sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Bruno Schulz, As Lojas de Canela


Não é fácil determinar em que género literário se deve incluir As Lojas de Canela (Sklepy cynamonowe) (1934) do escritor polaco, de origem judaica, Bruno Schulz. A obra foi traduzida por Aníbal Fernandes, a partir do polaco e editada em 2012 pela Sistema Solar (há uma edição anterior na Assírio e Alvim). Aparentemente, estamos diante duma colecção de contos, havendo em cada um deles uma integridade que permite a sua leitura independente dos outros. No entanto, todos eles estão concatenados pela voz de um único narrador, também protagonista, das personagens e do espaço e tempo narrativos. Essas histórias, catorze no total, podem, todavia, ser consideradas como constituindo um único romance.

Não será uma perspectiva enviesada ver a obra de Schulz como uma tentativa de reencantamento do mundo, um contraponto à realidade burocrática e desencantada que o modernidade europeia foi fabricando desde o fim da Idade Média. A estratégia narrativa assenta numa descrição do mundo familiar e social a partir dos olhos de uma criança. Toda a obra é a expressão do modo como o narrador vê o seu mundo. Há uma clara rejeição do realismo e do naturalismo, uma recusa da descrição objectiva e da focagem comum da realidade. A narrativa tem um pendor claramente expressionista, o qual também se encontra nos desenhos do autor (Schulz foi professor de desenho, alguns dos quais surgem neste livro). É no exercício da subjectividade da criança que o autor encontra o caminho para reencantar o mundo, devolvendo-lhe o mistério que o triunfo da razão tinha dissolvido e descativando a imaginação da tarefa burocrática de reproduzir uma realidade exterior.

 A folhagem embaraçada das ervas daninhas e dos cardos arde e crepita no fogo do meio-dia. A sesta preguiçosa do jardim tem o zumbido que a agitação das moscas lhe dá. Os colmos dourados gritam ao sol como uma nuvem de gafanhotos ruivos, os grilos são estridentes na chuva torrencial do fogo, e as silíquias cheias de semente explodem com um ruído discreto de cigarra (pp. 46/7). Este excerto manifesta o modo como Schulz opera a remitologização do real. Encontramos constantemente uma antropormofização da realidade não humana, onde os próprios espaços – a casa de habitação e a loja de família, as lojas de canela ou a Rua dos Crocodilos – ganham vida, como se para eles houvesse transmigrado uma alma. Noutras passagens, porém, encontramos o processo inverso, e é o homem que se animaliza. Toda a escrita é um contínuo exercício de contaminação, na qual os géneros lógicos que organizam a linguagem perdem as fronteiras, tornando-se sujeitos de predicados que a visão comum do mundo não lhes atribui.

A personagem central e o modelo do reencantamento é, como não poderia deixar de ser para um rapaz narrador, o pai. Esta aventura do meu pai com os pássaros a última e a mais brilhante contra-ofensiva que o incorrigível improvisador, o estratega da imaginação, lançou às muralhas de um Inverno estéril e vazio. Só hoje entendo o seu heroísmo: solitário, fez guerra ao tédio infinito que entorpecia a cidade. Sem nenhum apoio e compreensão da nossa parte, esse homem extraordinário defendia sem esperança a causa da poesia. Nas rodas deste moinho mágico afundavam-se as horas vazias, para de lá saírem com perfume e cor (p. 69). O pai é assim o modelo de uma imaginação transbordante. De tal maneira que, o comerciante de tecidos, de uma imaginação delirante, vai sofrendo, ao longo da obra, múltiplas metamorfoses, onde não falta a da sua eventual transformação em barata. Estas transformações emergem na tessitura narrativa como formas de emancipação do mundo burocrático do comércio e dos interesses sociais.

Não se pense, no entanto, que se está perante um autor que se aproxima de Kafka. A imaginação deste é austera, as suas parábolas são, apesar de inusitadas, marcadas por um rigor e severidade que evitam os excessos da hipérbole. Schulz, pelo contrário, entrega-se, sem nunca cair no histrionismo, a um culto do excessivo, procurando levar a linguagem cada vez mais longe, conquistando pelo uso sistemático da metáfora novos poderes para expressar o mundo interior e, dessa forma, devolver o fascínio ao exterior. Kafka e Schulz, apesar de partilharem um ambiente cultural comum, de estarem ambos familiarizados com os mesmos textos bíblicos, apresentam duas formas de imaginação bem diferenciada, apesar de ambas serem profundamente criativas. Se Gregor Samsa tem por destino tornar-se uma barata gigantesca, as metamorfoses do pai do narrador, na obra de Schulz, impelidas pela sua imaginação transbordante, têm por finalidade torná-lo mais humano, como se ser humano fosse um longo e contínuo exercício da imaginação criadora, que se libertou da sua função meramente reprodutora, para usar classificações provenientes de Kant.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Hjalmar Bergman, Memórias de um Morto


Publicado na Suécia em 1918, o romance Memórias de um Morto, de Hjalmar Bergman, foi publicado em Portugal em 2011, pela Eucleia Editora, e em 2018, pela Cavalo de Ferro. Em ambas a tradução é de João Reis, presumo que a mesma. A obra pode ser encarada como uma polémica contra o livre-arbítrio, contra a ideia de que cada um é responsável pelo seu destino, pela vitória ou pela derrota que sofre na existência. Todavia, não se trata de um determinismo mecânico inscrito na natureza, mas a ideia de que o mal praticado por alguém é castigado na sua descendência, um pessimismo trágico. É isso que nos conta Jan Arnberg, personagem central e narrador do romance. Os desaires sofridos pelo seu avô, pai e por ele próprio mais que motivados por más opções são apresentados como o resultado de um acto pelo qual não foram responsáveis, mas que continuam a expiar, como nas tragédias gregas.

O fado foi adquirido no século XVIII, quando o conde de Anrfelt, um general que teria estado envolvido em 1792 no assassinato, num baile de máscaras, do rei Gustavo III, da Suécia, tinha dois filhos, um legítimo e outro ilegítimo. Teria sido este que assassinou o próprio pai, atraindo para a sua descendência, primeiro com o nome de Fält e por fim com o de Arnberg, o zelo das erínias. Ao longo das gerações as relações entre os dois ramos do conde assassinado mantêm relações equívocas, onde a tensão e uma certa cumplicidade se misturam. O avô de Jan Arnberg é um industrial falhado que perde os seus bens para a linhagem dos Arnfelt. O pai de Jan sonha em retomar os bens perdidos pelo seu e, para fugir ao destino, emigra para os Estados Unidos, onde se torna inventor. Os seus negócios, porém, ficam nas mãos de terceiros, acabando o talentoso Arnberg na miséria, morrendo ao que tudo indica de tuberculose. Jan, para escapar ao destino dos Arnberg, também foge da sua cidade de Wadköping, designada apenas como W., instala-se em Hamburgo e sonha com um grande projecto transatlântico, que nunca passará de um sonho.

O romance é um ensaio genealógico, onde se estudam as duas linhagens do conde assassinado no século XVIII, onde se percebe uma repetição do destino, tanto na linhagem titulado como na que nasce na ilegitimidade. Deste ponto de vista, a obra é uma exploração do destino dos filhos de Abraão, Ismael, filho da escrava Agar, e Isaac, filho da mulher legítima, Sara, embora numa perspectiva pessimista contrária ao destino desses personagens bíblicos. Aliás, a religião não deixa de ter uma presença significativa no romance. Uma das figuras centrais é o bispo de W., Julius Arnberg, avô de Jan e sogro do pai deste. É uma das figuras do conservadorismo da Igreja sueca (protestante). O romance mostra que enquanto a linhagem Arnfelt se encontra ligada ao mundo da banca, a dos Arnberg se divide entre homens da Igreja, empresários falhados e, mesmo, alcoólicos.

O romance divide-se em três partes. I A Herança e a Lei; II Léonie – Um Interlúdio; III A Herança e a Promessa. A estratégia narrativa, apesar de ter sempre como narrador Jan Arnberg, não se mantém homogénea. A primeira parte estamos numa abordagem realista, onde se narra a vida dos Fält/Arnberg. Na última, o texto torna-se fragmentário, a precisão realista desaparece, parecendo estar perante uma escrita impressionista, com laivos que lembram o surrealismo. As personagens que rodeiam Jan Arnberg na sua estadia em Hamburgo são equívocas, como se fossem apenas sonhadas, perseguindo finalidades indefinidas e regulando-se por regras que pretendem provir de uma sabedoria que ultrapassa o mero senso comum. A segunda parte faz a mediação entre a primeira e a última, tanto do ponto de vista do conteúdo narrativo como no estilo adoptado. Léonie é uma prima de Jan. Estariam destinados um ao outro, mas também aqui o diferente destino das famílias Arnfelt e Arnberg interferirá.

