domingo, 27 de setembro de 2020

Carlos de Oliveira, Alcateia

Publicado em 1944, o romance Alcateia, de Carlos de Oliveira, teve uma segunda edição revista em1945, não existindo qualquer outra posterior, ao contrário dos restantes quatro romances do autor. Se Casa na Duna, de 1943, se centrava numa família específica de proprietários, para a qual o escritor, de acordo com a tradição rural portuguesa, usou a metáfora da casa, neste romance, apesar do problema da casa, enquanto continuidade familiar, não estar ausente, a metáfora da alcateia coloca o leitor de imediato perante um universo social mais amplo e complexo, mas por certo não menos fechado. O romance é um retrato da oclusão das micro-sociedades da província portuguesa, neste caso do universo da Gândara. Um mundo fechado sobre si, impenetrável, alimentado por relações onde o cerramento aproxima as pessoas e as diferenças sociais introduzem distanciamentos inultrapassáveis.

A penúria da terra gandaresa açoitada pelas secas gera no grupo social uma divisão extremada, uma ruptura na alcateia. De um lado, um conjunto de homens que formam um bando de assaltantes e que lançam o terror por toda a Gândara. No outro lado, aquilo a que se poderia chamar as elites locais que disputam, em torno dos interesses – grandes ali, embora miseráveis se olhados de fora –, os pequenos poderes, gerem as intrigas, as pequenas aversões e os grandes ódios. O problema desta divisão social é que ela acaba por ser estereotipada. Apesar de no bando de assaltantes também existir disputa e rivalidade, a forma como são construídas personagens mostra-os pessoas dotadas de uma bondada natural, que a sociedade, a vida e a sorte acaba por empurrar para o crime, numa formulação do mito do bom selvagem de Rousseau. Apesar de tudo, há neles vínculos que ultrapassam os limites conjunturais dos interesses e são esses laços que, ao serem traídos, geram uma violência insuportável. No outro lado, na outra alcateia, não há vínculos, apenas interesses e conflitos em torno dos interesses, antagonismos, dissimulação, cálculo, cinismo. A escassez, ao tocar também as elites locais, torna-as impiedosas e em conflito permanente entre si. No entanto, as personagens surgem como meros estereótipos, sem complexidade, sem dúvidas sobre o caminho a tomar, sem profundidade subjectiva. Traços de complexidade subjectiva emergem em alguns assaltantes e também numa personagem secundária, o filho do administrador da vila. Não estamos perante um épico da luta de classes, mas de uma leitura social que se esforça por enquadrar as personagens em arquétipos existentes a priori.

Para além da pobreza e da mesquinhez, a sensação de oclusão é dada por dois sinais. Por um lado, a ausência quase total de qualquer referência ao mundo fora da Gândara. O livro é publicado durante a segunda grande guerra, mas os acontecimentos da política internacional não são sequer aflorados, como se o espaço e o tem romanescos fossem não o fruto de uma História, mas o resultado de um destino que não é tocado pelas grandes tragédias que afligem a humanidade. Ali, naquele mundo autárquico, bastam os pequenos dramas. Um segundo sinal dessa oclusão é dado pela reacção do administrador e da mulher perante um amor de praia do filho. O problema é que ela era uma rapariga da cidade, e uma rapariga da cidade é demasiado senhora do seu nariz, tem iniciativa excessiva. A cidade permanece sempre por identificar, mas o facto dela vir da cidade causaria uma perturbação excessiva que o pequeno mundo da Gândara não conseguiria acomodar. O rapaz é coagido pelos pais a terminar o namoro e, incapaz de os enfrentar, cede ao seu desejo. Pode haver dois níveis de leitura desta oclusão do universo romanesco. Uma benévola dirá que estamos perante uma alegoria sobre a situação de Portugal. A clausura do ambiente social da Gândara não é outra coisa senão uma imagem concentrada de um país fechado sobre si mesmo. Uma leitura menos benévola sublinhará a natureza paroquial do romance, o seu pendor regionalista.

