segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Carlos Malheiro Dias, Paixão de Maria do Céu


Os grandes nomes da literatura portuguesa formam uma espécie de cortina opaca que acaba por ocultar a realidade da vida literária nacional. Atrás dessa cortina, porém, esconde-se um vasto território colonizado por habitantes que, apesar de não merecerem a honra do cânone, possuem mérito e cuja leitura é, pelo menos, instrutiva do país em que vivemos e dos valores que guiam a sociedade portuguesa. Isto vem a propósito do romance Paixão de Maria do Céu, de Carlos Malheiro Dias, publicado em 1902. Trata-se de um romance histórico, cuja acção se situa no tempo das invasões francesas. Por melhores e mais bem informadas que sejam estas narrativas sobre o tempo e os modos de vida da época que pretendem retratar, elas acabam por falar mais do tempo, dos valores e dos temores da sociedade em que vive o autor do que da sociedade onde a narrativa é situada. No fundo, utiliza-se o passado para falar do presente e para se dirigir ao futuro.

A trama romanesca gira à volta de duas figuras modelo, a de D. António Sepúlveda, senhor do morgadio do Corgo, e a da sua filha Maria do Céu. Ele é o arquétipo do fidalgo intrépido e patriota dos tempos antigos. Ela, o modelo trágico da inocência corrompida pela paixão amorosa.

O morgado provinciano é apresentado em contraponto com a pusilanimidade da corte e de parte da nobreza que se submete aos invasores. As virtudes heróicas de Sepúlveda, contudo, são mostradas como intemporais, como se ele encarnasse valores universais de uma casta que o tempo jamais dissolveria. É preciso não esquecer a situação política nacional no início do século XX. Depois do ultimato britânico, a monarquia encontra-se em dissolução e a nobreza nacional, por certo, está bem longe dos modelos viris encarnados pela personagem de Malheiro Dias. Perante a calamidade das invasões napoleónicas, só a decisão de homens como António Sepúlveda permitiu reverter a situação. E este é o modelo de homem que poderá fazer frente à dissolução dos velhos valores que o liberalismo monárquico já representava. O aniquilamento da monarquia (acontecerá em 1910) e a queda da aristocracia na irrelevância só poderão ser evitados por homens cujas virtudes emulem as do senhor do Corgo.

O destino de Maria do Céu, com as suas peripécias amorosas, parece ser mais uma história banal de sedução e embuste, onde a inocência, impotente pelo limitado conhecimento que possui da vida, se perde na trama de um conquistador – um jovem coronel francês – que junta às vitórias militares as conquistas amorosas. É um facto que a rendição de Maria do Céu ao militar invasor não deixa de ser uma metáfora da sedução que os ideias da Revolução Francesa exerciam sobre parte do país. No entanto, ela é ainda uma outra coisa. Ela é um aviso e um reforço do modelo de mulher que deve aliar a virtude moral e a perspicácia do espírito, para se precaver das tentações do coração. Caso contrário, à paixão amorosa sucederá a paixão entendida como sofrimento e dor. Não deixa de ser interessante que seja este o modelo que, através da visão trágica do destino de Maria do Céu e do uso ambíguo da temática da paixão, seja proposto como ideal feminino para o século XX, o século onde as mulheres adquiriram, entre outros direitos, o direito às suas paixões.  

Do ponto de vista literário, tanto o senhor do Corgo como a sua filha valem mais pela natureza arquetípica – ele positiva e ela negativa – do que pela complexidade psicológica. Malheiro Dias é excelente a criar ambientes, descrever situações, pintar com palavras os quadros onde se desenrola a acção romanesca. Somos conduzidos de um solar de província e da vida provinciana dos inícios do século XIX até ao turbilhão da capital do reino, na mesma época, com a sua vida multifacetada, ocupada pelo exército invasor. A riqueza das descrições está ancorada num léxico riquíssimo – certamente, léxico em uso no período onde a acção romanesca se situa –, algum dele incompreensível nos dias de hoje, mesmo para leitores cultos. As personagens, porém, são previsíveis e fiáveis. Por imprevisíveis que sejam os acontecimentos, o destino de cada uma das principais figuras é antecipável, pois elas são, na verdade, modelos e não pessoas concretas, com as suas hesitações, incertezas, aprendizagens, metamorfoses. Estamos perante um romance de intervenção. Não que ele transporte uma visão política estrita. Traz, porém, uma cosmovisão e, enquanto obra literária, é uma forma de se bater por essa visão do mundo, que – o autor não o poderia saber – haveria de morrer definitivamente na grande guerra de 1914-1918.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Teolinda Gersão, Passagens


Devo a Milan Kundera - A Arte do Romance - a atenção cruzada que concedo a duas aventuras paralelas do espírito ocidental, a filosofia moderna e o romance. Descartes e Cervantes são figuras seminais da cultura europeia e abriram o caminho a duas formas diferenciadas de interrogação sobre os seres humanos e a construção da sua subjectividade. Estas duas linhas têm tecido entre si um jogo, no qual se cruzam, transgredindo as fronteiras que na origem o filósofo francês e o romancista espanhol delinearam, e fazendo transbordar as águas de um dos rios para o leito do outro. Ao ler o novo romance de Teolinda Gersão, Passagens, é a evocação deste jogo cruzado na história da cultura ocidental que me vem de imediato à memória.

A estratégia da narrativa consiste em transportar o leitor para o pensamento de cada uma das personagens. A verdade de cada uma delas não é dada pela acção, o que mobilizaria os corpos, mas pela e na consciência, que não se manifesta no espaço público, mas encontra-se encerrada em si mesma. O fluxo da consciência - o pensamento - é então o lugar de veridicção, o sítio onde a verdade de uma família e dos seus membros - vivos e mortos - se revela. E aqui estamos numa das linhas de transgressão do campo do romance em direcção ao da filosofia. Vale a pena citar Descartes: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é (Descartes, Discurso do Método, Quarta Parte). Também em Descartes o pensamento (o cogito) é o lugar onde a verdade se revela na evidência. Um dos eixos estruturais do romance de Teolinda Gersão será então o do pensamento recolhido em si mesmo como lugar de passagem para a verdade, e esta será uma das duas passagens estruturantes de todas as outras passagens.

Podemos ler o romance como a história de uma família, de quatro gerações dessa família, como a observação detalhada da constituição de uma tradição assente tanto nas alianças sociais e económicos como na herança genética. O que Passagens nos mostra é que todas as tradições - neste caso, a tradição em forma de família - possuem um duplo discurso, aquele que é manifesto, exotérico - do domínio da linguagem que se expressa tanto na fala (o logos mítico) como nos actos (a praxis ritual) -, cuja natureza é do domínio da aparência, e aquele que é, por essência, esotérico e que permanece velado no espaço público e na linguagem falada. O discurso da verdade - e é este que está em jogo - pertence ao pensamento não manifesto, mas que opera através da rememoração. As personagens, durante todo o romance, rememoram, convocando o passado - mesmo que o passado seja a estadia num motel horas antes - para nele descobrirem a sua pertença e descortinarem a verdade, a sua própria verdade.