A chave de leitura de toda a obra é resumida pela fala, a última do romance, de uma das personagens mais equívocas, a quem Jan chama pai Johannes. Diz assim: “Nem toda a gente que vive está viva; nem é a morte um portal que abre apenas numa direcção. O Imutável forma a vida como lhe agrada, e da morte faz uma brincadeira. Os nossos pensamentos são fogos-fátuos que o divertem com os seus voos. Mas as nossas vontades repousam na sua mão. E, quando te sentires condenado pela sua vontade, saberás que repousas na sua mão, que te deu o arco na nuvem como um sinal. Por isso não temas a tua vontade, pois não é o teu instrumento, mas daquele que te guia.” Se a morte é um portal que abre em mais que uma direcção, então este pai Johannes poderá ser o pai de Jan, morto há muito e o próprio Jan, apesar de vivo, ser um morto que escreve as suas memórias. O romance é, na verdade, um exercício pessimista, marcado por um humor por vezes excêntrico, e enquadramentos surrealistas, numa época em que o movimento surrealista estava a incubar, sobre o destino dos homens na terra.

domingo, 28 de julho de 2019

Manuel de Seabra, Os Exércitos de Paluzie


Publicado em 1982, primeiro em catalão e logo em português, o romance Os Exércitos de Paluzie, de Manuel de Seabra, é um testemunho da dupla filiação linguístico-literária do seu autor. Numa narrativa que se desenrola toda ela na Catalunha, não deixamos de encontrar nela marcas culturais tipicamente portuguesas, nomeadamente, no recurso a expressões populares que são reconhecidamente pertença do lado ocidental da península. Duas metáforas organizam a narrativa. A dos exércitos de Paluzie a partir dos quais se pensa a vida. A da linhagem, no caso a dos Roureda, quatro gerações em que os primogénitos se chamam todos Edmond, onde se questiona a identidade. A luta por uma identidade não deixa de ser um conjunto de manobras organizadas segundo uma estratégia tipicamente militar.

Para usar um expressão proveniente da teoria da narrativa, estamos perante uma obra autodiegética, onde o mais novo dos Edmond narra a sua própria história, para justificar as suas pretensões à Casa Velha, a moradia da família, desde o tempo do seu avô Edmond, e à afirmação da sua identidade não apenas de Edmond como de Roureda. Como o leitor perceberá ao longo da narrativa, nem as pretensões originais dos Roureda a serem o que pretendem, uma espécie de aristocratas, nem a própria pertença do último dos Edmond a esses Roureda são coisas claras e consolidadas. Uma sombra paira sobre o protagonista. A história que ele conta, a da família, ultrapassa em muito, o período da sua existência. Começa em 1893, quando o avô Edmond decide casar com Eduvigis, uma criada de servir, sopeira no dizer da irmã, que encontra por acaso na rua. As pretensões do jovem burguês são mal acolhidas por Edmond pai – bisavô do narrador –, que o deserda e corta o contacto tanto com o filho primogénito como com a sua descendência, dando-lhe apenas a Casa Velha e o pequena quantia de dinheiro como ajuda inicial. A generalidade da história da família chega ao último Edmond pela avó Eduvigis e pela mãe, nenhuma delas Roureda.

O gesto impulsivo do avô Edmond prenuncia uma família desequilibrada – teve dez filhos – e uma forma de gerir a vida não menos desequilibrada. As características do avô Edmond projectam-se no seu filho Edmond. É neste cenário decadente, inscrito na vida agitada da Catalunha desde os finais do século XIX, que no início dos anos 30 do século XX nasce o narrador e protagonista. Desde cedo começa a coleccionar e a brincar com soldados de cartolina produzidos pela casa Paluzie, os exércitos de Paluzie. É com eles que descobre a fragilidade dos homens, são soldados de papel em peanhas de papel, mas também descobre o pensamento estratégico dos grandes generais, cujas batalhas tenta emular no quarto azul que é o seu. É este treino militar que lhe permite sobreviver não apenas na escola, um lugar duro frequentados pelos filhos das classes populares, mas também na família, quando tudo aquilo que o suportava se desmorona e se vê em perigo pelas manobras de um tio. A vida é, deste modo, entendida como uma batalha, para a qual é necessário elaborar planos estratégicos que permitam assegurar a vitória sobre os inimigos.

Se esta afirmação de uma identidade que se preserva e persiste graças a uma estratégia modelada nos confrontos militares é o centro da narrativa, esta não deixa de suscitar outras abordagens. Os conflitos que atingem Espanha no tempo coberto pelo romance, nomeadamente, a Semana Trágica na Catalunha (1909) e a Guerra Civil espanhola de 1936-39, estão presentes, fornecendo um enquadramento histórico e, por vezes, motivações a algumas personagens secundárias. No entanto, não se está, nem de perto nem de longe, perante um romance comprometido politicamente. A História é vista como o pano de fundo onde a vida decorre, na sua banalidade quotidiana indiciada pela necessidade, pelo desejo e pela frustração. Por outro lado, toda a narrativa é marcada pela indistinção entre realidade e aparência, as quais, o autor, manipula para criar um ambiente de incerteza, como se a vida fosse uma mistura de verdade e mentira, não sendo nenhuma delas, contudo, sinais de uma valorização ou desvalorização morais. Ali não há bons e maus em sentido absoluto. Há pessoas que tentam sobreviver e adoptam as estratégias que melhor possam servir esse instinto de sobrevivência, mesmo que essas estratégias confundam realidade e aparência. No fundo, somos todos tão frágeis quanto os soldados de cartolina que formavam os exércitos vendidos pela casa Paluzie, e é com essa fragilidade que temos sobreviver e afirmar o quem e quem somos.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros


Publicada em 1940, O Deserto dos Tártaros é a obra mais conhecido do escritor italiano Dino Buzzati. O romance é uma reflexão sobre os equívocos presentes nas categorias com que damos sentido e avaliamos a existência que nos cabe viver. Aquilo que nos parece central e fruto do livre-arbítrio, isto é, das escolhas que cada um faz, pode não ser mais que o resultado do acaso, de forças que nem de longe nem de perto os indivíduos controlam, apesar de acalentarem essa ilusão. Uma leitura concomitante poderá ser a de ver o romance de Buzzati como uma ilustração literal da acção arbitrária da Fortuna, a deusa romana da sorte, mas também do acaso, do destino e da esperança.

Giovanni Drogo é um jovem oficial colocado num recôndito posto militar, o velho Forte Bastiani, numa zona de fronteira, aliás uma fronteira mal definida. Para além dela estende-se o território inimigo, de onde poderia vir um ataque à soberania. O Forte seria assim o posto avançado de defesa da independência. A verdade, porém, é que à rude dureza da paisagem corresponde uma efectiva ausência de ameaças. O inimigo não passa de uma miragem e a vida ritualizada dos militares da velha e quase esquecida instituição militar não deixa de ser uma encenação que se justifica apenas por si mesma. Drogo ao chegar pensou que apenas ali estaria quatro meses, depois voltaria para a cidade, para lugares mais prometedores para a sua carreira. No entanto, como outros, na altura em que poderia partir, levado por uma inexplicável vontade, decidiu permanecer no Forte. Tinha sido seduzido pelo lugar agreste e pela expectativa que, contra toda a racionalidade, alimentava os que ali ficavam.

A vocação militar tem por finalidade a busca da glória. Essa é a verdadeira causa que orienta os que abraçam a carreira das armas. A glória, porém, só pode ser alcançada no campo de batalha. Para tal é necessário um inimigo. A inexistência deste transforma a carreira militar num exercício burocrático. As paradas, o render da guarda ou o respeito estrito pelas normas de segurança, no Forte Bastiani, sem um inimigo no horizonte, não passam de rituais cuja racionalidade militar contrasta com a sua aparente irracionalidade social. Nem existe um inimigo que justifique a manutenção do forte, o qual é mantido apenas pela inércia político-militar, nem os militares encontram ali a possibilidade de realizarem o desiderato que os conduziu à vida castrense. A deusa Fortuna não derramou os seus bens sobre o destino daqueles homens.

A vida de Drogo, como a dos outros oficiais que se rendem àquele espaço, não passa de um exercício contínuo da esperança. A esperança que o grande momento chegue e que, no campo de Marte, eles possam mostrar o seu valor e dar assim sentido à existência. O que o romance torna manifesto, porém, é uma visão que contrasta decisivamente com a do mundo burguês-liberal, onde a iniciativa dos indivíduos é condição necessária para a sua auto-realização. A riqueza depende, pelo menos em parte, da capacidade do indivíduo gerir a sua existência e a da tenacidade com que enfrenta os obstáculos. A glória militar, pode depender da coragem individual, mas muito raramente da iniciativa pessoal. Nenhum indivíduo, por si, declara uma guerra ou inventa um inimigo para combater. A iniciativa individual é essencial na casta empresarial, mas, no caso militar, é apenas uma virtude que se deve subordinar a outras, como a rígida disciplina, a capacidade de obediência e até a alienação da sua opinião para cumprir os desígnios dos que lhe são superiores na cadeia hierárquica.

Neste caso, por maior que seja o desejo da glória e mais tenaz a vontade do indivíduo para a atingir, ela depende de circunstâncias que ele não pode controlar. A vida pode tornar-se então uma longa espera, o exercício de uma expectativa que nunca se realiza, pois a deusa, na sua cegueira, não a destinou. O sentido da vida não está então naquilo que haveria a realizar e que resgataria o indivíduo da banalidade da vida quotidiana, mas nessa mesma banalidade, vivida de forma ritual e burocrática, cumprindo uma função que em momento algum mostrou ter um qualquer interesse social que conduzisse ao reconhecimento por parte dos outros. Uma vida incógnita, a que não caberá já não digo o tributo de uma Odisseia mas a de uma simples notícia de jornal. Porquê? Porque não chegou a hora, porque a Fortuna foi avara, porque a realidade não depende da vontade do indivíduo. O Deserto dos Tártaros não deixa de ser, num mundo onde a virtude burguesa se tornou central, um tributo aos que, ao arrepio das suas ambições, sustentam disciplinadamente as instituições da comunidade, mesmo quando a Fortuna lhes volta costas.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Alexander Kielland, Garman & Worse – Um Romance Norueguês


Traduzido a partir do norueguês, para a Cavalo de Ferro, por João Reis, Garman & Worse - Um Romance Norueguês (1880) foi a obra de estreia de Alexander Kielland (1849-1806). Considerado hoje em dia uma obra-prima do naturalismo europeu, o romance de Kielland foi uma fonte de inspiração de uma outra obra-prima da literatura europeia, Os Buddenbrook, de Thomas Mann. A narrativa gira em torno da família Garman, proprietária da Garman & Worse, uma empresa da marinha mercante. O autor utiliza a família – neste caso uma família da alta burguesia norueguesa – para perscrutar as metamorfoses do tempo que estão na base do conflito entre tradição e modernidade.

