domingo, 25 de setembro de 2016

Ivan Turguénev, O Primeiro Amor


O Primeiro Amor (1869) é uma das últimas obras do escritor russo Ivan Turguénev. Fará ainda sentido ler uma obra cujo ambiente social e modo de vida nada têm a ver com os nossos? Esta pergunta não se dirige ao carácter clássico da obra (vale a pena ainda ler os clássicos?), mas ao tema sobre o qual ela é construída, o primeiro amor. Serão ainda analogáveis as experiências dos primeiros amores actuais com aquela que é descrita no conto de Turguénev?

De certa maneira, a experiência do primeiro amor, no livro de Turguénev, é, ao mesmo tempo, a do último, um exercício de destruição da vocação romântica do coração. Nesta obra há uma leve reminiscência do Banquete de Platão, onde os vários convivas decidem fazer um discurso em honra do deus Eros. No caso do livro do escritor russo, depois de uma festa (supõe-se), ficam apenas três convivas. O anfitrião propõe que cada um faça a narrativa do seu primeiro amor. Chegam à conclusão que só Vladímir Petróvitch tem uma experiência que vale a pena ser contada. Ele, porém, recusa-se a narrá-la oralmente. Propõe-se escrevê-la e, posteriormente, lê-la aos amigos. A narrativa, também uma confissão, que o leitor tem à sua disposição é então o escrito onde Vladímir Petrovítch narra o seu primeiro amor.

Na casa de campo que a família ocupava, Vladímir, então com 16 anos, descobriu por vizinha Zinaída Kassékin, uma jovem princesa, cuja família estava empobrecida. Zinaída possuía, como a Penélope da Odisseia de Homero, uma corte de pretendentes, homens mais velhos e instalados na vida. A esta corte juntou-se o jovem Vladímir. Zinaída, inconstante, coquette, irreverente, entretinha-se no exercício de uma certa malevolência relativamente aos pretendentes, manipulando-os e mostrando-os no seu ridículo. A Vladímir, que se foi apaixonando intensamente por ela, tratava com condescendência inerente à diferença de idades. Há um momento, porém, em que todos os pretendentes percebem que o coração de Zinaída está tomado por alguém fora do grupo de pretendentes. 

A meio da narrativa, Vladímir conta duas conversas que simbolizam o núcleo central da intriga, são duas revelações do carácter das personagens envolvidas. Numa delas, o pai diz a Vladímir: "Apanha o que puderes da vida, mas não te deixes aprisionar; pertencer a si próprio - é essa toda a graça da vida". E quando o filho lhe falou em liberdade, o pai perguntou-lhe: "Mas sabes o que pode dar liberdade ao homem?", e, perante a pergunta do filho, respondeu: "A sua própria vontade, que também lhe dará o poder; o poder que é melhor do que a liberdade. Aprende a desejar e serás livre, e mandarás." Esta apologia, tão antikantiana, de uma vontade inclinada pelo desejo, marca já a presença de Schopenhauer e anuncia, de certa forma, Nietzsche. O importante, porém, é notar este desejo de domínio, este ser livre de prisões, esta independência muito diferente da autonomia da vontade, uma independência que vive da realização impassível do desejo e da vontade de poder e não da abstenção racional dos prazeres do mundo.

Por outro lado, uma  das confissões que Zinaída faz ao jovem Vladímir é fulcral para perceber o que está em jogo no amor: "Não, não posso gostar de alguém para quem olhe de cima para baixo. Preciso de alguém que me leve de vencida... Mas não hei-de encontrar ninguém assim, Deus é misericordioso! Não cairei nas mãos de ninguém, nunca!" O amor é sentido como uma fatalidade, como uma imperiosa e desejada submissão da mulher ao homem, mas não a qualquer homem. Só àquele que souber olhá-la de cima para baixo. O amor exige a mais pura desigualdade, e não é senão a realização de uma fatalidade.

O desenrolar da intriga conduz a um final psicanalítico avant la lettre. Vladímir descobre, depois do grupo de pretendentes ter constatado que a jovem princesa estava apaixonada, que o seu rival efectivo é o próprio pai. Foi a ele que Zinaída se submeteu e se entregou. Entregou-se a quem tinha por lema ser livre de todo o compromisso, aquele cuja vontade era mais forte que qualquer resistência. Na parte final da narrativa, o jovem Vladímir tem, sem que seja visto, a lição definitiva sobre o amor: "Zinaída endireitou as costas e estendeu a mão... Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma chicotada brusca no braço nu de Zinaída. Foi a custo que me contive, que não soltei um grito; Zinaída estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e, levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote deixara. O meu pai arremessou o chicote para o lado e, subindo apressadamente os degraus, irrompeu dentro de casa. Zinaída virou-se e, com os braços estendidos e a cabeça dobrada para trás, afastou-se da janela..."