O acontecimento que agrega as personagens e desencadeia o processo de anamnese é a morte e o enterro de Ana, aquela que representa o elo de ligação com a geração anterior - a de Olímpia - e as gerações posteriores centradas em Marta e Hugo, filha e neto de Ana. A morte de Ana não representou o fim do pensamento, mas apenas o afastamento - a libertação - do corpo e a possibilidade de uma maior transparência. É esta desencarnação que, por mimetismo inerente a todas as cerimónias fúnebres, se constitui, na trama romanesca, no modelo onde a verdade se desoculta e manifesta. Ao tornar-se em mera coisa pensante, ela acede à verdade, como se pode ver na segunda parte - melhor, no segundo andamento - do romance, Noite. Uma subtil mimesis, porém, leva a que todos aqueles que são convocados a estarem presentes desencarnem, percam o corpo e a acção, e libertem o pensamento, que assim se entrega à rememoração e revelação das suas verdades particulares.

Podemos olhar para o romance como uma composição musical em três andamentos. No primeiro andamento, Ponto de Encontro, a polifonia permite perceber as alianças e os conflitos, os amores, as amizades, a inveja, o ciúme, os interesses divergentes de classe, inclusive. Ana apenas ouve a música do pensamento dos outros, como se a morte desligasse os sentidos físicos, mas não quebrasse os sentidos espirituais. As palavras que expressam o pensamento dos vivos são para ela uma espécie de música, onde o ritmo e a harmonia se sobrepõem à rude articulação do aparelho fonador. O segundo andamento, Noite, é ao mesmo tempo uma ária e um dueto. É a sombra de Platão que permite perceber esta estratégia. Durante a noite, o corpo de Ana fica fechado, sem ninguém que o vele, como se tornou hábito entre nós. E nesse interlúdio, Ana divide-se em duas e conversa consigo mesma, realizando a ideia platónica de que todo o pensar é um diálogo da alma consigo mesma. A verdade da tradição familiar revela-se ali, numa longa ária que é, ao mesmo tempo, um dueto, como se a verdade fosse sempre demasiado pesada para que só um a possa carregar e revelar.

O terceiro andamento, A cerimónia, não nos traz nenhum desenlace que resolva o mistério da intriga. Na verdade, não há qualquer intriga, mas a narrativa da constituição de uma tradição e da verdade que se manifesta nesta. Voltamos à polifonia, mas a musicalidade está presente nesta última parte de três formas distintas. Em primeiro lugar, a cerimónia que conduzirá à cremação do corpo não tem carácter religioso. É apenas acompanhada pela música de Bach. Em segundo lugar, como já foi referido, a obra pode ser lida como uma partitura musical de uma peça em três andamentos, sendo este o último. Por fim, a música tem um papel central no processo de passagem do regime da ratio ao regime do mythos.

Esta é a segunda passagem estruturante do romance. Se a primeira passagem conduz à verdade sob o signo da razão - de uma razão dialogante e romanesca, mas ainda razão (não será a razão platónica e cartesiana também uma razão romanesca?) -, a segunda passagem conduz-nos ao encantamento mítico. O sinal reside na convocação dos elementos, em primeiro lugar, na convocação do fogo. O fogo da paixão que se revela no início desta terceira parte e o fogo que dissolverá o corpo de Ana, devolvendo-o à crueza elementar. A modulação do fogo é apenas uma primeira pista deste processo de mitificação. A polifonia do pensamento dos vivos, a sua natureza musical, vai transformar descrições científicas, como as da decomposição do cadáver ou a do processo de geração de um ser humano, e descrições sociais, como as do papel da família e das mães, numa narrativa mítica. Através da polifonia, isto é, da música, a doxa  e a episteme revelam-se na sua natureza encantatória e transformam-se em mito, que reforçará a tradição dada na família, alargando, assim, o campo da verdade e também o da ilusão. Todas as passagens - as da vida para a morte, da riqueza para a ruína, da felicidade para infelicidade, da indiferença para a paixão, etc. - só são compreensíveis no quadro estabelecido pelas duas passagens estruturais do romance: da ilusão para a verdade e da razão para o mito. E fora disto não há literatura.

Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses


Durante e após a leitura do romance de Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, perguntava-me, com certa perplexidade, qual a tensão essencial que percorria a trama romanesca. Há várias tensões que alimentam a narrativa. A tensão amorosa entre os protagonistas, os pintores Paulo Vaz e Cecília Branco, ou entre Paulo e o pai, ou entre este e o mundo, representado pela mulher e pelo filho. Há também a tensão entre o desejo de Paulo e de Cecília – o princípio de prazer – e a vida dada nas condições em que ela decorria na cidade de Lisboa e no país – o princípio de realidade. Essas tensões, contudo, são frágeis perante uma outra, de carácter civilizacional, que ao reflectir sobre a obra foi surgindo e ganhando contornos precisos. O que é marcante neste romance é a tensão aguda entre o mundo encantado do mito e a realidade social, política e existencial marcada pelo desencantamento que racionalidade introduz na vida moderna, segundo Max Weber.

Um romance que tem por título A Cidade de Ulisses inscreve-se de imediato no território da mitologia. De facto, toma o nome de uma história mítica, a pretensa fundação de Lisboa por Ulisses, é percorrido por uma apertada teia de referências míticas e é, na parte final, uma redescrição de um dos mitos fundamentais de Portugal. Contudo, essa ambiência mítica, de carácter encantatório, está em tensão com descrições completamente prosaicas tanto da cidade de Lisboa como da história, longínqua ou recente, de Portugal. Esse prosaísmo é dado por uma linguagem que parece provir do género do comentário político, na qual se dão a conhecer ao leitor as possibilidades da pátria e as decepções que as elites políticas, inexoravelmente, acabam por espalhar no tecido social, ou numa certa elite estrangeirada – outro dos mitos nacionais, o dos estrangeirados –, que no romance está presente através de Paulo e Cecília.

Toda a relação entre Paulo e o pai se inscreve na trama edipiana trazida à luz pela psicanálise. Teolinda Gersão, porém, retoma um outro mito, o da morte de Ulisses pelo seu filho Telégono, um filho que teria por mãe Circe e não Penélope. Também neste mito, o parricida casa com a mulher do pai, mas neste caso não com a própria mãe. A tensa relação de Paulo Vaz com o pai, um militar que representa a imagem soturna e mesquinha do Estado Novo, não conduz ao assassinato deste. Na trama romanesca, há um deslocamento do homicídio do pai para o filho. Quando Cecília anuncia que está grávida, a reacção violenta de Paulo leva a que caia e acabe por perder a criança. Este deslocamento do crime contra o pai para um crime contra o filho tem por consequência a perda da mãe, o afastamento de Cecília e o fim da relação amorosa. É como se emergisse um complemento à lei trágica de natureza edipiana: o filho que mata o pai recebe por mulher a mulher do próprio pai, mas o pai que mata o filho está condenado a perder a mãe deste. Paulo nem matou o pai nem ficou com a mulher que amava.