Do ponto de vista empresarial, o conflito entre tradição e modernidade centra-se na opção do cônsul Christian Frederick Garman construir um novo e grande navio da marinha mercante ainda como um veleiro, ao contrário do pretendido pelo filho mais velho, que achava a opção desadequada num momento em que os navios a vapor seriam a solução aberta ao futuro. O conflito, que nunca é intenso devido à autoridade paternal, é marcado por duas orientações temporais. A do cônsul voltada para o passado. Com o novo veleiro pretende homenagear o pai, o criador do império dos Garman, cujo nome será dado ao novo barco. O filho, porém, é movido pelo futuro, pela atracção pelo desenvolvimento tecnológico que, na época, era visto como uma modalidade do progresso que deveria conduzir a humanidade à sua redenção.

Esta diferença entre filho e pai não é a única linha importante na narrativa. Kielland, num romance relativamente breve (pouco mais de 220 páginas na tradução portuguesa), consegue estruturar um conjunto diversificado de histórias, tendo sempre como elemento central a família Garman. Conta-nos a vida do Richard, irmão de Christian Frederick, e da sua filha Madeleine, a dos três filhos do cônsul, bem como dos elementos da família Worse que, em tempos estiveram ligados aos Garman na empresa, mas que, ainda no tempo do fundador, venderam a sua parte, criando um novo negócio. Uma parte da obra é dedicada ao jovem Worse e à sua mãe viúva, que no momento da viuvez descobriu que a família estava falida.

Através destas personagens é-se levado a uma visão da sociedade norueguesa da época, ao peso que a Igreja reformada nela tinha, às relações sociais entre uma alta-burguesia paternalista e aqueles que para ela trabalhavam. É manifestada a evidente equivocidade dessas relações, marcadas por dependência, fidelidade, gratidão mas também pelo ressentimento e pelo conflito. Não um conflito de classe como nos épicos do realismo socialista, mas de temperamentos. Por outro lado, a perspectiva sócio-económica não é a única a iluminar a obra. Os costumes, as relações amorosas, os laços familiares são, todos eles, elementos fundamentais no romance de Kielland. Algumas personagens têm tratamentos psicológicos densos, onde se percebe que o naturalismo do autor está para além das características que tipificam o naturalismo literário, marcado pelo positivismo filosófico e as suas correspondências literárias.

Mais que o retrato de patologias e degenerescências dissecadas à maneira do método científico, prática literária à qual se associa muitas vezes o naturalismo, encontramos tendências sociais em metamorfose, como a emancipação da mulher, a qual, na personagem de Rachel Garman, filha do cônsul, deixa o lugar tradicional no lar para entrar, contra a vontade do próprio pai mas com o apoio do futuro marido, no mundo dos negócios. Estas transformações sociais estão ligadas não a uma reprodução mecânica do meio e da própria hereditariedade, mas a características psicológicas próprias que conferem identidade e diferenciação às personagens. É na afirmação de identidades diferenciadas, e não apenas na dimensão social, que a tensão entre tradição e modernidade ganha corpo e se afirma, como se a diferença entre conservadores e liberais fosse uma questão de carácter.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Knut Hamsun, Filhos da Época


O romance Filhos da Época, de Knut Hamsun, pode considerar-se como o segundo momento de uma trilogia romanesca, cujo desígnio é a crítica da modernidade ou, melhor, dos processos de modernização. O primeiro romance dessa trilogia informal é Os Frutos da Terra e o terceiro, Segelfoss, de que não há tradução portuguesa, mas que foi traduzido em França como La Ville de Segelfoss. A versão portuguesa de Filhos da Época data de 1949, da responsabilidade da Editorial Minerva. Não é claro que esta versão seja uma tradução directa do norueguês. Provavelmente, será uma versão feita a partir da tradução francesa de 1944, mas isso não está especificado no livro. Seja como for, quem conhece o universo romanesco de Hamsun não ficará decepcionado com esta versão.

O conflito de Hamsun com os tempos modernos, neste romance, desenrola-se em torno do domínio de Segelfoss, uma grande propriedade nas terras do norte da Noruega, na Nortelândia. Duas personagens, em aparente cordialidade, são o centro dessa disputa entre o mundo que vem do passado e aquele que se projecta para o futuro. De um lado, o senhor do domínio, o tenente Willatz Holmsen, o terceiro proprietário do domínio, que possui o mesmo nome que o pai e o avô, o fundador da linhagem. Do outro, Tobias Holmengraa, um homem de negócios que percorreu o mundo e que se instala em Segelfoss. O primeiro representa uma tradição instalada. O segundo, é o representante dos novos tempos, daqueles que estão abertos ao futuro, o futuro trazido pela técnica.

O curioso é que a origem dos Holmsen não terá sido muito diferente da de Holmengraa. Como somos informados logo no início da obra, o proprietário original e criador do domínio era “um sujeito gordo e avarento, que fora criado de servir. Comprara fazenda após fazenda, na freguesia, e acabara por formar o «bem». Por fim, constituíra também uma grande empresa de comércio e cabotagem; montara a fábrica de telha, a azenha e a serração”. O espírito de iniciativa é o motor de arranque desta família que, à terceira geração, tinha já uma clara virtude aristocrática, uma visão do mundo e dos negócios que se afastara drasticamente da do avô. O tenente Holmsen era um grande senhor, generoso e, obviamente, a caminho da ruína total.

Tobias Holmengraa, por seu lado, é um homem polido pelo contacto com o mundo, nunca hostiliza os senhores de Segelfoss, demonstrando, em todas as ocasiões, o respeito do parvenu perante uma linhagem antiga. Tem uma forte inclinação amorosa por Adelheid, a mulher alemã do tenente, a que ela se terá de alguma forma furtado. Contrariamente ao avô Holmsen, mostra-se muito pouco avarento. A sua forma de agir centra-se na sedução e no cortejo da grandeza que são a marca dos senhores do domínio, bem como na generosidade com que usa o dinheiro. Lentamente, vai comprando partes significativas da propriedade e, quando a vida do tenente declina, o domínio está todo ele empenhado a Holmengraa. Desde o início do romance, percebe-se que o espaço é o elemento central desta disputa surda, como se todo o poder devesse estar radicado na terra.

A compreensão do conflito, porém, não resulta de uma oposição entre uma velha aristocracia e uma nova burguesia ascendente. Os traços senhoriais dos Holmsen são recentes. A iniciativa é tão característica do primeiro Holmsen quanto de Holmengraa. O que os distingue será fundamentalmente a questão da técnica. A iniciativa do primeiro senhor do domínio de Segelfoss leva-o a um conjunto de empreendimentos onde a técnica usada não representa um corte com o mistério da natureza. Estamos perante tecnologias que se poderiam dizer pré-científicas, fruto de longas tradições feitas de experiência artesanal. O mistério da natureza é o lugar onde o homem se abriga e desenrola a sua vida em comunhão com a Terra. Holmengraa pertence já a outro mundo. A sua iniciativa não é inócua para os homens. As tecnologias – onde se inclui a tecnologia de gestão – a que vai recorrer acabarão por fazer desabar o velho mundo social que se organizara em torno do domínio dos Holmsen. Aparentemente, Holmengraa perde, pois o tenente, no momento final da vida, consegue resgatar o domínio. No entanto, Hamsun não tem ilusões. Na economia da narrativa, isso só é possível pelo recurso a um estratagema que vem da tragédia de Eurípides, o recurso a uma espécie de Deus ex machina, o qual é anunciado sub-repticiamente no início da obra e que, no fim, permite desatar o nó em que o tenente Holmsen enredara a vida e o domínio de Segelfoss.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Curzio Malaparte, O Sol é cego


Ao acabar de ler o romance O Sol é cego fiquei a olhar para a capa da edição portuguesa e para o título, tradução literal do original italiano Il Sole è cieco (1947). Depois pensei que aquele título serviria muito bem para fazer uma introdução a um curso de tropologia, tal a densidade expressiva desviante do sentido literal que ali se encontra. Atribuir a cegueira ao Sol é de imediato, se não uma personificação, um animismo. No entanto, enunciado o Sol é cego interpretada a partir da experiência de leitura do romance mostra-se como uma expressão metafórica, onde a cegueira é o indício da indiferença com que o Sol presenceia a desgraça humana da guerra. Por outro lado, o Sol é uma sinédoque, através da qual o todo da natureza é dita por uma das suas partes. É a natureza que é cega perante as idiossincrasias da humanidade, é ela que fecha os olhos e, assim, permite que os homens se batam e se matem. Esta natureza, todavia, não será mais que uma máscara dessa figura trágica que é o destino Por que razão o autor condensará no título um tão grande arsenal retórico?