O primeiro amor de Vladímir não foi o seu amor por Zinaída, mas o amor do seu pai por ela, foi a lição de que o amor não passa de um jogo de poder e submissão, de uma vontade de poder e de um desejo de ser vencida, foi a revelação de uma moral em contradição com o espírito dominante do cristianismo, bem como dos movimentos emancipatórios da época e posteriores. Quarentão, aquando da escrita da narrativa, Vladímir Petróvitch continuava um solteirão. Esta é uma lição de amor para todos os tempos, mas não para todos os homens e mulheres. Destina-se apenas àqueles para quem o amor se pode interpretar literalmente como amor fati. E hoje em dia, numa época de igualdade e de ciência iluminada, quem crê num amor destinado?

Ivan Turguénev (2008). O Primeiro Amor. Lisboa: Relógio d'Água.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Nikolai Gógol, O Capote


Desde a sua publicação, em 1842, que O Capote sugeriu imensas e desencontradas leituras. Muitos dos grandes escritores russos dizem-se devedores de Gógol e deste conto. A introdução de Filipe Guerra dá uma breve panorâmica da influência do texto. Mais uma leitura, apesar de ser uma leitura de um não especialista, não fará grande mal ao conto nem ao mundo, e os grandes textos servem para isso mesmo, para serem lidos e interpretados de maneira plural e contraditória. Uma das leituras que encontrei na internet dizia que Gógol era um escritor sem preocupações filosóficas, tentando retratar a gente simples e a sua vida. Mas será assim? Será O Capote o retrato ingénuo, não filosófico, de um pobre burocrata russo perdido na imensidão de São Petersburgo?

O episódio da escolha do nome do protagonista, Akáki (Akáki Akákievitch, isto é, Acácio filho de Acácio), revela de imediato que se está perante um problema de identidade. O narrador diz mesmo que "houve circunstâncias que, por si sós, tornaram impossível que lhe fosse dado outro nome que não este". Essas circunstâncias são o facto de a mãe, já viúva na altura do parto, não ter gostado de nenhum dos nomes sugeridos, optando por esta duplicação em relação ao nome do pai. Aquilo que é apresentado como uma necessidade - o facto de ele não poder receber outro nome - não passa de uma decisão arbitrária da mãe. Esta subtil apresentação  da identificação do protagonista serve para traçar uma conexão com a sua personalidade. Não apenas o seu nome é uma cópia do nome do pai, como o centro da sua vida, enquanto funcionário público e como simples ser humano, é a de se entregar à cópia de documentos. Quando um dia, alguém tomado pela comiseração, lhe propõe um trabalho ligeiramente menos repetitivo, Akáki perde-se e tomado pelo pânico implora o retorno à sua função de copista.

A iteração, a repetição ritual de gestos, mostra-se, através desta estratégia narrativa, como um dos pontos centrais da identidade. Toda a identidade surge como uma arbitrariedade que começa por ser mostrada como uma necessidade, para depois se consolidar no exercício sistemático da sua repetição. O conselheiro titular Akáki Akákievitch não é o símbolo da pobre burocracia russa, mas a imagem de qualquer homem no esforço para perseverar na sua identidade. Apesar das circunstâncias que o rodeavam lhe serem desfavoráveis - o caso de ser alvo da troça de todos os seus colegas - o exercício da repetição assegurava-lhe - assegura a cada um de nós - a estabilidade de um eu.

O capote, que dá título à novela, surge na narrativa como o elemento que desencadeia uma revelação complementar sobre a identidade. O novo capote de Akáki Akákievitch gera, entre os seus colegas, um momento de espanto e de admiração, de tal maneira que o convidam para uma festa nocturna. Contrariamente às suas rotinas, aceita. Quando volta da festa é assaltado e o seu novo capote é roubado. Nas diligências para mover a burocracia policial a encontrá-lo, o pobre conselheiro adoece e morre. A morte não é o fim da história. Morto, Akáki Akákievitvh transforma-se em fantasma. Um fantasma que assalta os transeuntes e lhes rouba o capote. Esta transição de uma narrativa realista para o registo fantástico permite a Gógol iluminar uma outra faceta da identidade, o seu carácter fantasmático.