Esta trama trágica que envolve o narrador-protagonista, uma trama que decorre toda ela em assuntos de índole privada – as relações com o pai e com a mãe, as relações com Cecília – está em tensão, como se disse acima, com considerações sobre a vida pública e a história do país. Mas esta tensão tem um carácter estranho. Parece funcionar como um cenário onde decorre a acção, mas que, no fundo, não toca essencialmente nos agentes. É um cenário – Lisboa, Portugal – que serve como pano de fundo da acção, mas não se reflecte no carácter das personagens, por muito que amem Lisboa e o seu pitoresco ou deplorem as oportunidades perdidas da pátria. Eles são, na verdade, estrangeiros, mesmo que um dia tenham tido o projecto comum de pintar a cidade de Lisboa. São figuras nómadas a quem o sólido mundo desencantado da modernidade deixou de interessar. Habitam-no, mas esse mundo é puramente fantasmático, uma presença evanescente que  o nomadismo pós-moderno deixou de suportar.

Depois da separação, Cecília sai de Portugal. Apesar dos esforços de Paulo, ela corta definitivamente com ele. Casa e tem filhos. Mais tarde regressa com a família a Lisboa, sem que, para além de um ou outro encontro social, retome a ligação amorosa com Paulo. Cecília acaba por morrer de acidente. Ora é aqui que Teolinda Gersão redescreve um dos mitos fundamentais da nossa cultura, o de Pedro e Inês. Se Paulo era um pintor reconhecido, Cecília era uma artista secreta, cujo trabalho mal tinha sido visto. Coube a Paulo Vaz organizar a exposição do trabalho de Cecília, a que foi dado o nome A Cidade de Ulisses. Paulo é, agora, Pedro que coroa uma Inês morta. Esta coroação, post mortem, não significa apenas o reconhecimento do talento até aí privado de Cecília ou a libertação de Paulo para uma nova vida, mas uma reafirmação do papel central do mito nas sociedades desencantadas em que vivemos. Perante a decepção e o desencantamento da vida pública, resta a cada um a sua mitologia pessoal, a ordenação da vida segundo arquétipos que a tradição legou e que, em épocas como a que vivemos, são a bússola que permite que a existência encontre um sentido. Mas este sentido que o mito dá apresenta sempre um carácter ambíguo. Paulo, acabada a organização da exposição, retorna para Sara, a sua actual mulher. Um fim feliz? Na aparência, pois o leitor não pode deixar de se interrogar sobre que ameaça se esconde no facto de só morta a rainha poder ser coroada.

domingo, 23 de dezembro de 2018

Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia


Georges Bernanos faz parte de um grupo de escritores católicos franceses que, na primeira metade do século XX, tentaram fazer frente, no campo intelectual, à influência, nascida no século XIX, da filosofia positivista, cuja metafísica se reduz, em última análise, ao que é dado pela experiência sensorial, origem primeira da ciência e da descrição da realidade, fonte de negação de toda a transcendência. O Journal d'un curé de campagne (Diário de um pároco de aldeia, na tradução portuguesa) é uma das obras mais importantes desse movimento de reacção à filosofia positiva e ao ateísmo crescente em França e no mundo ocidental.

Não se pense, contudo, que estamos perante um livro apologético, uma espécie de panfleto militante de cariz católico. Pelo contrário. O romance, publicado em 1936, tem por centro a acção de um jovem padre católico que inicia o seu pastorado em Ambricourt, uma aldeia do norte de França. O diário tem a função especular de tornar manifestos à consciência do seu autor as incidências e acidentes do seu trabalho enquanto sacerdote. Aquilo que poderia ser pensado como um texto anti-moderno de extracção católica, pelo facto de utilizar o diário como recurso narrativo literário e, do ponto de vista da personagem do padre, como instrumento de reflexão da sua prática, mostra-se claramente como um romance moderno e inscrito na ambiência cultural da modernidade.

O diário do padre de Ambricourt liga o texto de Bernanos à tradição francesa da modernidade e à sua figura seminal, o filósofo René Descartes. Como o cogito cartesiano, o diário – que não é outra coisa senão um cogito desenvolvido e que abarca aquilo que o cogito de Descartes pôs de lado – é marca de uma singularidade, de um indivíduo que se destaca da sua casta (o clero) e individualiza a sua acção pastoral através da narração dos episódios que a compõem. Por outro lado, esse mesmo diário é o sinal da reflexividade que distingue os tempos modernos dos que lhes foram anteriores. O pároco, como qualquer homem moderno, não vive na consciência imediata de si mesmo, mas precisa da reflexão diarística para se constituir e saber enquanto subjectividade.

Utilizando uma linguagem muito posterior, a de Michel Foucault, dir-se-á que o diário é um dispositivo de subjectivação, que constitui o jovem padre em sujeito de acção (o seu pastorado na aldeia) e de paixão (entendida esta como sofrimento). A constituição da consciência de si do pároco de Ambricourt é marcada, de forma sub-reptícia, por uma oposição que, nos dias de hoje e para a generalidade dos homens, não é compreensível, a oposição entre a vocação contemplativa dos monges e a vocação activa daquilo a que se poderia chamar clero secular. Um monge vive para a sua própria salvação, e toda a vida contemplativa e de louvor da divindade se inscreve nesse desiderato. A salvação do outro é uma preocupação indirecta. Um pároco, pelo contrário, centra a sua vida na salvação do outro, no pastorear o seu rebanho paroquial, e a sua salvação pessoal é uma preocupação indirecta e derivada do seu objectivo primeiro.

A consciência de si do jovem sacerdote é então moldada por esta opção. Ele é um agente de Deus no mundo com a finalidade de salvar aqueles que estão nesse mundo. Contudo, o mundo é uma matéria resistente e adversa. Sejam os nobres, os burgueses ou o povo, em todos eles há um catolicismo de superfície e uma indiferença, quando não uma negação activa, da mensagem crística. A consciência de si do pároco, alguém que vem dos meios mais pobres mas que é dotado de grande inteligência, cresce no confronto com as outras consciências, com a duplicidade das outras consciências. Um padre que, pela sua vida ascética, pela pobreza que ostenta, pelo aspecto doentioa que nele se manifesta, gera em todos uma reserva, se não mesmo a mais profunda desconfiança. Resistência e desconfiança por parte dos membros da paróquia são elementos nucleares na descoberta das suas possibilidades e da sua capacidade de configurar a sua própria vocação. Todo este conflito com os outros e a sua mundaneidade, um conflito surdo pautado por avanços e recuos, é paralelo com o conflito que a doença abre dentro do si, do seu corpo e da sua consciência. Um câncer de estômago, uma herança de uma família de gente tomada pelo álcool, corrói-o e irá, por fim, conduzi-lo à morte.