Falar da guerra – ainda por cima de uma guerra considerada inútil – talvez só seja possível pelo abandono da literalidade da língua, pelo recurso a uma hipertrofia expressiva que transforma o prosaico em poético e, desse modo, sublinha o patético do enfrentamento entre os homens. A guerra não é a norma da experiência quotidiana da humanidade. Ela é um estado de excepção que exige uma linguagem que vá para além da literalidade prosaica. O título é um indício da linguagem que o leitor vai encontrar. O romance é criado a partir da experiência de Malaparte como correspondente de guerra, na Batalha dos Alpes, em Junho de 1940. O autor não é propriamente um pacifista. Aos 16 anos foge do colégio onde estudava em Itália e vai oferecer-se ao exército francês para combater na primeira guerra mundial. No entanto, o combate que agora acompanha está marcado por dois pecados que ele não perdoa. Em primeiro lugar, o facto de a Itália ter declarado guerra a França, estando esta já enfraquecida pelo ataque alemão. Depois, porque o batalha alpina vai pôr frente a frente italianos e franceses, habitantes dos Alpes, que sempre mantiveram relações de amizade. A declaração de guerra italiana ultrapassa os limites da honradez que, uma antiga tradição guerreira, colocava entre beligerantes.

A irracionalidade da guerra e daquela guerra em particular ganha corpo na desrazão que atinge a personagem central, um capitão italiano que tem por missão estabelecer ligações entre diferentes grupos do exército italiano, percorrendo assim os Alpes, entabulando conversa aqui e ali, descrevendo os homens confrontados com o terror e o temor. Essas descrições são entrecortadas por outras, as que fazem ressaltar a beleza da paisagem que, indiferente, assiste aos combates e à agonia dos homens e dos animais, que a guerra também mobiliza. A perda de razão do capitão está ligada ao destino de um soldado, Calusia, um pobre e inocente camponês alpino, um homem simples que ama as vacas e que se passeia com um chocalho ao pescoço. Calusia está naquele limiar entre o animal e o homem, sendo, na verdade, mais animal que homem. Essa condição torna manifesto o que há de criminoso naquela guerra, onde, como referido acima, a gente simples dos Alpes, que sempre tiveram laços de proximidade, se vai agora matar.

A morte de Calusia atinge em pleno o capitão. A sua loucura é o resultado da responsabilidade que sente perante o destino daquele ser tão próximo de uma inocência primitiva. Esta insânia resgata a humanidade que as máquinas de guerra tendem a destruir. Exércitos são dispositivos onde se cumprem ordens, mas nos quais há uma irresponsabilidade pelo desencadear da guerra e pelo destino dos que nela morrem devido ao acaso dos combates. Ao perder a razão, ao sentir-se culpado daquilo que parece estar fora da sua alçada, o capitão sublinha um princípio de solidariedade que vai muito para além daquilo que formalmente é o seu dever. A natureza é indiferente aos combates, o sol é cego perante a vilania, o destino parece inexorável, mas um homem pode ainda enlouquecer porque se sente responsável pelo destino de outro. Há, na desrazão que acometeu o capitão, um princípio de esperança que poderá resgatar a humanidade afundada na loucura.

domingo, 5 de maio de 2019

Heinrich Böll, E não disse nem mais uma palavra


Escrito em 1953, E não disse nem mais uma palavra é apontado como um romance central na obra do Nobel alemão Heinrich Böll. Em Portugal foi presumivelmente publicado em 1960 pela Editorial Aster, com tradução de Maria Teresa e João Carlos Beckert d'Assumpção. A narrativa concentra-se em dois dias, num fim-de-semana, numa cidade alemã, nunca identificada, onde decorre, com exuberância e alvoroço, um estranho congresso de droguistas. Aparentemente, este congresso nada tem a ver com o enredo central, o qual gira à volta do casal Fred e Käte Bogner. No entanto, o omnipresente imperativo publicitário “CONFIA NO TEU DROGUISTA!” estabelece, de modo irónico, o problema da confiança como horizonte onde se desenrola o drama humano daquele casal.

Os dois dias em que decorre a acção do romance situam-se no pós-guerra, numa Alemanha devastada pelos bombardeamentos e, ainda mais, por uma derrota militar, que foi também a derrota de uma ideologia total que conferia um sentido e um destino históricos aos alemães, e que estes, na sua generalidade, não deixaram de abraçar seja por acção, comprometendo-se com o nazismo, seja por omissão de resistência. A devastação das estruturas físicas necessárias à vida, a derrota militar humilhante e a perda do sentido para a existência só poderiam conduzir a um abalo desse sentimento que funciona como um cimento que une as comunidades, a confiança. Como se poderá sentir um povo derrotado que acreditou na retórica da raça superior?

Fred e Käte são um casal separado com três filhos e, provavelmente, a caminho de um quarto. Apesar da separação, continuam a encontrar-se em hotéis miseráveis. Ele entrega-lhe praticamente tudo o que ganha. Dorme onde calha e vive de expedientes e empréstimos. Tem fama de alcoólico, embora raramente se embebede. Ela vive obcecada pela limpeza da parte de casa em que vive. O que Böll mostra de forma crua é os interstícios de uma vida marcada pela pobreza e a falta de esperança. Foi a pobreza que se imiscuiu na vida daquelas pessoas, que não apenas lhes retirou expectativas como as correu por dentro, incluindo no carácter. Fred sai de casa porque se tornou violento com os filhos. Essa pobreza, porém, tem uma raiz e essa é a guerra. Ele esteve na guerra, da qual não gosta de falar. Essa guerra, apesar de terminada, continua presente na paisagem da cidade, na vida social e no coração dos homens.

Um elemento central na estruturação do romance é a omnipresença do catolicismo. Heinrich Böll era católico, embora desde muito cedo crítico para com as opções da Igreja. Essa duplicidade perante a sua religião está bem presente na obra. Por um lado, o casal é católico. Ela reza e frequenta de alguma forma Igreja. Há uma cena onde Käte, antes de se ir encontrar com o marido, se confessa e fala da raiva que habita dentro dela. O padre, que também sente em si raiva pela vida dos seus superiores, fica hesitante se lhe pode ou não dar absolvição. Fá-lo apenas de forma condicional. Esta hesitação do sacerdote é central para se compreender até onde se coloca o problema da confiança. O próprio conhecimento da fé e a interpretação das condutas se tornam vacilantes aos olhos dos próprios pastores. Não são apenas as ovelhas que perderam o norte, também os pastores deixaram de saber o caminho e perderam a capacidade de interpretar os sinais.

No entanto, ao lado desta Igreja hesitante e perdida, mas que nessa hesitação e perda torna patente a sua autenticidade, existe uma outra fria, julgadora, imperturbável. Esta é encarnada pela mulher do casal que partilha a casa com os Bogner, ocupando a maior parte das divisões. Ela, com o seu farisaísmo, retrata uma Igreja que se considera infalível e acima das vicissitudes da humanidade. Böll, ao dissecar as estruturas sociais, põe de lado a configuração política emergente e olha para o papel da religião como elemento ainda central para a construção da vida das pessoas. Todo o romance é perpassado por um conflito entre duas formas de conceber a relação dos homens com a religião, isto é, com o absoluto. Se a confiança em si e nas estruturas sociais é abalada, apenas resta ao homem a confiança no transcendente. Se também aí não há lugar para a confiança, resta o irónico imperativo “CONFIA NO TEU DROGUISTA!”.

domingo, 28 de abril de 2019

François Mauriac, O Mistério dos Frontenac


Antes de ser editado em livro pela Grasset em 1933, O Mistério dos Frontenac (Le Mystère Frontenac), de François Mauriac, foi publicado em cinco folhetins na La Revue de Paris, entre Dezembro de 1932 e Fevereiro de 1933. A tradução portuguesa, de Luís Forjaz Trigueiros, que também assina um prefácio, é de 1956, publicada pela Editora Ulisseia. O tempo da narrativa é o da segunda década do século XX, no período que antecede a Grande Guerra de 1914-1918. Apesar das personagens relevantes possuírem contornos delineados e diferenciados, que os individualizam, a obra de Mauriac põe em acção uma personagem colectiva, a família Frontenac. Esta opção narrativa indica de imediato uma visão que não se confunde nem com as glórias individualistas da cosmovisão liberal nem com as preocupações sociais da mundividência socialista. O mundo que emerge do romance é tipicamente burguês mas de tonalidade católica.

A família não deve ser entendida apenas no sentido biológico e afectivo, mas como pedra angular do mundo burguês, isto é, num sentido social. É nela que uma certa relação com o mundo dos negócios se preserva e se transmite de geração em geração. Do ponto de vista histórico, as velhas tradições sociais ligadas aos estados sociais foram aniquiladas pela Revolução Francesa, nos finais do século XVIII. A única tradição viva é a do terceiro estado e é na família que ela se transmite, não a todos os membros, mas a um deles que acaba por ter um papel patriarcal, cuidando dos negócios e dos outros membros. A família, enquanto veículo de tradição, encontra o seu fundamento na fé religiosa. A comunidade biológica é trabalhada e metamorfoseada pela comunhão espiritual, pelas crenças e ritos que solidificam a volubilidade das ligações naturais.

A família Frontenac, tal como aparece no livro, é já uma família amputada. Michel Frontenac morre jovem e deixa a sua mulher, Blanche, com cinco filhos. Três rapazes e duas raparigas. Há também Xavier Frontenac, irmão do falecido Michel. A narrativa estrutura-se em torno de quatro personagens. Blanche, que apenas é Frontenac pelo casamento, Xavier e dois dos rapazes, o mais velho Jean-Louis e Yves. É neste quarteto que Mauriac tece as linhas do espírito de família, mostrando também as suas contradições e os eventuais pontos de fuga. De certa maneira, em todas estas personagens existem pontos de fuga, que ameaçam a tradição e podem pôr em causa a própria família. No entanto, o poder de atracção é de tal maneira poderoso que acaba por debelar as ameaças que a vida e a passagem do tempo colocam ao clã.