Um dos traços mais interessantes da obra, embora não constitua o seu objecto central, surge da relação entre Fernando e o pai, o administrador da vila, o representante dos poderes locais. A disputa em torno do namoro com a rapariga da cidade vai levar a um afastamento entre pai e filho. O sentido da vida do pai era o de transmitir uma posição e uma casa sólida ao filho, este, todavia, parece afastar-se decisivamente dele e do seu universo, aniquilando o sentido da sua existência. Em Coimbra, onde Fernando estuda, as companhias parecem levá-lo para outro mundo, dando-lhe outra visão da realidade, das relações sociais e da própria vida. Essa é a única fresta –pequena na economia do romance – para um além da Gândara e do mundo paroquial onde decorre a acção romanesca.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Leo Perutz, O Cavaleiro Sueco


O romance O Cavaleiro Sueco (1936), do escritor austríaco, de origem sefardita, Leo Perutz (1882-1957), é uma reflexão sobre a identidade e o destino. Melhor, é uma reflexão sobre a fragilidade e o equívoco das identidades e a força do destino. Se se quiser eleger duas questões que o romance trabalha elas são quem é aquele que se cruza connosco? e o que cabe a cada um fazer e desempenhar na existência? O romance é a resposta a um enigma que afligiu, durante parte substancial da sua vida, a bela Maria Christine, nascida von Tornefeld, enviuvada von Rantzau, tornando-se von Blohme por um segundo matrimónio. O enigma nasce quando, ainda criança, o pai diz em casa que tem o dever, enquanto sueco, de ir combater na guerra que os suecos, no início do século XVIII, travavam contra os seus vizinhos. Foi-lhe dito, todavia, que apesar de o pai ir para muito longe, o seu veloz cavalo permitia-lhe vir secretamente vê-la. A verdade é que essa promessa impossível de ser cumprida foi cumprida. O pai visitava-a pela calada da noite, para logo desaparecer. No entanto, a certa altura chega um emissário do exército sueco com a notícia da derrota dos suecos e a morte do heróico cavaleiro von Tornefeld, tendo este sido enterrado já há três semanas. Maria Christine não acredita no mensageiro, pois ainda há dois ou três dias o pai a visitara de noite. Seria impossível ele estar morto. Haveria de voltar. Nunca voltou. As visitas secretas cessaram para sempre.

Para resolver o enigma que atormentou a existência de Maria Christine, o autor conta uma história de equívocos e trocas de identidade entre um ladrão perseguido pela justiça e um jovem aristocrata desertor do exército sueco. Esta troca de identidades, ocorrida num moinho e mediada por uma estranha personagem denominada o moleiro morto, entre seres pertencentes a estratos sociais tão diferenciados vai permitir que se perceba que as funções sociais constitutivas da identidade pessoal são facilmente reversíveis. Sem excessiva dificuldade o ladrão assume de forma convincente, perante terceiros, as funções e a vida de um aristocrata e, ao mesmo, tempo um aristocrata encontra um rumo para a sua existência ao assumir o destino de um ladrão. Nas circunstâncias onde decorre a sua nova vida, ambos passam muito bem por aquilo que não são. Desempenham os papéis sociais que os seus novos estatutos exigem sem que isso levante qualquer suspeita. O ladrão vivia entre a aristocracia como se de um aristocrata se tratasse, o aristocrata trabalhava nas fundições de um terrível bispo, que explorava os condenados que se refugiavam no seu território, sem que alguma vez fosse visto como outra coisa senão como um miserável condenado. O romance mostra que a identidade de cada um pouco tem que ver com o estatuto social. Este e facilmente reversível, pois não passa de mera representação teatral, papel que se assume e se representa mas que não se deve confundir com a identidade de cada um. À pergunta quem é aquele que se cruza connosco? a única resposta aceitável é a confissão da nossa ignorância. Conhecemos os papéis representados, não os actores que os representam.