O leitor pode interrogar-se sobre qual a verdadeira função do diário, enquanto dispositivo de subjectivação. Será a de pautar as conquistas da consciência de si ou, pelo contrário, marcar as derrotas e a inexorável perda de si? No âmbito do cristianismo, esta questão recebeu desde sempre um tratamento dialéctico ou, pelo menos, em forma de oxímoro. Como se sublinha em Mateus 16:25, “aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem quiser perder a sua vida por amor a  mim, achá-la-á”. O diário é, então e ao mesmo tempo, o registo da perdição e da salvação de um homem, um homem moderno, colocado entre o missão que lhe foi confiada e a resistência do mundo às injunções e prescrições de Deus. Poder-se-á pensar que um romance como este não faz sentido hoje em dia, pois nem os católicos já são católicos, nem o mundo presta atenção ao que pode dizer a Igreja de Roma e os seus representantes. Na aparência isso é verdade. Mas o problema da conquista da consciência de si  e  do papel da reflexividade na constituição de cada um de nós enquanto sujeito são questões completamente actuais. Por isso, o romance de Bernanos resistiu à usura do tempo e ainda tem em si força para prender o leitor. É, por certo, um clássico do século XX francês.

Ernst Jünger, Um Encontro Perigoso


Um Encontro Perigoso foi publicado quando Ernst Jünger tinha já 90 anos. O romance tinha sido começado vinte anos antes mas o autor, sem saber muito bem a razão, deixara-o incompleto. A obra coloca ao leitor um problema cuja resolução, mesmo que temporária e conjectural, é importante para a compreender. A primeira parte do romance move-se na tensão entre um jovem diplomata alemão, belo, meditativo mas ingénuo, e uma condessa francesa de temperamento fogoso, irascível e volátil, tensão mediada por um aristocrata arruinado, que se entrega ao prazer de suscitar estes encontros entre personagens improváveis, encontros que contêm sempre uma dimensão de perigo e derrocada. Tudo isto tem como pano de fundo Paris dos finais do século XIX. O problema é posto pela segunda parte da obra. Por que motivo Jünger transforma o romance, que pareceria ser uma reflexão sobre a educação sentimental do jovem diplomata num romance policial, com uma espécie de Sherlock Holmes francês no centro da intriga?

Do ponto de vista estético, a solução não deixa de causar surpresa. O leitor que espera uma reflexão em torno do envolvimento sentimental, um intriga de costumes na elite social da época, depara-se com um crime – numa época em que Jack, o Estripador, cometia os seus em Londres – e com uma investigação criminal. Duas hipóteses podem ser pensadas.

Em primeiro lugar, talvez só seja possível escrever sobre um passado que não se conheceu – mas que, de alguma forma, se amou – na forma de um inquérito, de um inquérito de carácter policial. Não está em jogo, apesar das óbvias semelhanças, emular a criação de Conan Doyle. Mas um investigador policial, dotado com toda a parafernália de conhecimento científicos – a grande fé nos finais do século XIX –, permite perscrutar o lado obscuro de uma elite social que está já em decadência. Não a obscuridade presente nas pequenas traições quotidianas, nos devaneios amorosos, nos encontros em lugares ao mesmo tempo sumptuosos e sórdidos. Tudo isso faz parte do brilho social descrito na primeira parte. O lado obscuro é-nos dados antes pela dimensão racional do cálculo de oportunidades, pela frieza do uso da razão, pela irrelevância com que a vida é considerada.  E para isto um investigador armado das novas teorias provenientes da antropologia, psicologia e sociologia – disciplinas em plena emergência na época em que decorre o romance – é um excelente dispositivo observacional.

Em segundo lugar, poder-se-á perceber o crime como uma ruptura dos laços sociais e a destruição de uma dada ordem. Esta desordenação que o crime introduz pode ser vista como uma metáfora de uma desordenação mais geral imposta pela temporalidade. Cronos devora os seus próprios filhos, cabe ao escritor meditar sobre este crime supremo do qual cada um de nós e todas as instituições – as que amamos ou as que odiamos – estão sujeitos. Escrever um romance sobre uma época que não se viveu – se não se quer entrar na banalidade do romance histórico – é sempre um inquérito sobre a natureza criminosa da acção do tempo. O detective, então, é a figura que interroga a vida e procura o criminoso, isto é, aquele que é o agente da temporalidade e que a realiza pela sua acção. Deste ponto de vista, o papel do detective não é o de repor a ordem perseguindo aquele que a põe em causa, mas sinalizar e sublinhar, através do inquérito e da perseguição, a desordem que se oculta em toda a ordem. Se o criminoso é o agente da temporalidade, o detective é aquele que, pela sua acção e reflexão, reconhece e sublinha a natureza desta.

Sejam estas ou outras as razões que conduziram Ernst Jünger a optar por uma alteração tão radical de registo praticamente a meio do romance, a verdade é que é nesta opção que se joga a recepção da obra. Muitos leitores e críticos, espantados com a esplendorosa descrição de Paris e as caracterizações das personagens, sentem na transição para a segunda parte do romance uma espécie de anticlímax. Mas é aqui que se coloca um problema que merece ser meditado. O romance não se dirige apenas ao sentimento e à dimensão afectiva do homem. Não lhe é estranha a dimensão do pensamento. Ao mesmo tempo que provoca experiências de agrado ou desagrado, o romance exige que se pense, e que se pense antes de mais sobre as opções de construção propostas pelo escritor. Aquilo que pode ser sentido como anticlímax é o que dá que pensar, que convida a pensar. Ora este pensar não é mera racionalização da leitura, mas preparação de um prazer mais elevado, mais requintado e mais demorado.

A. da Silva Gaio, Mário


Publicado em 1868, Mário – Episódios das Lutas Civis Portuguesas é o único romance do médico e professor de Higiene, na Universidade de Coimbra, António de Oliveira da Silva Gaio. João Gaspar Simões integrou-o, nos anos setenta do século XX, numa colecção denominada Grandes Esquecidos da Editora Arcádia. Se é verdade que A. da Silva Gaio é um autor esquecido – quem lerá hoje o seu romance? –, talvez seja um exagero considerá-lo um dos grandes da nossa literatura. Uma literatura nacional, contudo, não se faz apenas dos grandes nomes, daqueles que os críticos e os programas escolares canonizam. Outros autores existem que, apesar de não serem – e para falar só do século XIX – um Eça, um Garrett, um Camilo ou um Herculano, merecem ser lidos e merecem ser disponibilizados senão em livro de papel pelo menos em livro digital. Silva Gaio seria um desses autores.

Mário, como alguns estudiosos assinalam, está a meio caminho entre o romance histórico e o romance de actualidade. Os factos históricos que representam o cenário onde se desenrola a acção romanesca medeiam entre 1828 e 1834, e dizem respeito à guerra civil que foi desencadeada após as Cortes de 1828 terem aclamado D. Miguel como rei de Portugal. Portanto, a publicação do romance é feita 40 anos após o começo do conflito, o que significa que os factos, as lutas entre liberais e absolutistas, ainda estariam presentes na memória e na vida de muita gente à data da escrita e publicação do romance. É neste horizonte que Silva Gaio cruza uma história de amor e um conflito político, cujas intrigas, tecidas de múltiplas peripécias, se misturam e encontram desenlaces intimamente ligados. A difícil vitória da liberdade foi também a difícil vitória do amor ou vice-versa.