Se se pretender fazer uma leitura do título da obra, o mistério dos Frontenac é esse poder atractor dos vínculos da família burguesa. Esse poder é misterioso pois não reside naquilo que pode ser explicado apenas pela razão. Não são os interesses económicos, por exemplo, que justificam que a família seja observada como uma personalidade – e, romanescamente, como personagem. Não é também, a mera dimensão biológica – acrescida pelo desenvolvimento de laços de afecto – que explica aquele clã. É como se existisse um espírito vindo do passado, no qual Blanche se integra e assume como seu, que encarna nos diversos membros e lhes dá coerência e coesão. Esse espírito – talvez o espírito dos antepassados – não se deixa apreender pelo olhar frio a analítico da razão, mostrando-se apenas numa cultura comum, onde a religião possui um papel central, e nos afectos que devem ser compreendidos como indicadores de reconhecimento de pertença a uma mesma pátria, com os seus costumes e linguagem.

O romance tematiza os diversos pontos de fuga das personagens centrais. A vida misteriosa do tio Xavier em Angoulême e, depois, em Paris, sempre longe dos seus familiares, que protege e cujos bens defende. A sombra da morte que, premonitoriamente, paira sobre Blanche, a matriarca que vinda de fora encarna o espírito da família. O delíquio intelectual de Jean-Louis, o mais velho dos irmãos Frontenac, que tem a ousadia de pensar em ir estudar Filosofia e fazer vida de académico. A natureza mística e poética do adolescente Yves, que se transmuta em dândi na juventude. Em todos eles compreende-se a existência de forças obscuras de dissolução, mas o mistério da família permite-lhes chegar unidos a esse momento crucial da História da Europa, a primeira Grande Guerra, onde todos os laços do mundo antigo se dissolvem.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Curzio Malaparte, A Pele


Presumo que poucos leitores saberão, hoje em dia, quem foi Kurt-Erich Suckert, um italiano filho de pai alemão e mãe lombarda. O próprio fez alguma coisa por isso ao mudar o nome para Curzio Malaparte. A sua vida, plena de peripécias, em que a primeira digna de nota é a fuga do colégio para ir combater na primeira guerra mundial, pode ser vista como um retrato da primeira metade do século XX europeu. Ela é também um símbolo da conversão. No período entre grandes guerras converte-se ao fascismo, mas acaba por romper com o regime, sendo aliás perseguido. Depois da segunda guerra mundial dá-se uma conversão ao comunismo. A sua adesão ao PCI, porém, só será aceite, por Palmiro Togliatti, no final da vida de Malaparte. Um mês antes de morrer, em 1957, é baptizado e recebe a primeira-comunhão. A última conversão.

O romance A Pele, data de 1949. A tradução portuguesa é de Alexandre O’Neill, para a colecção Dois Mundos dos Livros do Brasil. A acção desenrola-se a partir de 1943, na altura em que os exércitos aliados entram em Itália, como libertadores, e ocupam Nápoles. A personagem principal é o próprio Malaparte, na altura oficial de ligação entre as forças da resistência italiana e o comando americano. Este facto gerou um contínuo questionamento sobre a natureza do romance. Será ele uma memória biográfica, uma reportagem jornalística, ou uma narrativa de invenção? A questão, porém, é irrelevante. A verdade de uma obra de arte não depende da sua relação com os factos vividos pelo autor, mas da congruência do mundo que essa obra cria e oferece à contemplação do leitor.

Duas chaves possíveis para ler a obra são-nos dadas nos capítulos “IX – A Chuva de Fogo” e “X- A Bandeira”. No primeiro, a narrativa centra-se na erupção do Vesúvio em 1944 e esta funciona com uma alegoria da própria guerra. Não se trata, porém, de estabelecer uma analogia entre o número de vítimas dos dois fenómenos, mas de fornecer uma primeira chave de leitura sobre a guerra. Para aqueles que são expostos a ela, a guerra é um fenómeno da mesma natureza dos cataclismos naturais. A contenção do seu poder destrutivo está muito para além do livre-arbítrio daqueles que a sofrem. Para estes é como uma catástrofe desencadeada pelas forças inomináveis da  natureza. No capítulo “A Bandeira” é contado um acidente em que um homem, comemorando a entrada do exército aliado, acaba por ficar debaixo de um tanque. Fica reduzido a uma fina pele. E essa pele é a bandeira de todos aqueles que sofrem o absurdo da guerra. Salvar a própria pele é o que move, em última instância, cada um que é apanhado na erupção desse vulcão sob as ordem de Marte.

É em nome da salvação da pele, ameaçada pela fome, que os napolitanos descem às maiores indignidades, perante o exército aliado triunfante. A prostituição das mulheres e das crianças, a sujeição a práticas inverosímeis, a degradação da condição humana, tudo isso faz parte daquilo que Malaparte denomina como a peste. Não se trata da peste orgânica dos velhos tempos medievais, nem sequer a peste que toda a guerra metaforicamente é. Trata-se da peste moral a que os homens, sob o império da fome, se sujeitam para salvar a sua bandeira, a pele. O olhar de Malaparte é impiedoso e, ao mesmo tempo, compreensivo. É também o olhar de alguém que sofre perante o destino de uma Europa submetida a duas grandes guerras, de alguém que cobre com o cinismo a chaga aberta pelo suicídio dessa Europa.

O olhar desencantado de Malaparte permite-lhe perceber tudo aquilo que de mais negro se mistura nestes momentos de libertação, sublinhando não sem ironia a possibilidade de os italianos serem vencedores da guerra que perderam. O autor sabe que os vencedores não são aqueles que combatem, que correm riscos, que põem em jogo a sua pele. Os vencedores são aqueles que, durante as horas negras, se escondem e estão sempre prontos a aclamar o vencedor, seja ele qual for. O amanhã será deles. Este cinismo tem outra face. Esta é a da consideração da inocência das tropas americanas – mesmo que o seu comportamento seja reprovável. Os americanos não sabem nada da Europa, dos seus conflitos, dos seus ódios e dos seus amores, e olham-na cândidos e perplexos, desejosos de regressar a casa, a um mundo mais simples e menos povoado pela morte.

Na parte final do romance, num mundo onde só os mortos contam, Malaparte escreve: “Que seria do mundo, de todos nós, se entre tantos mortos não estivesse um Cristo?” Esta interrogação abre o caminho do leitor para uma outra e surpreendente interpretação do fenómeno da guerra. Já não da guerra vista como um desastre natural por quem a sofre, mas como um acontecimento soteriológico. “Cristo morreu para nos ensinar que cada um de nós pode tornar-se Cristo, que cada homem pode salvar o mundo com o seu próprio sacrifício. Também Cristo teria morrido inutilmente se cada homem não pudesse tornar-se Cristo e salvar o mundo.” Esta leitura sacrificial da guerra entronca na teoria dos sacrifícios de Joseph de Maistre, conferindo assim um sentido à loucura dos homens e à destruição que ela implica. Para que todas essas mortes possam ter algum significado é preciso que elas representem um sacrifício que abra o caminho à redenção.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Lars Gustafsson, A Amante Colombiana


Editado na Suécia em 1996, o romance A Amante Colombiana, de Lars Gustafsson (1936 – 2016) é uma crónica do novo mundo aberto por dois fenómenos concomitantes: a queda do Muro de Berlim, símbolo do fim da experiência do socialismo real, e a globalização. Dick Olsson, a personagem central da obra, é um consultor reputadíssimo na área da publicidade. A pequena dimensão do romance – 160 páginas na tradução portuguesa – não obsta a que sejam tratados narrativamente um conjunto diversificado de temas, que acabam por traçar uma visão do mundo que se começava a desenhar naquela época aos olhos da população dos países ocidentais.

Dick Olsson faz parte daquele grupo de pessoas que vive constantemente em viagem. Os aeroportos são uma espécie de segunda casa. A personagem é um exemplar daquilo que, mais tarde, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman irá referir como elite nómada, contraposta, num mundo líquido, a uma espécie de plebe gregária. Ele possui várias casas, a principal em Austin, no Texas. Na verdade, é um emigrante sueco nos EUA, mas um emigrante muito especial, pois antes de se instalar ali, vindo da Suécia, já pertencia a essa nova elite que se estava a apoderar do mundo. Em contrapartida, a mulher colombiana referida no título da tradução portuguesa também é uma emigrante, mas não pertence à elite nómada. Pertence à plebe que entra clandestina nos EUA para trabalhar por baixos salários. Eleonora, era assim que Olsson lhe chamava embora o seu nome fosse Lucrezia, era mulher-a-dias, que vivia sem papéis e no terror de ser deportada. E como mulher-a-dias foi contratada por Olsson. O livro retrata assim dois tipos de nomadismo, com aceitação social e política radicalmente oposta.

