sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Hermann Ungar, Os Mutilados


Hermann Ungar (1893 – 1929) foi um escritor checoslovaco, de origem judaica e que escreveu em língua alemã. Os Mutilados (1923) é o primeiro dos seus dois romances. Ungar faz parte de um grupo de escritores judeus checos organizado em torno da figura de Max Brod e do qual também fez parte Franz Kafka. A morte prematura do escritor e a natureza tensa e obsessiva das suas obras, bem como a acção de algumas pessoas influentes nos meios literários, como o próprio Brod e Willy Haas, terão conduzido ao esquecimento da sua obra durante largas décadas. Isto, apesar da grande admiração de Thomas Mann – padrinho do filho de Ungar – e da obra Os Mutilados ter tido a honra de ser uma das primeiras a ser queimada pelos nazis, como exemplo de arte degenerada. Influenciado pelo expressionismo alemão e pela psicanálise, o romance é uma descida ao inferno, isto é, às obsessões e nevroses que habitam as pessoas e as mutilam.

Se se entender por mutilação a amputação de um membro, então apenas uma das personagens, Karl Fanta, é verdadeiramente um mutilado. Isto, porém, contraria o plural presente no título do romance. Todavia todas as cinco personagens em torno das quais gira a intriga – Franz Polzer, Klara Porges, Karl e Dora Fanta e o enfermeiro Sonntag – são, todas elas, de uma maneira ou de outra, mutiladas. A personagem central, Franz Polzer, é mutilada espiritualmente. A morte prematura da mãe, a vida numa casa pobre onde o pai, um pequeno merceeiro de província, e a irmã deste exerciam sobre ele uma violência contínua, assim como a suspeita de que o pai e a tia se entregavam a uma relação incestuosa, tudo isso criou em Polzer o temor não apenas pelo sexo feminino como pela espontaneidade da vida, com as suas incertezas e as suas ameaças. Estas são interiorizada como um caos, ao qual ele deveria fugir, através de uma vida regulada até aos ínfimos pormenores.

Quando o romance começa, Polzer é empregado num banco há dezassete anos, desde precisamente os 20. Amigo de infância de Karl Fanta, o filho de um rico judeu, acompanha este para a universidade, por generosidade do pai de Karl. Quando este, porém, fica doente e tem de abandonar os estudos, o velho Fanta cessa o apoio a Franz, empregando-o num banco. A vida de pequeno funcionário burocrático ganhou aí todo o sentido, através da organização meticulosa tanto dos horários – nunca faltou ao emprego, nunca chegou tarde – como do próprio trabalho que tem de desempenhar. O que mais teme este homem sem qualidades é o desconcerto desta realidade. O seu principal desiderato é manter-se invisível na rotina da grande organização. Vive num quarto alugado em casa de uma viúva, Klara Porges. É o único hóspede de uma mulher sexualmente demasiado activa e que acabaria por violá-lo, por lhe impor uma sexualidade que ele queria a todo o custo evitar. A sua fraqueza psicológica reflecte-se na sua incapacidade de resistir pela força ao desejo vulcânico da viúva. No entanto, não é apenas a imposição física da mulher que o dobra. A certa altura, Klara espanca-o com um cinto, numa cena de sadomasoquismo que remete para e experiência infantil de Polzer, quando era sovado pelo pai ou mesmo pela tia. A rejeição do sexo feminino funde-se na complacência para com a dominação e a submissão que, desde muito cedo, se inscreveram no seu inconsciente.

Quando o mundo de Polzer começa a desestruturar-se – a partir do momento em que a sua amante forçada lhe destrói a imagem de um santo, a única herança da mãe, e que ele tinha como o ponto no mundo de onde a ordem emanava – ele retoma relação com o seu amigo de infância, pelo qual terá sentido uma atracção homoerótica, assim como acontecerá pelo filho adolescente deste, Franz Fanta. Karl Fanta, devido a uma terrível doença, fora amputado das duas pernas e prepara-se para ser amputado de um braço. A sua condição existencial leva-o para um universo de suspeições acerca da vida da mulher, Dora, e das suas supostas intenções de o matar. Karl impõe uma relação de sujeição e arbítrio à mulher e tudo o que ela faça, seja tratar-lhe das feridas purulentas, seja ceder aos seus caprichos sexuais, apenas serve para confirmar a convicção de Karl de que a mulher conspira continuamente contra ele. A vida de ambos é um inferno, a dele porque a amputação física lhe destrói o discernimento e a razão, a dela porque sofre o exercício de um poder despótico a que não pode resistir.