Um dos aspectos centrais é o carácter eminentemente político e partidário do narrador. Este não é um observador neutro que conta uma história cujo destino lhe é indiferente. Pelo contrário, o narrador toma partido pelos defensores do liberalismo, não lhe sendo indiferente o desfecho da guerra civil. Há um claro e procurado subjectivismo na apresentação dos factos narrados. Mais do que a apologia de um espírito liberal, tal como ele é entendido hoje em dia, encontramos a defesa da liberdade e a execração dos despotismo absolutista. Para tal, as personagens centrais são marcadas com vincos fortes e claros, na verdade efectivas idealizações do mal e do bem. O freire da ordem de Malta, Jorge Pinto, é um absolutista empedernido, um cacique beirão, corajoso, mulherengo, autoritário e despótico, com uma capacidade manipulatória servida por uma inteligência aguda. As personagens do lado liberal também são nítidas, sem claros-escuros. O padre Maurício é um santo homem, Teresa é bela, inocente, culta e virtuosa, e Mário é um homem de carácter, corajoso e fiel à liberdade. Durante o tempo da narrativa, nenhuma das personagens atraiçoa, por um instante que seja, a figura ideal que representa.

O romance apesar de ser construído a partir da apreciação subjectiva dos factos pelo narrador, não nos dá uma visão funda da subjectividade das personagens, dos seus dramas internos, das suas incertezas e dúvidas. Elas são, na realidade ideias que se confrontam e combatem, tal como no terreno os exércitos liberais e miguelistas se combatiam. Por outro lado, a obra de Silva Gaio consegue dar a ver ao leitor um momento da nossa história, das visões políticas em confronto, bem como das estruturas sociais que dão forma ao Portugal da época. Existe mesmo uma longa digressão sobre essa história. Talvez o mais surpreendente – mas é possível que o não seja para os historiadores – resida na figura do padre Maurício. Normalmente, tem-se a impressão de que o clero e a Igreja estavam claramente conluiados com os absolutistas, e tinham uma acção deletéria das aspirações à liberdade. Silva Gaio dá-nos a ver um outro clero, não apenas bondoso mas amigo da liberdade e aberto aos novos ideais. De certa maneira, esta visão da Igreja Católica perante os acontecimentos de 1828-1834 não deixa de ter notáveis semelhanças com a visão que se tem da mesma Igreja durante o Estado Novo de Oliveira Salazar. Se a inocência do amor entre Teresa e Mário nos faz sorrir hoje em dia, a ambiência política descrita pelo romance não só ajuda a compreender aquela época histórica, como nos permite perceber alguma coisa da nossa história mais recente, tornando patentes certas linhas de continuidade.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, A corça prisioneira


Sexto e último romance da Crónica da Vida Lisboeta, A Corça Prisioneira, de Joaquim de Paço de Arcos, explora o território ambíguo que, mais do que separar, une traição e fidelidade. A temática da traição amorosa vem sendo explorada desde o primeiro romance do ciclo. Em todos eles, diversas personagens femininas são dilaceradas pelo conflito entre a fidelidade à convenção, representada pelo casamento enquanto contrato e instituição, ou a fidelidade a si mesmas, à inclinação provocada pelas afecções da alma e pelos desejos do corpo. Neste último romance, o jogo entre fidelidade e traição coloca-se, todavia, a vários níveis, indo muito para lá da questão amorosa e sexual, apesar de ambas constituírem os pólos de um eixo, em torno do qual roda, sem parar, a vida dos homens.

O tempo romanesco corresponde ao primeiro lustro da década de cinquenta do século XX. Estamos em plena Guerra Fria e vive-se a época em que o equipamento atómico dos arsenais militares se tornou decisivo na geoestratégia mundial. Portugal seria um exportador de urânio para as potências aliadas, mas a sua produção é também disputada pela União Soviética. Uma empresa fantasma, dirigida, através de testas-de-ferro, por personagens influentes na vida económica, tenta desviar parte de produção para os soviéticos. É nesta trama que um dos principais produtores nacionais, Fernando Malafaya, um grande proprietário, é apanhado, através das manobras do seu sogro, um burlão que, antes de ser descoberto, se tinha alcandorado dos lugares mais baixos de um banco ao topo da sua administração. Saído da prisão, trai a boa-fé do genro e causa-lhe, pela sua aliança com os empresários feitos com os soviéticos, uns percalços desagradáveis com a polícia política. Paço d’Arcos manifesta as frágeis fidelidades políticas dos homens de negócios, a sua duplicidade, marcada por uma adesão de superfície e uma fidelidade funda aos seus interesses privados.

É também o tema da fidelidade e da traição aquele que diz respeito a Alberto de Lemos. Este era um antigo amigo de Malafaya, quando ambos estudavam em Paris, antes da II Guerra Mundial e da ocupação alemã da capital francesa. Apesar de serem politicamente afastados – Malafaya era monárquico e Lemos, comunista – tinha nascido uma amizade que não teve continuidade em Lisboa. Alberto, um físico de prestígio, retornara a Portugal e, apesar das inclinações ideológicas de juventude, já esmorecidas, trabalhava na Comissão de Energia Nuclear. Três fidelidades disputavam a sua pessoa. A do regime, devido ao papel destacado que tinha num organismo científico tão sensível do ponto de vista político. A dos antigos camaradas do Partido Comunista, que tentavam explorar as suas antigas crenças, em proveito dos soviéticos. A da sua vocação de cientista, que era a única que, na verdade, o movia e determinava as suas opções. Se não foi fiel aos seus antigos camaradas, também não o era ao regime. E se com isso evitou a prisão, não pôde esquivar-se a uma expulsão do país.

Um encontro inesperado em Paris entre Malafaya e Lemos, no período do pós-guerra, conduz ao reatamento da velha amizade em Lisboa. E aqui entra de novo o tema da fidelidade e da traição, agora no campo do amor e da amizade. A mulher de Fernando Malafaya, Leonor, tinha sido explicanda de Alberto e entre eles teria ocorrido uma equívoca situação amorosa que ele tinha deixado cair aquando da prisão do pai de Leonor. Esta, porém, nunca o esquecera e o reencontro foi oportunidade para desenvolver uma paixão funesta. No centro do triângulo amoroso, estava Fernando Malafaya. Que tinha sido traído pelo sogro, e era agora traído pela mulher e pelo amigo de juventude. Com a descoberta da situação, porém, Malafaya mantém-se fiel ao seu compromisso com a religião. Não desfaz o casamento. 

Leonor é a corça prisioneira, que casa com Fernando quase como vingança contra a mãe deste, que, como madrinha a recebe em casa e a maltrata continuamente, após a queda e prisão do pai. A sua traição é o outro lado da fidelidade profunda ao seu desejo. Alberto é apenas fiel à sua vocação de cientista. Trai o amigo, a amante, os antigos camaradas e o próprio regime que o acolheu. Tudo isso era, na verdade, irrisório para ele. Fernando é traído três vezes, mas mantém-se fiel às suas convicções espirituais. O triângulo amoroso encarna três tipos de fidelidade. A fidelidade ao corpo e ao desejo, em Leonor, a fidelidade à vocação e à vontade, em Alberto, a fidelidade ao espírito e ao sentimento, em Fernando.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, Espelho de três faces


No quinto livro do ciclo Crónica da Vida Lisboeta, Espelho de Três Faces, Joaquim Paço d’Arcos faz uma surpreendente análise do homem técnico e do niilismo que ele traz consigo. No centro da intriga está o engenheiro Leonel Seabra, filho de um importante diplomata, que, ao enveredar pela engenharia, não segue as pisadas do pai, imbuído de uma larga cultura política. É apenas no quinto livro da Crónica que, entre a multiplicidade de personagens, emerge como figura principal um engenheiro comprometido com um projecto industrial. Em Ansiedade, segundo livro do ciclo, o estudante de engenharia Pedro Pinto era uma figura de alguma importância na trama romanesca, mas por motivos políticos, pela sua ligação a uma tentativa de revolta contra a ditadura.