O romance de Leo Perutz é uma espécie de fábula e como todas as fábulas esta também terá os seus ensinamentos. Devido a um conjunto de peripécias, os dois envolvidos na troca de identidades tornam-se a encontrar, encontro mais uma vez mediado pelo moleiro morto, personagem que representa a presença no romance do mundo encantado do mito e da superstição pré-iluminista, numa época em que a realidade, devido ao avanço da modernidade, começava a desencantar-se. Este encontro serve, na economia da narrativa, para uma nova troca de identidades. O ladrão volta à sua condição de ladrão e homem condenado e o aristocrata retorna à sua condição de cavaleiro sueco que procura juntar-se aos exércitos do rei da Suécia. As peripécias da fortuna, o jogo de acasos e de enganos, acaba por devolver cada um à sua anterior condição. Não se trata, porém, de uma mera reposição do estatuto social, mas do sublinhar de que ninguém tem o poder de fugir à sua condição ontológica, à sua natureza essencial, pois esta não é uma mera determinação social, mas algo muito mais fundo e anterior à condição social em que cada homem vive. Aquilo que cabe a cada um desempenhar na existência não deriva nem de si mesmo nem da sociedade, as ideias reguladoras das ideologias do século XIX e XX. Ninguém pode fugir à sua natureza ou ao seu destino. As peripécias da vida, os equívocos e os enganos servem apenas para fazer que cada um se acorde com o destino que lhe foi – seja pela divindade ou pela natureza – destinado. Por mais que dele fuja, é para ele que, através dessa fuga, se dirige. A resposta ao enigma que atormentou a vida de Maria Christine nascida von Tornefeld, aparentando por vezes ser uma comédia de enganos, não é outra coisa senão uma reflexão sobre a condição humana na Terra. Uma pequena (pouco mais de 200 páginas, na edição portuguesa) obra-prima.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Primavera


O terceiro romance do ciclo Sonatas é a Sonata de Primavera (1904). Do ponto de vista da história da personagem, o marquês de Bradomín, esta obra é a narrativa de uma aventura amorosa mais antiga, ocorrida ainda na juventude, quando o aristocrata é enviado pelo Papa à cidade ficcional de Liguria para entregar uma mensagem a monsenhor Gaetani. Ao chegar ao palácio dos Gaetani, encontra o prelado moribundo. Tendo sido reconhecido pela princesa Gaetani, que o embalara quando criança, é convidado a permanecer no palácio. Aí conhece as cinco filhas da princesa e apaixona-se por Maria del Rosario, a mais velha. O problema é que esta estava para dar entrada num convento. Todo o romance gira então à volta das tentativas do marquês para seduzir a futura monja e da resistência que esta lhe opõe.

Como nas anteriores Sonatas o poder descritivo e evocativo de Valle-Inclán é notável. Transporta o leitor para dentro do palácio. Combina a descrição da dimensão física e arquitectónica do edifício com a sua ambiência social e devocional, fundindo arte e vida como se fossem uma única coisa. É nessa paisagem que o autor inscreve as deambulações de Eros, o jogo de sedução do marquês visando a jovem filha da princesa e a resistência desta, a qual é, ao mesmo tempo, o acordar para a realidade do amor humano, a qual estava adormecida dentro de si. Este D. Juan feio, sentimental e católico – como em velho se catalogou – emerge como a figura do tentador que vai acender, no fundo do coração de Maria del Rosario, a tensão entre o amor por um homem e o amor por Deus.  

Este transe em que um coração se sente confrontado com a necessidade de ter de escolher entre o amor humano e o divino é acompanhado por um outro, já presente nas anteriores Sonatas. Trata-se da relação muito próxima entre amor e morte. Não se trata, neste caso, tanto da morte dos amantes ou de um deles, embora Xavier Bradomín, por causa do seu interesse pela jovem, tenha sofrido uma tentativa de homicídio, certamente ordenada pela princesa. Esta colocava um grande empenho na vocação religiosa da sua filha e na entrada desta para o convento. A forma como o autor consegue estabelecer esse laço entre Eros e Tanatos, no final da obra, é completamente inesperada, afastando-se de modelos já explorados por autores como Shakespeare.