Toda a identidade é uma projecção de si no além, um excesso que ultrapassa a circunstância física e faz continuamente renascer o eu muito para lá das enunciações em que ele toma a palavra e diz eu. A ironia de Gógol é uma estratégia que permite escalpelizar a construção da identidade, revelar-lhe as características, mostrando que ela é gerada arbitrariamente, embora nos parece ser fruto de uma necessidade inequívoca, que se mantém pelo exercício ritual da repetição, essa cópia que se copia indefinidamente, e que se prolonga de si para os outros de forma fantasmática. Dos outros, apenas temos o seu fantasma e para eles também não passamos disso, mesmo que estejamos convencidos da solidez do nosso eu e do eu dos outros. O Capote é um irónico exercício de desconstrução da ficção identitária que produzimos como condição de estar e suportar o mundo.

Inopinadamente, o texto sobre uma pessoa comum revela-se como uma meditação sobre o eu e a identidade, meditação essa que deve ser recolocada no âmbito de uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a filosofia moderna sobre essa enigmática coisa a que designamos através do pronome pessoal da primeira pessoa, eu ou ego, ou por intermédio dos seus rebatimentos na terceira pessoa, o si ou o ipse ou o self.

Nikolai Gógol (2011). O Capote. Lisboa: Assírio e Alvim. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Introdução de Filipe Guerra.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude


1. Universos totalitários – sexo, dor, dominação e totalidade

Justine ou les Malheurs de la Vertu era uma das obras do Marquês de Sade que, devido à incultura geral que por vezes me acomete, nunca tinha lido. O texto merece meditação, tanto por aquilo que ele reflecte como por aquilo que anuncia. Este texto é escrito como se nada se soubesse do seu autor nem das outras obras que escreveu, incluindo a terceira versão de Justine denominada La Nouvelle Justine, ou Les Malheurs de la Vertu. Considera-se apenas esta obra em si mesma e os mundos que ela propõe ou revela.

Genericamente, as pretensas experiências sexuais a que, contra-vontade, a virtuosa Justine é exposta são, na sua essência, experiências de universos totalitários. Nos vários episódios que lhe acontecem, o que se depara ao leitor são mundos fechados onde um exercício despótico de poder se manifesta em toda a sua amplitude, a qual vai até ao poder sobre a vida das vítimas. O horizonte das experiências sexuais narradas, em que se inclui o prazer sexual proveniente da violência sobre o outro, é um universo ocluso onde a única liberdade pertence aos libertinos que o comandam.

Justine começou por ser um conto denominado Os Infortúnios da Virtude, escrito por Sade em 1778, na prisão da Bastilha, cerca de dois anos antes do início da Revolução Francesa. O conto evoluiu para o romance que comentamos, publicado em 1791, cerca de dois anos depois do início da Revolução. Poder-se-ia, não sem propriedade, ver nesta obra de Sade o anúncio profético do período do Terror (entre finais de Maio de 1793 e finais de Julho de 1794). Nele, os jacobinos, sob égide de Robespierre e da facção da Montanha, suspenderam todas as liberdades e garantias dos cidadãos, perseguiram e assassinaram a seu bel-prazer os adversários bem como os próprios jacobinos sobre os quais recaísse suspeita de falta de zelo revolucionário.

Os universos descritos por Sade, que aparentemente são apenas universos sexuais e não políticos, anunciam já uma realidade bem mais tenebrosa do que o tenebroso período do Terror da Revolução Francesa. Anunciam os universos totalitários que tomaram conta da Europa na primeira metade do século XX, universos que se prolongaram pelo mundo fora, como o mostra a terrível experiência do Cambodja. Não se está apenas perante tiranias. As relações que algozes e vítimas estabelecem na narrativa de Sade prefiguram os regimes políticos totalitários, onde todas as esferas da vida social estão submetidos ao Estado, e àqueles que exercem o poder dentro desse Estado. A dominação paranóica que as grandes figuras dos regimes totalitários, de esquerda e de direita, exercitaram não é diferente daquela que encontramos exercidas pelos libertinos nos diversos mundos pelos quais passa a infeliz Justine. O próprio prazer que esses libertinos extraíam da dominação e da submissão absoluta das vítimas, bem como da violência que sobre elas exerciam, pode estender-se ao prazer que os mais destacados elementos dos regimes totalitários do século XX encontraram no exercício do poder. A própria organização burocrática de certos “mundos” descritos por Sade (por exemplo, o do mosteiro ou o da casa do médico/mestre-escola) prenuncia já o princípio organizacional que presidiu à Shoah nos campos de concentração nazis ou aos gulags soviéticos.