Leonel Seabra é apresentado sob dois ângulos, o da vida amorosa e o da ocupação profissional. O talento de Paço d’Arcos reside no entrelaçamento dos fios provenientes de ambos para traçar o vazio que cresce na alma do homem da técnica. Esse vazio é prenunciado, logo no início do romance, pela informação de que a sua namorada, Maria Eduarda, morrera de acidente de viação, do qual ele fora o culpado. O romance é publicado em 1950, num tempo em que o automóvel era ainda, pelo menos num país periférico e atrasado como Portugal, o símbolo da revolução técnica e da segunda revolução industrial. É a sombra deste acidente que se vai projectar, de formas diferenciadas, no destino do engenheiro saído do Instituto Superior Técnico.

O romance tem um primeiro capítulo introdutório com cerca de 40 páginas, aos quais se seguem três partes. Todas elas remetem para uma mulher e para a ideia de representação: Maria do Céu – Esboço; Manuela – Retrato; Maria Antónia – Perfil. Todas estas mulheres se cruzam com o engenheiro Seabra. Maria do Céu, uma aristocrata, chegou a ser sua noiva. Manuela, rapariga umas vezes tida por conta outras tendo de trabalhar num prostíbulo elegante de Lisboa, foi sua amante antes e depois do possível casamento com Maria do Céu. Maria António, filha de um capitão monárquico preso como oposicionista, foi sua secretária e, desde os tempos de juventude, mantinha uma secreta paixão por Leonel. Em todos estes casos se reproduz, de forma simbólica, a situação originária. Em nenhum deles, o amor conduziu a um comprometimento. Na verdade, estas mulheres não eram mais do que representações (retratos, esboços, perfis) de alguém que se tinha transformado em nada.

Do ponto de vista profissional, o protagonista dirige um projecto de instalação de uma fábrica de adubos no país, empreendimento partilhado pelo Estado e por empresários privados. A acção está situada no início do Plano Marshall e caracteriza o processo de industrialização que esse plano produziu em Portugal. Leonel Seabra é o administrador delegado e todo o seu talento se centra nos aspectos técnicos e na criação da empresa. O problema surge quando é necessário,ultrapassar as preocupações técnicas e industriais do empreendimento e ser conivente com interesses financeiros que se movimentavam de forma não muito transparente à volta do projecto. Não seriam interesses ilegais, mas que eram de moralidade duvidosa. A sua recusa não o leva a enfrentar a situação, mas condu-lo ao pedido de demissão da empresa, a qual era o fim para que se tinha preparado desde o tempo de estudante universitário e que, na verdade, era o seu projecto existencial.

Uma vocação meramente técnica torna o homem incapaz de lidar com a complexidade tanto do desejo amoroso como com as teias ardilosas da vida social, com os seus interesses. Derrotado, ainda que por demissão, tanto no amor como na realização da sua vocação, Leonel Seabra foi desenhado, por Paço d’Arcos, como figuração do carácter niilista do homem técnico. A este falta-lhe uma outra cultura – presente na figura do pai – que lhe permita um compromisso real com a complexidade do mundo. A ausência dessa cultura conduz à demissão e à fuga ao compromisso. O acidente de automóvel na juventude, com a perda da mulher amada, é uma espécie de profecia trágica de um destino a que, o promissor e talentoso engenheiro, não pôde fugir. O seu talento técnico conduziu-o a lugar nenhum, assim como cada face do espelho lhe devolveu o vazio da sua personagem.

Joaquim Paço d'Arcos, Tons verdes em fundo escuro


Em Tons Verdes em Fundo Escuro (1946), quarto romance da Crónica da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos analisa dois mundos que têm origem fora do espaço social predominante neste ciclo romanesco, a aristocracia e a alta burguesia financeira, que dominavam a sociedade lisboeta dos anos quarenta do século passado. Com Helena Medeiros é retratado o mundo da pintura, da relação estética com a realidade. Com Moura Teles, o do advogado provinciano que chega a Lisboa para triunfar, jogando calculadamente cada uma das peças que a vida lhe coloca no tabuleiro. Obsequioso com os poderosos e frio e destituído de piedade ou princípios com os outros. A figura de Moura Teles – que num romance posterior chegará a ministro do governo de Salazar – é a imagem acabada, sem contemplações, daquilo a que, na nossa tradição literária, se dá o nome de videirinho.

Estes dois mundos cruzam-se através da sexualidade. Grande parte do romance está sob a égide da relação irregular entre Helena Medeiros e Moura Teles, que mantêm um caso amoroso. Essa situação, apesar de nenhum ser casado, no ambiente fechado, provinciano e marcadamente machista, de Lisboa é uma sombra que se derrama sobre a pintora, embora seja, para Moura Teles, um motivo de promoção como homem experimentado e sexualmente vivido. A situação de Helena Medeiros é bastante frágil. A mãe – uma espécie de voz da opinião pública – não lhe perdoa a ousadia e, ressentida pela situação familiar, onde o marido, um aventureiro colonial, sempre deu mais atenção, ainda que longínqua, à filha do que a si mesma, não perde ocasião para lhe dar uma leitura negra do seu estado. Para a mãe, a situação de Helena não é a de uma artista a quem se permite aventuras em nome do sublimidade da arte, mas a de uma mulher por conta do advogado. A obscuridade que paira sobre a vida da pintora é reforçada por esta ao ocultar a situação ao pai.

O romance começa com uma intervenção de Moura Teles num negócio em que está envolvida a sociedade colonial do pai de Helena, embora na altura ele não o saiba. Ele manobra a situação, enquanto advogado, de forma a que a empresa perca o que lhe resta e seja obrigada a vender os terrenos, em África, para um consórcio de que ele faz parte. Um golpe duro sem qualquer contemplação pelos perdedores, aliás seus clientes. Esta entrada em cena de Moura Teles simboliza todo o seu comportamento, nas diversas esferas de acção. Conhecedor da lei, sabendo explorar os pontos obscuros e as fragilidades humanas, o advogado provinciano insinua-se assim tanto entre as pessoas de dinheiro, como o Banqueiro Costa Vidal, como entre a aristocracia decadente, sem poder nem dinheiro, mas com nome e passado, então bens ainda de grande valor no mercado social português.