A partir da existência de Olsson, o autor mostra-nos a desagregação da família. Quando ele recebe a notícia da morte da mãe, confronta-se com o seu afastamento e a estranheza que sentia perante ela. Essa estranheza não é diferente daquela que conduziu a que a sua mulher se separasse dele, ou a que levava a que não visse o filho há dez anos. O mundo nómada não é o lugar da família, nem de laços fortes e significativos. É composto por mónadas que estabelecem relações circunstanciais movidas pelos interesses próprios. E estes interesses próprios – ganhar muito dinheiro ou afirmar um certo poder – encontram na publicidade um mundo amoral. O publicitário tanto pode organizar uma campanha para tornar visível um grupo independentista da Transdniéstria ou outra para ajudar uma tabaqueira a combater o péssimo acto de deixar de fumar. No mundo nómada das elites, a moral sucumbiu ao peso da legalidade positiva, na qual se esteia o interesse individual. E é esta cultura que permite perceber o desagrado do protagonista com o modo de vida sueco, tão submetido às imposições da velha social-democracia e aos laços impostos pelo sindicalismo.

É neste horizonte social que se vão aproximar, tal como Olsson costuma fazer na publicidade com as ideias, dois mundos sem contacto entre si. O rico consultor de publicidade de origem europeia e a pobre e clandestina mulher-a-dias colombiana. Ela com os seus traços de índia nem sequer é bonita, mas ele sente-se atraído por ela, pelo seu cheiro. Ele reflecte sobre os perigos de se enredar naquela relação, nas exigências que ela poderá vir a fazer, mas a atracção é mais forte que o cálculo. Desta relação há dois pontos centrais no processo de humanização das personagens. Um diz respeito à primeira vez em que fazem amor e em que ele lhe faz notar que ela não é virgem, e ela responde-lhe que ele – o senhor Dick – é o primeiro homem que a toca. Ele não percebe o que ela quer dizer. O mistério deste primeiro toque é a revelação da humanidade de Eleonora. O segundo ponto central diz respeito a ele e combina a emergência de uma dor, a da falta dela numa viagem que faz à Europa para enterrar a mãe, e a sensação sentida de ter perdido a alma. A dor e a sensação de perda da alma são o sintoma de que a sua humanidade ainda pode emergir por debaixo da máscara social que adoptou para reger a sua existência. O amor surge então como a possibilidade – uma mera e remota possibilidade – de arrancar os seres humanos presos à esquadria social que habitam e tornarem-se seres humanos reais.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Arnaldo Gama, A Caldeira de Pêro Botelho


Desde o século XIX que no romance moderno português existe uma dupla linhagem. A do romance de actualidade e a do romance histórico. Este último encontra entre os seus cultores Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Há no entanto um conjunto de escritores de segunda linha – isto é, que não atingiram a canonização de Herculano, Garrett, Camilo, Eça e mesmo de Júlio Dinis – que cultivaram o género e que terão tido uma influência efectiva na sociedade de então, continuando a ser lidos ainda no século XX. Uma dessas figuras foi o escritor portuense Arnaldo Gama (1828 – 1869), que se pode inscrever no segundo romantismo. O romance A Caldeira de Pêro Botelho (1866) foi a última obra publicada em vida do autor.

O tempo romanesco é o de Luís de Camões e a narrativa cobre acontecimentos que se desenrolam em Coimbra, na Madeira e, no epílogo, passados trinta e sete anos dos acontecimentos centrais, em Lisboa, o que permite ao autor fornecer aos leitores uma visão completa do desenlace dos acontecimentos. Uma questão de amor – os amores contrariados de D. Beatriz de Moura, uma nobre coimbrã, e de Diogo Botelho, um aristocrata madeirense – abre o caminho para um conjunto de aventuras, em que participam os amigos de Diogo Botelho, Luís Vaz de Camões e Simão de Ornelas, então estudantes em Coimbra. Posteriormente, o centro da acção, já sem a presença de Camões, transita para a Madeira onde se conhece o desenlace dos amores entre Beatriz e Diogo, envolvidos em novas aventuras e desventuras.

Uma literatura de entretenimento, para usar uma palavra hoje em voga? Sim e não. Sim, porque o conjunto de peripécias mantém o leitor comprometido com a leitura. Não, porque há uma intenção didáctica, uma visão moral do mundo e uma reflexão sobre aspectos da própria literatura, isto é, uma espécie de considerações meta-literárias que o autor partilha com os leitores. Estamos longe de uma obra que queira pura e simplesmente ajudar o leitor da classe média da época a enfrentar o tédio da vida burguesa, oferecendo-lhe uma narrativa de capa e espada.

Do ponto de vista didáctico, há uma espécie de trabalho de historiador que procura dar a conhecer, a um leitor que vive três séculos depois, como era vida dos universitários de Coimbra no século XVI, bem como alguns aspectos da vida das famílias mais poderosas da Madeira ou algumas vicissitudes pelas quais a população do arquipélago passava devido à sua situação geográfica. Percebe-se também como os poderes fácticos se sobrepunham à justiça, a qual é mostrada como uma espécie de joguete entre os poderes rivais. Este didactismo residirá na ilusão de que aquilo que História não consegue fazer – transportar-nos para o passado – a imaginação literária terá o poder de o fazer, ao mergulhar-nos nas vidas e acções das personagens romanescas.

Considerando que as personagens pertencem a famílias aristocráticas, o problema da honra é central na questão moral. O bem e o mal são aferidos a partir de questões de honra, tendo esta o papel, juntamente com o amor e o desejo erótico, de desencadear as acções dos protagonistas. No entanto, o desenlace e o destino das várias personagens acaba por representar uma reflexão tingida pelo cepticismo, como se as visões do mundo e da vida que os homens acalentam e a que dão tanta importância não passassem, como é dito no Eclesiastes, de vaidade de vaidades. É tudo vaidade. Os destinos dos protagonistas – e onde se inclui a morte de Camões na miséria – confirmam que a vaidade humana acabará por ser castigada pela própria vida e que os projectos que os homens desenham, e pelos quais lutam, não passam de ilusões que a realidade acabará por reduzir a pó. Esta visão moral do mundo é solidária das reflexões meta-literárias que o autor introduz no romance. A dada altura diz que os seus romances não têm heróis e esse é o problema deles, mas ele não vê razões para os criar, pois está interessado na realidade. E a realidade reside no destino sombrio das personagens. De todas elas.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Franco Nogueira, Salazar vol. 1 A Mocidade e os Princípios


Data de 1977, cerca de três anos após o derrube do regime político do Estado Novo, a publicação, pelo embaixador Franco Nogueira, do primeiro volume, de seis, da biografia de Salazar. Este volume tem por título Salazar Vol. I A Mocidade e os Princípios. O interesse desta biografia não reside  no facto de estarmos perante um historiador preocupado com a independência e a objectividade histórica nem de um especialista na narrativa biográfica. O seu interesse releva do olhar de alguém que foi não um mero compagnon de route, mas de um correligionário do ditador português, de cujos governos foi ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1961 e 1969. Apesar dos protestos de independência apresentados no “Esclarecimento” com que inicia a obra – É neste espírito, de absoluto desprendimento, de rigoroso exame das fontes, mesmo de gelado realismo, que concebi o relato do consulado de Oliveira Salazar. Não é obra de vitupério, nem de apostolado: busco a verdade, à luz dos factos e documentos (p. X). –, o leitor facilmente perceberá a simpatia com que a figura de Salazar é tratada. Seja como for, é um documento que merece leitura por quem se interessar pela História portuguesa do século XX. Franco Nogueira não foi um protagonista qualquer.

Este primeiro volume abarca o período que vai desde os finais do século XIX até ao 28 de Maio de 1926. Divide-se em cinco capítulos. O primeiro dedicado aos tempos de infância, no Vimieiro e em Santa Comba Dão, e aos do seminário em Viseu. O segundo capítulo abarca os tempos de estudante de Coimbra. O terceiro, o ingresso no professorado universitário e a sua afirmação enquanto docente. O quarto capítulo caracteriza a natureza doutrinadora do militante católico e o último retrata os primeiros tempos do regime nascido do golpe militar que pôs fim à primeira República.

Um dos motivos por que vale a pena ler a obra de Franco Nogueira reside no fresco que ele oferece dos tempos políticos que vão desde os últimos anos da Monarquia até aos primeiros tempos do Estado Novo, com especial atenção à primeira República. Nesta fase, há traços comuns aos três regimes e cuja descrição prepara uma possível explicação da emergência e consolidação de Salazar enquanto figura política central do Portugal dos anos trinta até aos anos setenta. Por um lado, o défice crónico das contas públicas, a difícil gestão dos dinheiros do Estado, a necessidade de viver de empréstimos das potências estrangeiras e a relutância destas. Concomitante ao descalabro financeiro é o pandemónio político. Naquele período, assiste-se à desagregação da monarquia constitucional, às tentativas sempre falhadas de estabilizar a primeira República (quarenta governos em menos de dezasseis anos) e, por fim, às enormes dificuldades sentidas pela ditadura do Estado Novo para controlar a situação emergente. Este é o pano de fundo que Franco Nogueira descreve e que, de forma subliminar, deixa perceber como causa que gera a resposta política encarnada pelo homem que veio de Santa Comba.

Encontrar-se-ão, na obra, múltiplos traços da formação pessoal e política de Salazar. Os aspectos pessoais, muito curiosamente, são descritos com uma linguagem paroquial, como se o autor quisesse através da selecção dessa estratégia linguística pintar o país e as relações sociais onde Salazar emergiu. Um dos traços centrais da narrativa é a equívoca relação com as mulheres. A ligação com a mãe, Maria do Resgate, tem um carácter de preocupação obsessiva e parece ter ocupado um papel relevante na vida do futuro ditador. Por outro lado, o biógrafo não se cansa de salientar a atracção que o jovem universitário exercia sobre as mulheres das classes altas de Coimbra, embora nenhuma dessas relações passasse de um domínio platónico. A linha narrativa de Franco Nogueira – e isso vai ser reforçado no segundo volume – é a de desmentir a ideia de que Salazar teria sido uma espécie de frade laico, dedicado aos negócios de Estado. Parece mesmo querer sublinhar o contrário, embora os elementos apresentados para construir essa imagem de um Salazar D. Juan sejam particularmente débeis.