Não devemos, porém, ficar siderados pela terrível experiência dos regimes totalitários. Se olharmos para os universos de muitas empresas na era da globalização, a sua semelhança com o narrado por Sade é completa. Que o resultado de muitas das hipermodernas técnicas de gestão seja a doença psiquiátrica e o suicídio dos funcionários deve permitir compreender a conexão entre esses mundo e aqueles que Sade descreve. De Sade a certas empresas globais, com as suas impiedosas técnicas de gestão de recursos humanos, passando pelos regimes totalitários, há um fio condutor, o do desejo que pode. E por poder, esse desejo aniquila os outros desejos, aqueles que habitam os outros, os que não podem, começando por exigir submissão, passando pela subversão do desejo desse outro, acabando na sua morte

Sade não é importante apenas pela revelação literária do sadismo. É importante também porque é uma das figuras centrais da modernidade ao desenhar os universos oclusos e totalitários onde a praxis sádica pode ocorrer. Não há sadismo consentido. Toda a dor para causar prazer, neste universo sádico, tem de provir daqueles que a sofrem contra-vontade. Daí a necessidade do espaço concentracionário de natureza totalitária, daí a inquietante actualidade do divino Marquês.

2. A lei da natureza e a virtude infeliz

Sublinhou-se a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e referiu-se a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde Justine se vê envolvida, tanto as vítimas como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos, submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos, à violência do desejo.

Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente. Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais, com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certas concepções sofísticas contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Esta concepção da lei da natureza permite perceber como os universos totalitários se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude – mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil, o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.

3. Libertinagem e conversão

Para concluir a leitura retomo, aplicando-a a um discurso complexo como um romance, a teoria dos speech acts de J. L. Austin, depois prolongada por John Searle. Esta teoria distingue entre actos locucionários, actos ilocucionários e actos perlocucionários. Muito resumidamente, actos locucionários são os actos de enunciação. Neste caso, por analogia, corresponde ao texto produzido por Sade. Os ilocucionários referem-se ao que fazemos quando dizemos alguma coisa. Posso prometer, avisar, constatar uma certa realidade ou facto, narrar um conjunto de peripécias. Do ponto de vista ilocucionário, a Justine é a narrativa de um conjunto de peripécias em torno da personagem. De certa forma, a dimensão ilocucionária foi já analisada.

Falta a dimensão perlocucionária. Esta refere-se àquilo que o auditório de uma comunicação é levado a fazer pela conjugação das acções locucionária e ilocucionária. Dito de outra maneira, o que pode ser levado a fazer aquele que lê este texto? Aqui retomo uma ideia inicial. Ler o texto como se não soubéssemos mais nada dele a não ser aquilo que ele diz, como se não soubéssemos nem quem foi o seu autor nem qual o desenvolvimento das suas ideias. O texto supostamente libertino que temos à frente pode gerar dois tipos de reacções. Aqueles que se identificam com a lei do mais forte e podem considerá-lo como um manual escolar de instrução para a via libertina. Estes serão uma minoria, pois o ser humano, na sua globalidade, é uma mistura de animal e de ser racional e moral. A consciência moral, aquele que Kant supunha presente em todos os homens, sente, porém, diante da narrativa de Sade um asco crescente pelas praxis libertinas.

O carácter totalitário, o despotismo, o homicídio, o estrupo, o aviltamento do mais fraco, tudo isso presente nos quadros que Justine narra, acabam por constituir um choque para a consciência moral e ter um efeito contrário à ideologia libertina, uma espécie de vacina. Ler a Justine pode ter mesmo um efeito religioso. O universo irreligioso narrado é tão repugnante que conduz espontaneamente à atitude contrária, como efeito perlocucionário. Se não se soubesse quem era o autor e o desenvolvimentos posterior da sua obra, desconfiaríamos que se estava perante um livro apolegético do cristianismo. O próprio Sade, no texto, prevê isso, pois a irmã de Justine, uma libertina soft, ao ouvir a narrativa das peripécias pelas quais passa a irmã, e após a morte desta fulminada por um raio, converte-se e entra para um mosteiro. Mesmo que este final possa ter sido estratégico, no sentido de fazer passar um mundo libertino sob a capa de um caminho de conversão, a verdade é que o texto de Sade, mesmo sem esse fim, tem um potencial de conversão religiosa e moral que não é aquele a que habitualmente ligamos as obras do aristocrata francês.