A relação entre a pintora – que tinha estado em Paris e que voltara a Portugal com a invasão alemã – e o advogado resulta de um acaso e não de uma atracção amorosa entre ambos. Ela deixa-se levar por uma certa inocência e ele pelo desejo e pelo cálculo. Na verdade, no ambiente intelectual de Lisboa, Helena Medeiros atraía os homens e tê-la como amante era motivo de valorização nesse tráfico de comparações, que os homens são incapazes de deixar de fazer para se assegurarem da respectiva virilidade. O resultado foi aquele que era expectável. Moura Teles nunca deixou de manobrar para obter um casamento que lhe permitisse outros voos. E quando descobre a sua oportunidade junto de uma jovem aristocrata desiludida no amor, não hesita em jogar a sua sorte. O videirinho provinciano, bem relacionado com o mundo do dinheiro, é um óptimo partido para o pai arruinado da sua futura mulher. O casamento de Moura Teles é um belo contrato comercial. O sogro ganha a possibilidade de resolver os seus problemas financeiros e ele adquire um estatuto social que não estaria, de outra forma, ao seu alcance.

Helena depois de uma exposição com resultados frustrantes, de um conflito com o pai e cansada dos limites da vida lisboeta, acaba por abandonar o país para voltar a Paris, já libertada da presença alemã. Como noutros romances do ciclo, o autor interroga-se sobre a questão da inocência e da culpa e retrata, com precisão, a falta de escrúpulos, a habilidade rasteira, a falta de nobreza, que se tornaram a condição necessária para o triunfo no país cinzento, paroquial que Portugal então era. A grande personagem do romance, delineada com precisão e brilho, é Moura Teles, um exemplo claro daqueles que tratam os seus semelhantes não como seres dignos de respeito, mas como meros objectos ao serviço dos seus interesses. Através do advogado provinciano e videirinho é a sociedade de então que Paço d’Arcos torna patente ao leitor.

Joaquim Paço d'Arcos, O caminho da culpa


Se em Ana Paula, primeiro romance do ciclo Crónica da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos retrata a resistência da moral apolínea, encarnada pela protagonista, aos avanços de Eros, em O Caminho da Culpa, é o Eros vitorioso que se manifesta em toda a sua amplitude e em todas as suas consequências. A fortaleza das convenções sociais, da moral comum e da tradição, as máscaras sob as quais a moral apolínea impõe o seu jugo aos impulsos eróticos, mostra-se impotente para conter o fluxo do desejo que essa mesma moral visa domesticar e ordenar.

Seria uma leitura pobre ver no romance a mera tematização do adultério e do suicídio, tomados na sua dimensão meramente moral e social. O que nos é mostrado é a tensão entre o desejo e a convenção, é a luta entre o ser e o dever. Eros desafia não apenas as convenções sociais mas também, e fundamentalmente, as convenções pessoais e psicológicas, para revelar a realidade crua. O tempo da narrativa é o dos anos quarenta do século passado. A obra foi publicada em 1944 e nota-se nela a percepção de que a guerra, que então grassava pelo mundo, estava a deixar de pender para o lado alemão. Este tempo de convulsão exterior é rebatido numa Lisboa em paz, onde se pode especular sobre o desígnio dos deuses da vitória, sem que os portugueses tenham de se confrontar com a dura realidade da violência e da destruição.

É nesta ambiência morna que os negócios prosperam e as ambições humanas, das classes altas de Lisboa, encontram terreno para a sua concretização. É aí que se movem, como se não lhe pertencessem, o médico Paulo de Morais e a aristocrata Eugénia de Macedo. O médico – que seria, do ponto de vista ideológico, um comunista, embora não praticante – tinha, devido à sua reputação, por clientela os sectores mais elevados da sociedade lisboeta e era entre estes estratos sociais que se movia. Íntegro como pessoa e com um casamento ordenado, fecundo e feliz. Eugénia dedicava-se a uma vaga organização de caridade e mantinha um casamento convencional, do qual não havia filhos, mas que ela nunca pensara pôr em causa ou encontrar, para a monotonia da vida conjugal, uma compensação numa aventura extramatrimonial.

É a aproximação dos dois, por motivo de doença do pai dela, que desencadeia o violento ataque de Eros. Mais do que o adultério e a destruição dos casamentos, o que está em causa é a tensão que o desejo provoca em dois seres tão racionais e tão submetidos a um modo de vida apolíneo, com a submissão às regras que a razão ordena na vida social e pessoal. Não é a instituição social do casamento que o impetuoso Eros atinge, mas a pessoa de cada um dos amantes, a vida dela e a consciência dele.

Como é norma na tradição ocidental, Eros está ligado aos impulsos de vida e de morte e são esses impulsos que tomam corpo em Eugénia. Ela que sempre desejara um filho, estava agora grávida do médico. Por outro lado, os impulsos de morte manifestam-se no surgimento de um cancro no seio. O ponto central do romance joga-se aqui. Paulo de Morais sabe que a doença de Eugénia é mortal, não tendo sido ela, por culpa própria, operada a tempo, sabe que o seu amor não tem futuro e perante a tragédia da mulher amada e a vida que tem pela frente, opta por não abalar nenhum dos casamentos. Apolo estendeu-lhe a mão e ter-lhe-á parecido uma bravata inútil romper as aparências e as convenções sociais. Do outro lado, porém, Eugénia está dilacerada entre a morte que a chama e a vida de um filho – o qual se nascesse abalaria o seu casamento – que tinha surgido no tempo e no espaço errados. O suicídio é a solução do dilema que, literalmente, lhe rasgava a carne.

O romance, na verdade, é uma reencarnação da velha tragédia grega, marcada pela tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, entre as forças da ordem e as forças do caos. Paulo de Morais e Eugénia de Macedo, ao libertarem-se do convencionalismo das suas vidas, que fazia deles marionetas dos respectivos papéis sociais, submeteram-se a um senhor mais poderoso e mais impiedoso. As forças dionisíacas levaram para a morte a parte mais fraca, Maria Eugénia, e, apesar do recurso à razão apolínea, abriram uma brecha na consciência do médico perante a hesitação entre o amor sem destino e a convenção da vida respeitável de um médico das classes altas, preocupado com o destino dos desvalidos deste mundo. Com o suicídio dela e a hesitação dele, Eros tornou patente a crueza da realidade e, como é normal, Diónisos e Apolo obtiveram um empate.

Joaquim Paço d'Arcos, Ansiedade


O romance Ansiedade (1940) é o segundo da Crónica da Vida Lisboeta, um ciclo de composto por seis romances que Joaquim Paço d’Arcos dedica à vida na capital portuguesa, a uma certa Lisboa habitada pela alta burguesia em ascensão e pelo que resta de uma aristocracia decadente, nostálgica de uma monarquia que nem a mão poderosa de um ditador, talvez monárquico, teve condições para a trazer à vida. O título é já revelador da orientação que o autor imprimiu à obra. Um estado de perturbação inscreve-se na acção das personagens pela desadequação entre o mundo ideal, que alimenta as ilusões dos seres humanos, e a realidade crua.

A intriga tem dois focos que se cruzam na personagem de António Coutinho, Toy. Um de natureza política e outro de natureza sentimental. Ao longe, digamos assim, percebe-se uma época de grande agitação política a nível internacional. A guerra civil espanhola e a ascensão do nazismo e a subsequente deriva que levará à segunda grande guerra. No entanto, todos estes sobressaltos tocam apenas ao de leve a existência que as camadas sociais mais altas levam em Lisboa. A vida compõe-se de negócios, alpinismo social e traições amorosas.