Um segundo traço importante é o do militante católico, integrado no Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, e colaborador do jornal O Imparcial. É neste âmbito que nasce e se consolida a amizade com o padre Cerejeira, futuro Cardeal-Patriarca de Lisboa, e com muitos dos que vão ser seus amigos pela vida fora. A militância de Salazar escora-se na leitura das encíclicas de Leão XIII, dos textos de Charles Maurras e de Gustav Le Bon. A sua acção visa defender a Igreja Católica dos ataques da República, fundamentalmente dos sectores mais radicais. Apesar de ser simpatizante monárquico, as suas concepções políticas derivam em primeiro lugar do catolicismo e das preocupações da Igreja em integrar no seu seio as classes operárias, numa visão antagónica do marxismo e da luta de classes.

Um terceiro traço, focado por duas vezes pelo biógrafo, é o que está ligado à descoberta, por Salazar, da sua mais profunda e autêntica vocação. Numa conversa entre amigos, o universitário, num dos raros momentos de exposição do seu pensamento mais íntimo, confessa que sentia como sua vocação mais funda ser primeiro-ministro de um rei absoluto. Embora Franco Nogueira não faça a hermenêutica desta confissão, ela é fundamental. Não tanto porque prefigura a sua ambição – e a ambição é um dos traços mais salientes do carácter de Salazar – de ser um futuro ditador, mas do seu indeclinável afastamento dos valores da modernidade e do Iluminismo. O 28 de Maio vai abrir-lhe a porta para a realização dessa sua ambição, embora Salazar não tenha posto em causa a natureza republicana do regime. Limitou-se a ser primeiro-ministro de uma república autocrática.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Thomas Pynchon, Vício Intrínseco


Publicado nos EUA em 2009, Vício Intrínseco (Inherent Vice), de Thomas Pynchon, é uma visita a uma certa cultura que floresceu nos anos sessenta do século passado. A data dos acontecimentos narrados – acontecimentos fictícios – é relativamente obscura, embora a referência ao caso Charles Manson permita colocá-los no ano de 1970. O autor explora o mundo da cultura hippie e as estranhas relações que se tecem em torno do flower power. Este tipo de cultura, que floresce como reacção à guerra no Vietname, centra-se na promoção da não-violência, no corte com a exigência burocrática do mundo do dinheiro, na libertação da sexualidade dos tabus que ainda a enclausuravam, na emergência de uma contracultura marcada por uma espécie de misticismo e de crenças sobre coisas tão intangíveis como o suposto continente perdido da Lemúria e, fundamentalmente, no consumo de psicotrópicos. Tudo isto aflora no romance de Pynchon.

No centro da narrativa encontra-se o detective Larry Sportello, conhecido por Doc. Para quem conhece os detectives privados dos policiais americanos é com surpresa que depara com este heróico investigador privado. Doc é um hippie. Veste-se e usa o cabelo como tal e anda sempre pedrado, embora o seu consumo de drogas se confine, por norma, ao que hoje se poderia considerar drogas leves. Ao lado desta cultura, ou fazendo parte dela, ergue-se uma outra, a do surf, com uma fileira musical que anima as rádios locais e o coração do detective. O centro da acção é a zona de Los Angeles e a narrativa é desencadeada pela visita de Shasta Fay Hepworth, antiga namorada de Larry Sportello e actual amante de um poderoso homem da construção, Mickey Wolfmann, para lhe pedir ajuda. Desconfiava que Wolfmann poderia ser vítima de uma conspiração da mulher e do amante desta para o internarem e se apoderarem do seu dinheiro. Descobre-se, depois, que Wolfmann teria tido uma epifania hippie e como contrição pela sua vida de duro homem de negócios propunha-se desbaratar a fortuna num projecto social no deserto.

A partir deste ponto, Pynchon constrói um universo de relações alucinantes entre polícias corruptos e assassinos, uns locais e outros federais, hippies continuamente drogados, mafia ligada à distribuição de droga, com passagem por Las Vegas e os casinos, todo um conjunto de universos paralelos à lei e à ordem, onde se incluiu um saxofonista dado como morto, mas que afinal não o estava, e uma organização, a Golden Fang, possuidora de um barco com o mesmo nome, que tanto pode ser um poderoso cartel de droga, ou um grupo conspirador da direita radical ou apenas uma empresa preocupada em fornecer cuidados de saúde, nomeadamente de saúde oral. Ou talvez seja tudo isso ao mesmo tempo. Estamos perante um retrato hilariante e mordaz do sonho americano, onde todas as relações sociais são equívocas e o poder da lei e da ordem racional está submetido aos poderes fácticos dos negócios obscuros e da violência.

O formato escolhido pelo autor, um romance policial, implica que a narrativa esteja preocupada com a descoberta da verdade. É para isso que existem detectives, incluindo os privados. Pynchon não é propriamente um romancista policial e não parece ser isso que está em jogo em Vício Intrínseco. O essencial é a construção da personagem de Doc, Larry Sportello. Este é um dos mais inverosímeis detectives que se pode encontrar na literatura. Que relação poderá ter ele com a verdade? Como poderá ser ele, continuamente pedrado, descobrir o que quer que seja? A ironia – e, porventura, a crítica social – reside na conclusão que se pode extrair. A verdade sobre a sociedade americana, sobre a chamado american dream, sobre a vida alucinada só pode ser entrevista a partir da margem. Mais, a alucinação colectiva só será compreensível a quem esteja não esteja num estado normal de consciência. Esta já não tem poderes para compreender a realidade que a envolve. Vício Intrínseco é, deste modo, muito mais que uma novela policial. Não estamos perante um exercício de entretenimento a que, por descuido ou desfastio, Thomas Pynchon se tenha entregado. Estamos antes perante uma visão sóbria da realidade americana a partir dos olhos de um detective inverosímil. Só num estado alterado de consciência a sociedade americana pode ser compreendida.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Alexandre Herculano, O Pároco de Aldeia


Data de 1847 a primeira publicação em livro do romance O Pároco de Aldeia, de Alexandre Herculano. A obra no entanto, tinha aparecido em 1843, na revista O Panorama. O espaço onde decorre a acção é o de uma aldeia saloia, com as suas asperezas e ingenuidades. O ano em que são colocados os episódios narrados é o de 1825. Não se trata, portanto, de uma visita à Idade Média, tão ao gosto do romantismo e que o próprio Herculano acabará por cultivar. É um romance marcado pela contemporaneidade e balizado por um claro objectivo de intervenção polémica. É um romance de tese, digamos assim.

O prólogo começa com a seguinte frase: Como a filosofia é triste e árida! E esta frase dá a tonalidade ao romance. À aridez da vida reflexiva, a que o próprio narrador se teria acolhido em parte da sua existência, contrapõe-se a vida simples, da gente simples de uma aldeia, comandada pelo seu padre cura. E o importante não é apenas a oposição do pitoresco ao árido. A este opõe-se também a fecundidade que deve animar as relações dentro de uma comunidade, com as suas peripécias, os seus devaneios e pecadilhos.

Qual o problema que a filosofia – e Herculano refere-se, claro, à filosofia moderna – trouxe e que leva o narrador a vituperá-la? A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte: mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o cepticismo. Escreveu o autor, ainda no prólogo. O cepticismo é visto como o corolário do racionalismo nascido na século XVII. Em contraponto polémico com ele, o autor propõe: Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça!

Este tom polémico não existe apenas no prólogo. Ressurge em vários momentos da obra. E não é apenas contra o cepticismo, mas também contra o protestantismo, nomeadamente o anglicano. Uma interpretação do cristianismo que apenas se acorda com o sentir das elites e que deixa o povo à sua sorte, abandonado, sem o conforto de uma crença que lhe tempere a dureza dos dias. E como consequência da crítica ao anglicanismo, Herculano entrega-se a uma análise social da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra, entregues à voracidade de um patronato ávido, emergente da revolução industrial. Um escritor socialista dificilmente seria mais crítico da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra do que Herculano.

Os episódios narrados na vida da aldeia servem então para ilustrar a polémica de Herculano contra o Iluminismo. Não faltam sequer referências depreciativas a Holbach e a Diderot. À complexidade que os novos tempos, onde se destacam as consequências das revoluções francesa e industrial, vinham a introduzir nas relações sociais, Herculano contrapõe o mundo simples da aldeia portuguesa, tutelada pela figura paternal do padre cura. Este é o oposto do frio e árido filósofo, macerado pelas incertezas que a reflexão, destituída do apoio do dogma, introduz no seu modo de vida. O pároco tem um saber feito da compreensão da natureza dos seus paroquianos. Conhece-os, não porque os investiga cientificamente ou reflecte sobre eles de forma analítica, mas porque contacta com eles, porque os confessa e, na verdade, os dirige espiritual e socialmente. Contra a figura do filósofo é erigida em modelo a do bom pastor. Perante o conflito entre razão e fé, Herculano evita o difícil trabalho de reconciliação entre ambas, de compaginação entre dúvida e dogma, e propõe a aldeia saloia como exemplo da superioridade da fé, fundada na bondade moral do seu pastor.