Com a experiência de S. Paulo na estrada de Damasco apreendemos a conversão como uma súbita e radical mudança de ponto de vista induzida por uma revelação. É este modelo que é explorado por Sade na conversão da irmã de Justine. Em Paulo de Tarso é a revelação divina que o conduz à conversão. No texto de Sade, é a revelação da negatividade libertina que produz idêntico efeito.

sábado, 3 de setembro de 2016

Hélia Correia, A terceira miséria


Trinta e três poemas compõem a Terceira Miséria, de Hélia Correia. O livro abre com uma interrogação, o sinal de uma dúvida, retomada de Hölderlin - Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência? (poema 1) - para ser rematado com uma reformulação do princípio de esperança, não de uma esperança que, nestes tempos de indigência, tudo acabe bem, mas que algo comece, a esperança de um início: ... e de barulho /Atrás do qual vem o poema, atrás /Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início (poema 33).

Esta súbita junção entre o começo e o fim do livro proporciona o horizonte onde se move a escrita. Para que servem poetas em tempo de indigência? A resposta é dada obliquamente pelo produto do trabalho do poeta, o poema. Ele marca um início. No poema o mundo incoaria, como se o poema fosse um ovo, onde o passado se sintetiza e metamorfoseia numa nova possibilidade. Ainda no último texto é dito: De que armas disporemos, senão destas /Que estão dentro do corpo: o pensamento, A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de hospitalidade... (poema 33). Todo este passado grego - e o abuso que sofreu durante milénios - repousa no poema, como se ficasse sugerido que desses materiais heteróclitos um novo mundo, ainda por precisar, pudesse subir ao palco com os seus novos cenários e figurinos.

Para mediar entre a pergunta crepuscular de Hölderlin e a sua resposta auroral, Hélia Correia utiliza figuras como a beleza, a loucura, a morte e a miséria. A beleza é a beleza helénica, uma beleza substancial - Que uma antiga substância, essa beleza /Que podia tocar-se num recesso / Da poeirenta estrada, no terror / Das cadelas nocturnas, na contínua / Perturbação, morada de alegria; (poema 1) -, mas também uma beleza dada pelo espanto pela dádiva do logos:  Essa beleza que era espanto / Pelo dom da palavra e pelo seu uso / Que erguia e abatia, levantava / E abatia outra vez, deixando sempre / Um rasto extraordinário (poema 2).

A percepção dessa beleza grega, o princípio originário do nosso mundo, é pautada pelas estações de um contínuo empobrecimento. Este funda-se na morte do mito e do seu esquecimento: Sim, foi essa / A primeira miséria, a deserção / Dos deuses. A segunda, a sua morte, / Já na morte de Pã anunciada / Pelo lamento dos bosques, o clamor / Lutuoso das ilhas de Egeu (Poema 18). O que significa a morte dos deuses, essa segunda miséria? A morte, uma falência quotidiana / Da limpidez, da arte e da divina / Coloquialidade com o mistério... (poema 19). A deserção e, depois, a morte dos deuses conduz ao corte com o mistério. A proximidade com este desapareceu, o que originou uma nova miséria, não a terceira, mas uma miséria fundada num divertimento funesto, o da hermenêutica. E veio outra miséria, em interlúdio: / A miséria da interpretação / Que tudo trai (poema 20). O mistério vivo da beleza grega é agora tomado pela erudição, pelo exercício contínuo da traição a uma vida da qual perdemos a chave.

Estas etapas do empobrecimento preparam a terceira miséria, aquela que diz respeito à nossa indigência contemporânea. A terceira miséria é esta, a de hoje / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda (poema 23). Esta é a mais terrível das misérias, é a da indigência que nem sequer chega a formular-se: Por sobre estes lamentos, quando a mesma / Palavra, a indigência, nos ocorre / Sem que nos atrevamos a usá-la, / Porque sem deuses, sem o sentimento / Sequer da sua falta, nós nascemos, / E incapazes de lembrar... (poema 6).