O detonador da narrativa é o retorno à metrópole, para usar uma expressão da época, do jovem aristocrata Toy e de um velho republicano, Ildefonso Barradas, um homem do reviralho, cuja coroa de glória fora o seu lugar de vereador na câmara de Lisboa, antes do golpe de 28 de Maio. Apesar das diferenças sociais e de geração, o africanismo uniu-os de algum modo. Na verdade, eram dois exilados. Um, o republicano, exilado político, o outro, o aristocrata, um exilado sentimental. O pai mandara-o para África como forma de o afastar da sua prima Pequenu, com a qual mantinha um namoro equívoco e intenso.

Quando chegam a Lisboa, nem a República velha tinha sido restaurada, para desgosto de Barradas, nem a Pequenu se tinha mantido fiel ao primeiro amor, tendo casado com Carlos Lobo de Castro. Contudo, Barradas e Toy mantiveram-se fiéis às suas idealizações juvenis. O primeiro, animado pelo futuro genro, um engenheiro comunista, e apesar de discordar das ideias redentoras deste, compromete-se na luta contra o regime. Toy, embora não compreenda o casamento de Pequenu, continua a idealizá-la, não sabendo sequer que ela se tornara, com a repugnante e interessada cumplicidade do marido, amante de um dos principais banqueiros do país.

Barradas tenta captar Toy para as suas operações políticas, mas este, marcado por um idealismo de sinal contrário, decide-se, movido pela casta a que pertence, pela fidelidade ao regime e torna-se miliciano, uma figuração dos legionários, uma das organizações para-fascistas do regime de Salazar. Isso, todavia, não afastou os dois homens. Respeitavam-se apesar das diferenças. A ansiedade, que vive da iminência do terrível e que o anuncia, encontra o seu caminho perturbante não apenas na confissão de Pequenu a Toy, onde este é obrigado a tomar conhecimento da conduta da mulher idealizada, como no confronto político-militar entre uma coligação de oposicionistas, onde se encontra Barradas, e as forças leais ao regime, nas quais se integra Toy. O acaso do conflito militar leva a que, sem o saber embora o descubra logo a seguir, Ildefonso Barradas abata Toy.

Há, no romance de Paço d’Arcos, uma crítica implacável dos idealismos. Sejam estes amorosos, sejam políticos. O mundo – neste caso Lisboa dos finais dos anos 30 do século passado – não é um lugar para os puros. A pureza do amor de Toy naufraga na realidade da vida amorosa da mulher que ele idealizou e que, pelas circunstâncias da vida, não corresponde ao arquétipo nascido na adolescência. O idealismo político de Barradas é confrontado pela derrota da insurreição e no peso de ter morto, em combate, o seu jovem amigo. O próprio idealismo político de Toy é compensado com a morte. Nessa Lisboa, sob o olhar atento do ditador (nunca mencionado), a vida é feita de negócios obscuros, do esbracejar dos videirinhos e de traições quotidianas. A razão de Estado (do poder dominante) é mais forte que o romantismo político. A razão do dinheiro e do poder social derruba sentimentos e compra sexo e consciências. Ali, naquela Lisboa, não há lugar para ilusões.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula - Perfil duma Lisboeta


Ana Paula, Perfil duma Lisboeta é o primeiro romance de um ciclo de seis intitulado Crónica da Vida Lisboeta, da autoria de Joaquim Paço d’Arcos. Publicado em 1938, inscreve-se nos primeiros anos da ditadura do Estado Novo e traça um retrato da vida das classes altas lisboetas. Mostra uma aristocracia em declínio e que, apesar do seu amor monárquico, não perde tempo em procurar um lugar no regime republicano que lhe permita conduzir a vida com a antiga abastança. A obra mostra também a natureza de uma alta burguesia financeira, videirinha, oportunista e implacável.

Este primeiro romance do ciclo tem como tema fundamental a honra, esse valor aristocrático por excelência. Não se trata, porém, da honra do homem aristocrata, mas da honra entendida como persistência da mulher no caminho da virtude e da fidelidade, mesmo quando as circunstâncias, as difíceis provações e as inclinações do coração tornam propício o adultério. Não deixa de ser sintomático que, no dealbar do Estado Novo, a última defensora da virtude aristocrática seja uma mulher e que essa virtude tenha perdido todo o sentido político, reduzindo-se a uma mera questão de alcova, a resistência à tentação da infidelidade sexual.

O drama centra-se no casamento de Ana Paula, filha do Conde da Balsa, uma velhíssima família da nobreza nacional, com um oficial arrivista, herói do Estado Novo, boémio, mulherengo e viciado no jogo. As virtudes másculas de Jorge de Melo seduzem Ana Paula. O casamento para ele é uma porta para um mundo onde nunca poderia entrar e para ela o caminho para uma vida infernal. A boémia, as amantes e, principalmente, o jogo levam a que o oficial, no âmbito de uns negócios militares, faça, para alimentar a vida viciosa, uns desfalques. É detido e julgado, mas salvo por um amigo, advogado Eduardo Reis, o qual através duma retórica exímia consegue um triunfo em pleno tribunal, ilibando o amigo.

O problema é que, durante a detenção do militar e no decurso do processo judicial, o advogado e Ana Paula apaixonam-se. A narrativa mostra-nos então a luta destes dois protagonistas para resistirem à tentação. O advogado, à tentação de abandonar Jorge de Melo, o amigo, à sua sorte, a um destino odioso. Ana Paula, à tentação de se entregar ao advogado. Se a resistência à tentação em Eduardo Reis se deve acima de tudo à consideração de si mesmo e ao medo de surgir com uma imagem degradada aos olhos do objecto do seu amor, em Ana Paula assenta nas convicções religiosas e no sentido da honorabilidade da família e da casta.

Neste triângulo não consumado, Paço d’Arcos acaba por projectar, não sem ironia e algum distanciamento crítico, uma imagem estereotipada da relação entre as classes sociais e a moral. Jorge de Melo, oriundo de classes baixas, é um modelo de leviandade e corrupção moral, incapaz de contenção e de sentido da sua medida. Eduardo Reis simboliza uma moral individualista e burguesa escudada numa forte cultura jurídica e numa tolerância tácita que lhe permite manter-se, com glória, no âmbito dos seus interesses. Ana Paula é a imagem dos velhos valores aristocráticos em rápido processo de dissolução.

Apesar da banalidade da história, contada na terceira pessoa por um narrador omnisciente, o leitor pode fazer uma visita – quase como se o romance fosse um filme – a uma época de Lisboa e do país e aos valores que então guiavam os estratos sociais retratados. O facto do autor se mover nesses meios contribui para que o leitor suspenda a descrença e contemple um mundo feito de interesses obscuros, forças que se movimentam em silêncio, corrupção económica e moral, homens poderosos com as suas garçonnières, raparigas pobres mantidas por senhores ricos. Um mundo onde a influência da religião é, apesar do peso da Igreja no país ser enorme, praticamente nula e onde a virtude moral é compensada com a infelicidade e a vergonha.