Não sendo considerado, no cânone, como uma das obras principais de Herculano, O Pároco de Aldeia contém em si uma semente que germinará e cuja planta viverá vigorosa por mais de um século, sendo um documento fundamental para compreender a forma ideológica que dirigiu o país durante longo tempo.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Carmen Laforet, Nada


Carmen Laforet tinha 23 anos quando publicou Nada, o seu mais importante e decisivo romance. Foi no ano de 1944, apenas cinco anos após o fim da guerra civil, e obteve, nesse mesmo ano, o Prémio Nadal. Segundo a crítica, a obra integra-se na corrente existencialista e representa um momento de ruptura artística na Espanha de então, exaurida pela guerra e submetida à ditadura do generalíssimo Franco. O espaço narrativo é Barcelona, onde a própria autora viveu, o que não deixa de ser um lugar significativo no espaço e tempo da Espanha de então.

Andrea, narradora e principal protagonista, é uma jovem órfã de 18 anos, que vivia num convento. Recebe uma bolsa do Estado espanhol e vai para Barcelona com o objectivo de ingressar na Universidade. O romance começa com a narração da sua chegada à rua de Arribau onde vive a avó. Toda a obra se funda na tensão entre dois modos de existência em dois mundos particularmente diferenciados.  Se se utilizarmos a nomenclatura platónica, estamos perante o mundo sensível e o mundo ideal. É a difícil gestão desta interacção, com contaminações inesperadas, por parte de Andrea que constitui o núcleo forte da narrativa.

A casa da avó, da qual a protagonista tinha vagas reminiscências de infância, pode ser vista como uma metáfora de Espanha da altura. O que a marca é a pobreza e a dissensão. A avó não vive só. Andrea encontra lá a tia Angustias, solteira, autoritária, beata e com um caso extra-conjugal com o patrão, o tio Román, um solteirão de alma artística, mas metido no contrabando e, acima de tudo, um sedutor e manipulador da família. Vive lá também o tio Juan, carácter fraco, casado com Gloria, que antes e depois de se casar com ele foi amante de Román. Há ainda Antonia, uma criada arrogante, apaixonada pelo irmão solteiro, e um bebé, filho do casal, para além de um cão, de um gato e de um papagaio. O centro da tensão reside na relação entre os dois irmãos. Román manipula Juan. Este espanca Gloria, como passatempo O ambiente é completamente disfórico, como se a autora quisesse contrapor à imagem de Espanha em via vias de beatificação, veiculada pelo franquismo, uma distopia, onde a vida estivesse a cada momento à beira de um apocalipse. A miséria, o desleixo, a fome e as tensas e conflituais relações intrafamiliares são uma analogia da própria Espanha. Uma imagem do mundo sensível da filosofia platónica. Este é o mundo do conflito, da mudança contínua, do não-ser e da aniquilação. Enfim, do nada.

O mundo ideal não é, claro, o mundo congelado das ideias platónicas, mas o da vida universitária, onde Andrea faz amigos cuja existência está bem longe da realidade em que ela habita. Nesse mundo, o dinheiro flui com facilidade, e a fluência da moeda leva à amabilidade das palavras e ao comedimento dos gestos. É a fluidez financeira que permite aos jovens acalentarem sonhos e projectos artísticos, terem vivências alternativas à vida burocrática do mundo dos negócios, cultivar a imaginação no lugar da sensata razão. Contraposto ao seu mundo real, à tensão que a dura necessidade sempre impõe, o mundo da universidade, daqueles que a frequentam com ela, parece um mundo de liberdade e de infinitas possibilidades. E é aqui que Andrea estabelece com Ena, uma outra estudante, uma grande amizade, determinante no desenrolar do enredo.

Ena, porém, tem desde o início da amizade, e assim que sabe quem Andreia é, um estranho interesse pelo tio Román. Esse interesse progride e leva Ena a pôr fim ao seu namoro e a suspender os contactos com Andreia. Frequentava a casa desta, mas não para a ver. No entanto, aquilo que movia Ena não era o amor a Román ou o sentir-se seduzida por ele, mas a vingança motivada pelo comportamento, há muito tempo atrás, ainda antes de Ena nascer, de Román para com a mãe dela. Como na Espanha da altura, o passado é gerador de ressentimentos e estes exigem o ajuste de contas. Consumado este, a vida volta à normalidade.

Sem que haja qualquer referência explícita à situação política, o romance de Carmen Laforet não deixa de ser um retrato de um tempo político forte, marcado pela guerra civil, pela ditadura e pelo ajuste de contas. Isso é feito, porém, pela narrativa da adaptação da ingénua protagonista ao duplo mundo em que lhe cabe viver, o da casa, com a perversidade exacerbada das relações familiares, e o da universidade, onde encontra a experiência de um outro mundo possível. Essa tensão acaba por encontrar uma inesperada resolução, que lhe permitiu sair de Barcelona e da velha casa da rua de Arribau, como se saísse do inferno.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Irvin D. Yalom, O Problema Espinosa


O romance O Problema Espinosa (2012), do psicanalista norte-americano Irvin D. Yalom, propõe uma estranha aproximação entre o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) e o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do Século XX, uma pretensa teoria das raças, de orientação nitidamente anti-semita, na continuação dos trabalhos de Houston Stewart Chamberlain. A aproximação romanesca destes dois homens que tudo separava foi desencadeada pela descoberta pelo jovem Rosenberg da profunda admiração que o Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – o maior génio alemão, segundo Rosenberg – nutria pela filosofia do judeu Baruch Espinosa. Como seria possível um ariano ajoelhar-se perante o pensamento de um homem de raça inferior?

O autor – ele mesmo judeu – partiu de um facto real, o saque da biblioteca do museu Espinosa em Rijnsburg, na Holanda, um saque sem sentido tendo em conta a pouca valia daquilo que foi roubado, para construir a trama narrativa. Esta permite-lhe fazer uma caracterização da filosofia de Espinosa, pintar as relações intelectuais e religiosas dos judeus holandeses, judeus fugidos da Península Ibérica, e também construir uma leitura, a partir de uma abordagem psicanalítica, da personalidade do ideólogo nazi. A obra, para além de fornecer aspectos didácticos para aqueles que querem tornar-se psicanalistas (Yalom inventou umas sessões de terapia para Rosenberg), tematiza dois problemas fundamentais. O da identidade de si e o da relação entre razão e fé.

Espinosa era um jovem e brilhante aluno da comunidade judaica de Amesterdão. No entanto, o questionamento racional que ele opõe aos ensinamentos religiosos, o sublinhar das incongruências da tradição e insubmissão geral do espírito levam a que seja proferida contra ele uma sentença de excomunhão, sendo proibidos, a todos os membros da comunidade judaica, quaisquer contactos com o proscrito. Espinosa é despido da sua identidade de judeu e vai ter de reconstruir uma nova identidade fundada agora apenas nos preceitos da razão. Estamos perante a afirmação de uma singularidade radical, assente no corte com a cultura de origem. Em contraponto, Alfred Rosenberg era um jovem solitário e inseguro, vítima dos seus colegas de liceu. A construção da identidade de Rosenberg faz-se a partir da sua solidão, do seu anti-semitismo e no mergulho no que poderia chamar-se espírito do povo. É a crença na superioridade da raça ariana – e a crença de que ele pertença a essa raça – que lhe permite a construção da sua própria identidade. Espinosa constrói a identidade pela singularização produzida pela rejeição da comunidade. Rosenberg fá-lo pelo afastamento da sua singularidade forçada, e sentida como problemática, e pelo mergulho no magma comunitário. Yalom estabelece uma relação entre o nascimento do indivíduo, com a figura luminosa de Espinosa, e o seu desaparecimento com a figura tenebrosa de Rosenberg.

A questão da identidade, contudo, terá de ser percebida num âmbito mais amplo. Trata-se da questão das Luzes. Espinosa é um dos pai do Iluminismo, da afirmação da Razão sobre a fé, as tradições e os preconceitos. O filósofo é apresentado como uma figura da libertação em relação ao pensamento dogmático. Rosenberg, pelo contrário, é a figura da regressão. Ele representa aqueles que trocam o uso da razão pela afirmação de um fanatismo, de uma fé radicalizada em preconceitos raciais e na mitificação do povo alemão. Com Espinosa, o autor traça o caminho que conduz do mito à razão. Com Rosenberg, traça a via contrária, aquela que leva da razão ao pensamento mítico. Não por acaso, o livro do ideólogo nazi chama-se O Mito do Século XX.

A oposição entre razão e mito ou entre razão e fé, tomada esta na sua dimensão de fanatismo, serve para sublinhar os fundamentas da intolerância entre os homens. Esta nasce de crenças que não suportam o exame da razão, nasce em pessoas que sofrem de uma patologia que a psicanálise deveria tratar. O fanatismo resultará menos do exercício do livre-arbítrio, de uma decisão livre, e mais de uma patologia que condiciona as crenças e os comportamentos dos indivíduos, incluindo os comportamentos perante as suas próprias crenças, evitando submetê-las ao exame da razão. A patologia em que todo o fanatismo assenta está ligada a uma ausência de comunicação ou a uma incapacidade de comunicar. O fanatismo judaico impõe o corte comunicacional com o herege Espinosa. O fanatismo nazi é alimentado por homens como Rosenberg, cuja capacidade de comunicar com os outros é notória. Só uma terapia através do diálogo teria, então, o poder de restabelecer a comunicação e evitar o fanatismo. Uma apologia do papel da psicanálise na sociedade.