Comportamentos obsessivos e neuróticos misturam-se com sexualidades pervertidas pela vida. Esta surge como o lugar onde não existe livre-arbítrio, capacidade para os agentes escolherem. Polzer não escolheu aquele pai e aquela tia que o maltrataram, nem sequer escolheu a viúva para amante. Tudo se lhe impôs. Também o rico Karl Fanta não escolheu a doença que o corrói. Os Mutilados é também um romance sobre a retracção do espaço de liberdade na vida dos homens. O essencial das suas existências não resulta de escolhas livres, mas consiste em coisas que lhes acontecem, como acontece uma trovoada ou um tsunami. É nesta ambiência que emerge ainda uma quinta personagem fundamental, o enfermeiro Sonntag, contratado para cuidar continuamente de Fanta. Antigo magarefe que não suportava a profissão, torna-se enfermeiro ao mesmo tempo que se converte a uma visão radicalizada do cristianismo, tomando a vida como o lugar de uma expiação contínua. A expiação resulta de uma revivescência incessante – uma revivescência obsessiva – dos actos pecaminosos, numa inversão da proibição bíblica de olhar para trás dada à família de Loth.

Se o que acontece com Karl Fanta e Franz Polzer não resulta de escolhas livres, se o mesmo se passa com Dora e a própria Klara Porges, que não escolheu ficar viúva nem sequer a sexualidade com que é dotada, uma possibilidade de introduzir a religião seria a de vincar o seu carácter emancipatório, a sua luta contra a submissão que o pecado impõe aos homens. Libertar os quatro do passado, fazer com que eles não se transformem estátuas de sal, tal como aconteceu à mulher de Loth. A intromissão da religiosidade pervertida de Sonntag é, claramente, a negação dessa possibilidade. O retorno contínuo da consciência ao passado, ao mal como forma de expiação. Isso significa, porém, que o expiador nunca encontrará o alívio da sua consciência, como se a remissão do mal fosse impossível. A mutilação emerge assim como o acontecimento em que o mal triunfa irremissivelmente sobre o bem e a vida é o inferno, esse lugar de expiação infinita. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Ernst Jünger, Heliópolis


O romance Heliópolis (1949), de Ernst Jünger, não foi até hoje traduzido para português europeu, embora exista tradução brasileira. Há também traduções em línguas acessíveis como o espanhol, o francês e o inglês. O título pode ser lido como uma referência, embora irónica, à obra utópica de Tommaso Campanella, A Cidade do Sol (1602), na qual se desenha uma sociedade comunista liderada por sacerdotes. Na realidade, Heliópolis é uma organização política que está longe de preencher os requisitos de perfeição e felicidade presentes nas utopias. Pelo contrário, fica na fronteira entre um mundo de ficção científica e uma distopia, como aquelas que foram criadas por Aldous Huxley e George Orwell. No entanto, se se tomar literalmente a palavra utopia – como um não lugar ou um lugar que não existe – Heliópolis é uma utopia, pois o espaço da acção, apesar de algumas referências ao mundo conhecido, é uma criação ficcional. Aliás, todo o romance põe em jogo uma geografia inexistente. O próprio tempo da narrativa é num futuro indeterminado.

O que está em jogo, porém, é a desenvolvimento espiritual da personagem principal, o comandante Lucius de Geer, a superação do seu compromisso com a acção política e o poder e a ascensão a novas concepções de poder e a novas formas de vida espiritual. Após uma guerra decisiva, de âmbito mundial, o vencedor, apenas referido como regente, que estabelecera uma ordem monárquica mundial, retira-se do palco político, desiludido por as suas concepções políticas não encontrarem eco na humanidade. Dá a si mesmo uma espécie de exílio no espaço, par onde se retirou com todo o armamento de grande alcance, e de onde vigia a Terra, mas sem intervir nos negócios políticos dos estados. É possível que esta figura de um regente do mundo exilado num espaço inacessível ao comum dos mortais seja um eco das considerações feitas por René Guénon, num livro publicado em 1927, Le Roi du Monde. O romance desenvolve-se nesta clareira aberta pela retirada do regente, que permitiu a emergência de vários estados na Terra, entre os quais o de Heliópolis.