Com uma tonalidade decadentista, a trama narrativa mobiliza elementos que tendem a pôr em questão tanto uma visão do mundo iluminista e racionalista como uma outra de cariz católico e tradicional. O marquês, apesar de se apresentar como um tradicionalista (um carlista) e como católico, nunca deixa de ser uma personagem subversiva nesse mundo do catolicismo conservador, de que ele se apresenta como advogado e agente. Na Sonata da Primavera ele é alguém que está ao serviço do Papa, um enviado deste. No entanto, a sua conduta é muito pouco católica. É tentado pela beleza da jovem, mas também se percebe que a possibilidade desta se tornar uma virgem consagrada à divindade constitui para ele um motivo de intensificação libidinal. Este cruzamento entre sexo e religiosidade é ele mesmo ambíguo. Por um lado, parece inscrever-se no topos provocatório – o recorrente épater le bourgeois do decadentismo – que a literatura modernista desenvolve perante as tradições religiosas. Por outro, todavia, não deixa de ser uma forma, ainda que indirecta ou invertida, de sublinhar aquilo que há de sagrado e misterioso no desejo erótico.

Bradomín assume, no palácio dos Gaetani, a figura do grande tentador. A princesa recebeu-o como um enviado de Deus – isto é, do seu representante na Terra – e, quando se apercebe do interesse erótico na sua filha, vê-o como o enviado do diabo. O que é corroborado por episódios onde intervém uma bruxa, a qual permite a Bradomín evitar as armadilhas que contra a sua vida são tecidas. No entanto, também aqui a arte de Valle-Inclán tem o poder de deixar o leitor na incerteza. Em todo o romance, é-se confrontado com situações ambíguas. O marquês ama Maria del Rosario ou apenas a vê como um mero objecto sexual, uma presa, ainda por cima uma virgem a ser consagrada, para satisfazer o seu instinto de caçador? Será um homem de Deus, como ele próprio se identifica, ou uma figuração humana do grande tentador? Será um D. Juan ou mascara-se apenas de D. Juan como uma estratégia de compensação? Será, num outro âmbito, um aristocrata tradicionalista da velha cepa ou alguém que se assumindo assim não deixa de ser, através da ironia, um desconstrutor da imagem da velha aristocracia, completamente decadente. O que torna estes pequenos romances notáveis é a combinação dos seus diálogos e descrições de ambiências de grande esplendor literário com a ambiguidade com que a figura do marquês é construída, é a capacidade de, ao mesmo tempo, apresentar uma personagem que parece ser uma coisa e, através de uma subtil ironia, mostrar-se com sendo uma outra. Como as outras, a Sonata de Primavera é um exercício refinado de ambiguidade, uma obra de arte na composição de uma personagem complexa sob a aparência de uma simplicidade e transparência que raiam a ingenuidade.

domingo, 6 de setembro de 2020

Tomás de Noronha, Volúpia que Salva


Um dos mais inusitados e inesperados romances que poderia encontrar é este Volúpia que Salva, publicado em 1926, mesmo a identificação do autor é relativamente problemática. O livro está assinado por T. Noronha e alguns catálogos de bibliotecas municipais atribuem-no a Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias denominadas De Capa e Batina (1929), que versam sobre a boémia coimbrã. Ambos os livros são publicados pelo mesmo editor, J. Rodrigues & Cª, sediado na Rua do Ouro, em Lisboa. A entrada referente a D. Tomás Maria de Noronha na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira refere o texto sobre os tempos de Coimbra e outras pequenas obras sem relevo, mas não o romance. Este terá sido bastante lido na época, pois foram feitas pelo menos três edições sucessivas de mil exemplares cada. O que terá apagado este romance da memória literária nacional e até da referência enciclopédica ao seu eventual autor?

O romance é bem arquitectado, possui uma trama que conduz a um desenlace final significante, o autor expressa-se bem em português, apesar de não seguir a simplificação ortográfica de 1911, possui uma cultura sólida, constrói personagens que possuem pensamento próprio, uma delas inclusive um pensamento filosófico coerente e fundamentado no espírito de certas correntes filosóficas com boa fortuna na época. Uma das razões terá sido que a obra se organiza em torno de uma relação homoerótica feminina, decorrendo todo ele num universo social de matiz homossexual. O segundo milhar de exemplares acabou de ser impresso a 28 de Maio de 1926, o dia em que um golpe militar pôs fim à primeira República. Se ainda foi possível a impressão de pelo menos um terceiro milhar, os tempos deixaram de ser propícios a estas derivas literárias, as quais, como se verá, possuem uma tonalidade decadentista, relativamente tardia, que será sempre desprezível para o novo ambiente político, marcado pelo puritanismo nos costumes, e também para o movimento literário que, nos finais dos anos trinta do século passado, foi animado por escritores oposicionistas, o neo-realismo.

