quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Ivan Chmeliov, O Sol dos Mortos


O Sol dos Mortos, de Ivan Chmeliov, foi escrito em 1923, quando o autor se encontrava já exilado em Paris. A obra é uma das mais importantes na tematização da revolução soviética, a partir da experiência do terror vermelho e da grande fome que emergiu na Crimeia, em 1921, devido à seca de Verão e às pragas de gafanhotos, e que se prolongou até 1923. Lê-la, porém, como um mero documento de propaganda anticomunista é cometer uma injustiça tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista filosófico. Estamos perante uma obra de arte e não um panfleto ideológico.

É no capítulo “Pão com Sangue”, um dos últimos, que encontramos a chave que nos permite compreender aquilo o que é visado no romance. Perante o desespero de alguém, o narrador escreve:

Não o conhecem, não o viram – senhores apreciadores das «irrupções» humanas, entusiastas dos «atrevimentos»! Tudo isso é o «lubrificador» da maravilhosa máquina do Futuro, é o detrito e a escória do majestoso forno de fundição, em que se molda este Futuro! (pp. 227/8)

Todo o sofrimento e todo o desespero – os quais, muitas vezes, parecem ser eternos, sem uma Páscoa que os redima – são o contraponto da verdadeira alucinação com o futuro que se apoderou do homem moderno, do qual o homem soviético é uma das figuras. O problema do futuro não reside no próprio futuro, mas na ideia de que o Kairós, o tempo oportuno para que cada coisa se realize, pode ser ultrapassado, por uma decisão da vontade humana, e que os homens, através da acção política, podem acelerar a história. O romance de Chmeliov focaliza-se no resultado desta aceleração da história levada a efeito pelos bolcheviques. Lubrificar a máquina do futuro é passar a medida daquilo que é humano. Os comunistas russos são apenas uma encarnação dos apreciadores das «irrupções» humanas e dos entusiastas dos «atrevimentos».

O romance é visto como uma nova descrição do Inferno, na esteira de Dante, ou como uma poética da morte e do luto. Talvez seja mais preciso, contudo, dizer que ele é uma fenomenologia da desagregação do vínculo humano, devido ao projecto de aceleração do tempo histórico. Essa fenomenologia é composta por múltiplas pequenas histórias onde se dá a ver a metamorfose por que passam as pessoas, a sua entrega ao desespero e, por fim, à morte. O vínculo, que agora soçobra, tinha vindo a ser construído ao longo da história, mas, com a revolução, o homem volta às relações brutais, ao tempo das cavernas, como se pode compreender na leitura do antepenúltimo capítulo “Milhares de anos atrás…” Acelerar a história significa então retroceder, voltar à arbitrariedade e à selvajaria pré-civilização.

Esta fenomenologia da destruição do vínculo humano – que um autor contra-revolucionário, Joseph de Maistre, já tinha detectado na revolução francesa – é uma forma de realização do niilismo. Estamos perante a destruição de todos os valores que, até àquele momento, tinham ordenado a vida humana. Esta destruição é obra do terror político, mas também da impotência da nova ordem para responder aos problemas colocados pela natureza através da penúria alimentar. Esta descrição fenomenológica da destruição do vínculo social é, por outro lado, uma espécie de epopeia, na qual os protagonistas, arrastados pela enxurrada da história, lutam, apesar de tudo, para manterem as qualidades humanas que, desde há muito, consideramos virtuosas. E é aqui que, apesar da situação terrível em que se vive, que o narrador, nas últimas linhas da obra, assinala o começo da primavera. Ela marca um tempo de ressurreição e de esperança, embora de uma esperança muito mitigada, como podemos ler no último parágrafo do romance:

A noite já caiu. O melro calou-se. Ao amanhecer, volta a cantar… Vamos ouvi-lo – pela última vez.

Ivan Chmeliov (1915). O Sol dos Mortos. Lisboa: Relógio d’Água. Tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer


O que surpreende na novela de Tolstoi, A Sonata de Kreutzer (geralmente, o título é A Sonata a Kreutzer), será menos o tema tratado - o ciúme - que a questão da confissão e as implicações que esta possui. Aparentemente, tudo gira em torno da vida de um casal que, desde muito cedo, descobre a tensão entre o prazer físico que proporcionavam um ao outro e a insuportabilidade da vida comum. Nesta tensão, o ciúme do homem tem um papel preponderante. A estratégia narrativa da novela assenta no relato da confissão, feita numa viagem de comboio, do protagonista ao narrador. Todo o relato é um exercício confessional, onde a alma torturada do que se confessa se exterioriza e se mostra numa tentativa para alcançar a verdade dos seus actos (desde as cenas de ciúme até ao assassinato da mulher).

Apesar de juridicamente absolvido (um crime de honra ainda permitido naqueles dias), o espírito do homem sente uma compulsão terrível para a exteriorização. A confissão não é, pelo menos em primeiro lugar, a busca de uma absolvição ou de uma compreensão de outrem. Ela é a objectivação da vida, o torná-la exterior para a poder captar na sua realidade objectiva. Confessar-se é projectar para fora de si aquilo que é do foro íntimo, trazê-lo para o espaço público, aliená-lo da vida interior, para o poder captar sossegadamente - não por acaso, o protagonista adormece após a confissão - e, no estranhamento assim conquistado, afastar de si uma parte de si.

O génio de Tolstoi evidencia-se, nesta novela, de múltiplas maneiras, desde a descrição das cenas de ciúme até à caracterização das personagens, passando pela exposição das concepções ideológico-sociais daquele que se confessa. O mais interessante, porém, é o jogo da confissão estar assente todo ele na não confissão. Na hora da morte, no momento em que o protagonista esperava a confissão da mulher, do reconhecimento que teria havido uma traição e que tudo aquilo não era apenas o fruto de uma imaginação exacerbada, ela não o faz. O segredo - mesmo que fosse o segredo de não haver qualquer segredo - não foi revelado, ficou fechado na vida íntima da mulher, e nem mesmo a iminência da morte a conduziu à necessidade de se exteriorizar num acto confessional.

Publicidade e intimidade confrontam-se, deste modo, na novela de Tolstoi, como modos eminentemente diferenciados de conviver consigo mesmo. A confissão é uma invenção masculina e responde a essa necessidade de publicar para suportar, e suportar porque compreende aquilo que agora se tornou público e estranho. A razão justifica, apaga e apazigua. Na mulher tudo é mais secreto, tudo fica fechado no coração. E isto apenas pelo motivo de que a verdade, a sua verdade, é irrevelável. Não porque a queira ocultar, mas porque não há maneira de a tornar pública. A verdade masculina é sempre confessável; a feminina é sempre secreta. Os homens até a vida íntima precisam de torná-la exterior. As mulheres, mesmo as mulheres públicas, só possuem vida interior.

Lev Tolstói (2007), A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.