Heliópolis vive uma estranha situação política marcada por dois pólos de poder. Por um lado, o Procônsul, por outro, o Perfeito. Como o poder real, o do Regente, não intervém, estes dois poderes entregam-se a um difícil jogo de equilíbrios, com ataques e conciliações, exercícios diplomáticos e planos para aniquilar a outra parte. Existe uma divisão de poderes, mas não a tradicional divisão nascida com a modernidade. O Procônsul domina os militares e a universidade. O Prefeito, a polícia, a imprensa e um estranho Instituo de Toxicologia. Domina também a ira popular que instiga, sempre que dá jeito, contra uma minoria conhecida como parsis, os quais são submetidos não poucas vezes a violentos pogroms. O confronto real é, todavia, mais do que político, espiritual. O Procônsul representa as forças de uma velha aristocracia política, militar e espiritual, forças que crêem na liberdade dos homens, entendida, antes de mais, como livre-arbítrio. O Prefeito, um hábil populista amado pelas massas, encabeça os que têm uma visão técnica do mundo, os que se servem da ciência apenas como ponto de partida para aumentar o poder tecnológico, tido como uma forma de dominação da natureza e da sociedade. Em resumo, uma visão determinista e mecânica do homem e do mundo. Não será deslocado ver no Perfeito e nas suas forças um retrato da essência do nazismo. Desde o poder sedutor do chefe até à perseguição dos parsis, uma etnia fictícia que encarna no romance o destino dos judeus, até ao culto do poder da técnica, tudo parece ser um retrato do nazismo.

 O comandante Lucius de Geer pertence às forças do Procônsul. É um alto quadro militar e diplomático, um homem de acção. O romance gira em torno do seu desenvolvimento espiritual, da sua inquietude perante os limites da acção e da sua busca por uma outra ordem que ultrapasse os quadros da velha tradição aristocrática. Constata que os métodos do seu próprio lado acabam por se degradar, perder a tensão espiritual que deveriam encarnar e aproximam-se, perigosamente, dos do lado do Perfeito, isto é, tornam-se meramente técnicos. Subjacente a estas apreciações, estão em conflito duas formas de ver a guerra e a própria acção. Por um lado, uma visão de que a guerra é uma espécie de iniciação espiritual, uma idealização das visões da guerra pré-moderna, na qual o guerreiro, tal como o contemplativo na oração e meditação, transcende a sua singularidade empírica. Por outro, a guerra como mera técnica, na qual o uso da tecnologia abole qualquer experiência espiritual, qualquer valor heróico, resumindo-se a guerra à gestão de homens e tecnologias e à contabilidade de mortos, de vitórias e derrotas. É o sentimento que o seu próprio lado se afasta da tradição aristocrática idealizada que abre no espírito do comandante à dúvida e a comportamentos que o conduzirão à queda dentro da hierarquia do Procônsul.

A dúvida e a queda são mediadas não apenas pelas reflexões do próprio comandante, mas também pela influência de um padre católico, padre Félix, um eremita que vive na montanha, cuidando de um apiário. O religioso é um dos mediadores da transformação espiritual de Lucius, assim como Budur Peri, uma jovem mulher, de origem parsi e norueguesa, também ela vítima das perseguições do Perfeito e das massas ignaras. Budur, devido às suas ligações com um tio, tem acesso a certas substâncias psicotrópicas. Num dos episódios, a noite do laurel, ambos se entregam a uma experiência com ópio, a qual será um momento decisivo de aproximação entre eles e que abrirá o caminho para seu casamento. A queda do comandante por um comportamento inadequado numa acção militar, que conduziu de forma vitoriosa e corajosa, é o momento em que ele abandona o caminho do velho aristocrata e se vai abrir a uma nova espiritualidade que o levará para a proximidade do Regente, o qual há-de voltar um dia para restabelecer a ordem no mundo, isto é, no seu reino. A queda, e quase todo o romance é a descrição daquilo que conduz Lucius à queda, foi a condição necessária da ascensão a uma outra dimensão da realidade e a outras experiências do espírito. Uma replicação romanesca da queda adâmica, a qual foi a condição necessária para a vinda da salvação crística.