Do ponto de vista epocal, o romance situa-se nos finais da República e pode ser entendido como um retrato da desagregação da aristocracia e, curiosamente, da própria República. A tensão nasce das pretensões de duas mulheres, Octávia Rodrigues Saavedra e Valéria Prado, que se apaixonam mutuamente, em penetrarem nos círculos sociais mais elevados da capital, em busca de reconhecimento. O problema não estará no caso amoroso entre elas, mas na sua presunção, apesar do dinheiro que uma parece ter e do talento artístico da outra, ao quererem aceder a um Olimpo social muito restrito. Este é um dos pontos onde o romance vinca a sua tonalidade decadentista. Uma crítica acerada ao mundo burguês, com a sua moral do dever, o sublinhar das prerrogativas aristocráticas, reais ou imaginárias, e a apologia da evasão do mundo quotidiano. O leitor depara-se com um mundo fútil, perdido entre prazeres que se pretendem refinados e a mais mesquinha coscuvilhice. Deste ponto de vista, a mera exposição da vida destas camadas sociais torna-se, ipso facto, uma crítica social de natureza irónica. Dentro dessa ironia, pode-se ainda observar a invenção de um país, que desempenha um papel considerável na trama narrativa, a Sapholandia, um país europeu cuja capital é Inversóvia.

Contudo, o toque decadentista mais exacerbado é dado pela personagem José Dardo, pertencente a uma das casas mais importantes da capital portuguesa. Ele é o grande pensador e orquestrador de um mundo onde a homossexualidade é um instrumento central para atingir os fins de que ele, o esteta por excelência, se sente como o grande e derradeiro anunciador. Dardo faz uma leitura das paixões humanas como caminho para a redenção, através do arrependimento. É preciso abandonar as abstinências e o controlo das paixões para que estas se refinem e percam a animalidade, cujo fito é a reprodução da vida. Toda a filosofia e Dardo é um hino ao decadentismo, onde nem falta o consumo de ópio. Uma sensibilidade hiperestilizada, um refinamento aristocrático do gosto, a recusa dos prazeres das plebes presas ao imperativo da procriação. Fundamentalmente, a recusa da sexualidade entre homem e mulher como caminho para o fim da espécie.

O romance é suficientemente bem escrito para deixar o leitor na dúvida se está perante uma apologia da morte e do desaparecimento da humanidade, através da educação dos homens para uma vida esteticamente viciosa, na qual a única sexualidade admissível é a que desvia o prazer da possibilidade da fecundação, ou se o desenvolvimento da trama narrativa acaba por ser uma exposição quase lógica das consequências nefastas dos princípios decadentes. Princípio esses que animam aquelas personagens, todas elas presas a uma necessidade de serem outra coisa do que aquilo que são, de se evadirem da realidade brutal da existência num mundo artificioso, onde a volúpia é o caminho para a morte. Estar-se-á perante uma crítica da sociedade e dos valores do pós-guerra, dos gloriosos anos vinte, ou, pelo contrário, o romance é um exercício literário de defesa dessa modernidade estética individualista e em contradição com o senso-comum?

