

No centro da intriga está uma decisão filosófica sobre a origem do conhecimento e da verdade. Não se trata, todavia, da querela entre racionalistas e empiristas, pendência marcadamente moderna, mas da questão sobre se o conhecimento autêntico tem uma origem divina ou humana, libelo trazido pelo fim daquilo a que se convencionou chamar, talvez com demasiada condescendência pelas opiniões renascentistas, Idade Média. Esse problema não é colocado por nenhum homem, mas por um anjo, um anjo da guarda de um dos protagonistas humanos da narrativa. A família Esparvieu tinha um hobby sério, demasiado sério. Coleccionava livros, não quaisquer livros, mas aqueles que de uma forma ou de outra se ligavam ao conhecimento, fossem de ciência, religião, filosofia. Fantasias da imaginação, como o romance, estavam excluídas. A colecção era, além de numerosa, muito valiosa, e acabou por exigir a contratação de um bibliotecário, o senhor Sariette, que fez dela e da sua ordem a razão da existência.

Os problemas começam quando súbitos e inexplicáveis desordenamentos e roubos de livros se sucedem. Se do ponto de vista físico não se encontram razões para estes acontecimentos, o mesmo não se passa do ponto de vista metafísico. Um dos Esparvieu, Maurice, tinha, para além de uma garçonnière, onde recebia as suas amantes, um anjo da guarda. E é após um encontro amoroso que o anjo se decide manifestar. A função aborrecia-o e decidiu, aproveitando-se da sua condição, estudar a biblioteca dos Esparvieu. Os acontecimentos inexplicáveis tinham uma explicação. A sede do conhecimento levou-o à luz e a luz conduziu-o à revolta contra o seu Senhor, que, via-o agora, era ávido de louvores, um tirano. Da blasfémia à revolta é um pequeno passo e o anjo demissionário de Maurice, como todo o revolucionário recém-convertido à revolução, deseja com ardor depor o tirano e colocar outro no seu lugar, neste caso Lúcifer, o anjo da luz.

Parte substancial da narrativa gira em torno da organização e preparação desse grande acontecimento que se haveria de passar no reino dos Céus, com o assalto final ao Castelo divino, deposição do Monarca absoluto e sua substituição pelo anjo da luz. O antigo anjo protector de Maurice começa a estabelecer, na Terra, ligações com os muitos anjos que tinham abandonado a suas antigas funções, dedicando-se a diversas ocupações, desde a conspiração terrorista até à jardinagem, passando pela sedução de mulheres. O descontentamento, como todos sabemos, não é uma prerrogativa dos homens. Antes deles, já os anjos se revoltaram com os resultados que todos sabemos. Os planos subversivos foram progredindo e tinham todas as possibilidades de saírem vencedores, não fora a recusa de Lúcifer em derrubar e ocupar o lugar de Deus.

A Revolta dos Anjos não é uma mera fantasia sobre o mundo do além e do aquém, uma espécie de antecipação da literatura fantástica que nos nossos dias tem tido tão grande fortuna. A obra é uma reflexão irónica sobre as ilusões políticas revolucionárias e algumas pretensões nascidas com o Iluminismo. A ironia nasce do próprio estatuto de verdade da obra romanesca. Recorde-se que na biblioteca dos Esparvieu, preocupada com o conhecimento e a verdade, o romance, produto da ficção, estava proscrito. Esta ironia não nega a possibilidade de haver uma verdade na ficção, mas questiona-a e, ao mesmo tempo, questiona, na economia do romance, se a verdade residirá no conhecimento proveniente da ciência, da filosofia e da teologia. Do ponto de vista da relação entre conhecimento e revolta política, isto é, entre o Iluminismo e Revolução, a ironia não é menor. O que torna o anjo da guarda de Maurice em revolucionário é o conhecimento. Este leva-o a negar Deus, ao mesmo tempo que O afirma ao pretender combatê-lo. Que a revolução não ocorra porque o futuro incumbente do trono se recuse a isso em nome da inutilidade do acontecimento, pois teria de desempenhar o papel daquele a quem derrubaria, não é a menor das ironias.