A nossa indigência, a miséria do nosso tempo, só é compreensível pela oposição com aqueles que, estando relativamente perto de nós, ainda pressentiram o eco longínquo da grandeza helénica. Hölderlin e Nietzsche enlouqueceram. Byron morreu lutando pela Grécia. Hölderlin não suportou essa ausência que ecoava no fundo do seu ser: Não sei perseverar assim, escrevia / O da meiga loucura. Perguntava / O que dizer, o que fazer, enquanto / Não voltassem os muito apetecidos, / Os grandemente antigos, esses sábios / Que se engasgavam nos banquetes... (poema 13). Também Nietzsche não resistiu ao encantamento: Só mais tarde o outro, / O que desconhecia a mansidão / E enlouqueceu de modo diferente, / Se apercebeu do uivo que soltavam / As ilhas todas, com as suas praias / E os seus bosques vazios. Pois o luto / Leva tempo a formar uma linguagem (poema 10). Apesar da morte dos deuses e da distância, a Grécia no século XIX ainda tinha força suficiente para chamar os jovens da Europa: Tu, Grécia, semelhante a heroína / Sujeita a vilipêndio, tu a quem / Acorreram os jovens da Europa, / Os de linhagem, como impacientes / Por qualquer boa espécie de jornada (poema 27). Entre esses estava Byron, que ali encontrou a morte. Oh Grécia que chamaste Byron como / Incestuosa irmã, tu que lutavas... / (...) / Parecias levar tudo tão a sério / Que tu própria quiseste matar Byron / Deitando-o devagar, adoecendo-o, / Poupando-o ao confronto e à derrota, / Porque derrota houve uns anos mais (poema 27).

A Grécia foi assim uma atracção fatal para o espírito europeu do XVIII e do XIX. Enlouqueceu e conduziu à morte, para entrar, depois, na terra do esquecimento. Hélia Correia escreve uma epopeia do esquecimento. Não por acaso, a generalidade dos versos são decassílabos heróicos, que captam não a expressão de um sentimento do sujeito poético, mas a objectividade de uma perda. Hölderlin, Byron e Nietzsche são os heróis impotentes, sinais de um mundo que a modernidade, depois de uma leve inquietação no Renascimento, acabou por relegar para a zona escura do recalcado, a zona da nossa indigência, dessa incapacidade já de rememorar não a vida mas o reflexo dessa vida na arte e no espírito.  Como todos os dias descobrimos, pertencemos a um mundo que nada sabe desses gregos, nada quer saber.

Na Ilíada, Aquiles, na parte final da obra, retorna ao combate do qual se afastara devido ao conflito com Agamémnon. Ulisses, no final da Odisseia, retorna a casa e aos braços da mulher. De certa forma, encontramos em ambas as epopeias de Homero o restabelecimento de um estado natural que tinha sido desfeito. Hélia Correia, porém, não tem qualquer ilusão sobre o retorno dos deuses, o retorno do mito, o restabelecimento dessa antiga natureza. Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita (poema 30). Essa Grécia, que enlouqueceu Hölderlin e Nietzsche e levou Byron para a morte, não voltará, mas ... pode/ No entanto escutar-se, no entanto / Reler-se, no entanto caminhar / Em direcção diversa, magoar / Novamente os joelhos na jornada? (poema 31) Esta interrogação é já, paradoxalmente, a afirmação de um caminho, do caminho que resta. Reler e escutar. Escutar essa Gente do Sul, / Gente que um dia se desnorteou (poema 32). A releitura do que nos ficou, a escuta das praças que de novo se enchem: Estão as praças, / Como ágoras de outrora, estonteadas / Pela concentração dos organismos, / Pelo uso da palavra, a fervilhante / Palavra própria da democracia,  Essa que dá a volta e ilumina / O que, por um instante, a empunhou (poema 32). Todo esse barulho atrás do qual vem o poema - não foi assim com a poesia homérica? - e que marca não o ressuscitar de um mundo morto, mas um início, um novo começo.

Para quê poetas? Perguntou Hölderlin. Para marcarem o tempo de um começo, aprendemos com Hélia Correia.

Hélia Correia (2012). A Terceira Miséria. Lisboa: Relógio d'Água.