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Teresa Veiga, Cidade Infecta


De acordo com o que é anunciado Cidade Infecta, de Teresa Veiga, foi escrito durante o tempo de confinamento. É o segundo romance da autora, embora ela possua, enquanto contista, um nome firmado e premiado no mundo literário nacional, desde 1992. Apesar de ter sido escrito no auge da pandemia, apesar dos títulos da obra, com a referência ao infeccioso, e do último capítulo, o “Triunfo da Normalidade”, não se está perante uma narrativa que se centre em acontecimentos provocados pela emergência do vírus que actualmente perturba a vida um pouco por todo o lado. Se bem que o espaço onde se desenrola a generalidade de a acção romanesca – uma cidade de província denominada Oliveira – e o tempo de os acontecimentos serem indeterminados, claramente não são recentes. Passam-se num país que para percorrer de carro os 150 km que separam Oliveira de Lisboa são necessárias três horas, num país em que dez contos é uma pequena fortuna, num país em que ainda é possível ligar o rádio e escutar Cândida Branca Flor.  Deste ponto de vista, o romance é uma escavação arqueológica da vida infecta.

Que infecção é essa que recai sobre a cidade, que não passa de uma referência metonímica ao país? O romance tematiza a amizade entre duas mulheres, as relações familiares, a vida conjugal, a violência sobre as mulheres, as estratégias de sobrevivência, as relações adúlteras, as funções sociais, o crime. Todos estes temas são, porém, modelações de uma desolação que parece afectar não apenas as vidas das duas amigas e protagonistas centrais da trama narrativa, mas todo o tecido social onde elas se movem, uma entre a burguesia fabril e a outra no seio da pequena burguesia, ambas provincianas. É uma realidade desoladora, mesmo se o desafogo material é grande. Esta desolação parece ser o efeito de uma pequenez estrutural que a tudo toca e contamina. A tudo falta qualquer coisa.

As duas mulheres – Raquel e Anabela – são, cada uma a seu modo e no âmbito das suas relações sociais, arrivistas. Graças aos atributos físicos e à forte personalidade, fazem casamentos acima do seu estatuto social, e são ambas vistas de soslaio, se não desprezadas, pelos respectivos sogros. No entanto, o que se torna patente é que fora desse arrivismo não há nada, a não ser a pobreza, a da família de Anabela, ou a situação equívoca da mãe de Raquel. O resto, as famílias ricas ou remediadas de Oliveira, faz parte também ele de um arrivismo, apenas um pouco mais antigo, que não deixa de ser completamente desolador. Se há uma tradição no país, essa é o arrivismo, mas este tem a sua raiz na desolação que infecta toda a cidade.

Essa desolação que infecta a cidade – isto é, a sociedade em geral – tem uma origem muito precisa. As mulheres portuguesas, talvez parte substancial delas, mantêm casamentos desencantados. Entre a mitologia do príncipe encantado e o homem disponível para estabelecer uma família há uma enorme distância. O padrão sonhado e a realidade estão tão afastados que o resultado é a pura desolação, enfrentada com mais ou menos cinismo, com mais ou menos condescendência. A distância entre o desejo e a realidade mina a relação conjugal, que acaba por se tornar o exercício de duas frustrações que correm paralelas, cruzando-se por vezes através da violência verbal ou física. O adultério, no caso o adultério feminino, é, então, uma estratégia de sobrevivência e não, propriamente, o exercício de uma infidelidade.

É esta desolação – fundada na sombria pequenez da relação matrimonial – que se torna uma mancha e, como tal, alastra por toda a sociedade. O romance de Teresa Veiga é não apenas uma arqueologia que escava o terreno para descobrir o que se esconde no fundo das relações humanas, mas ainda uma hermenêutica da vida social, em que o elemento central é a interpretação do casamento. É a disfunção amorosa – mais que a sexual – e a pequenez da vida matrimonial que se espalham por toda a sociedade, seja na repartição onde trabalha o marido de Anabela, seja na escola onde lecciona Raquel, seja no mundo empresarial do marido desta. Em todos os espaços sociais que se visita na leitura de Cidade Infecta sentimos sempre o mesmo exsudar da matéria informe e pegajosa da desolação. Na verdade, uma pandemia e, como acontece em todas as pandemias, acaba-se por voltar à normalidade, isto é, conviver com o vírus, evitando, sempre que possível, o pior. E o pior está simbolizado na morte inexplicável de uma mulher que, desde o início e como uma ameaça, acompanha o destino das protagonistas. Essa aprendizagem do convívio com o desolador e o pior é o máximo a que se pode aspirar. Dito de outra maneira, há que saber ser infeliz e continuar viva.