domingo, 28 de novembro de 2021

Eça de Queiroz, Alves & C.ª

O tema da honra está presente no último romance de Eça de Queiroz publicado em vida, A Ilustra Casa de Ramires, no qual o protagonista, um aristocrata, confronta a sua lassidão moral com o culto bravio e sanguinolento da honra dos seus longínquos antepassados. Em Alves & C.ª, romance póstumo publicado em 1925, um quarto de século após a morte do autor, Eça centra-se no mesmo tema, deslocando o ambiente social da velha aristocracia para o seio da burguesia comercial ascendente na Lisboa dos finais do século XIX. O caso gira em torno de um adultério e a questão da honra punha-se aos olhos do marido traído. O sentimento de traição é levado ao paroxismo porque, além da infidelidade conjugal, há também a traição de uma amizade e de uma sociedade comercial, pois o amante de Ludovina, a mulher de Godofredo Alves, era precisamente o Machado, rapaz mais novo, sócio talentoso da firma e amigo íntimo de Godofredo, que o vira crescer e quase o educara.

A questão que Eça coloca no romance, ao fazê-lo girar em torno da honra, prende-se com a tensão entre uma sexualidade que transborda os limites do estipulado pelas convenções sociais e três instituições centrais da vida burguesa, o matrimónio, a amizade e a sociedade comercial, onde se conjugam os interesses materiais daqueles que se tornaram rivais. Serão as manobras de Eros, com a sua propensão para desestruturar o mundo e lançar a vida no caos, suficientes para pôr em causa instituições tão fundamentais para o mundo burguês triunfante? A expectativa seria que a descoberta por Godofredo, na sua casa e no dia do quarto aniversário do casamento, da sua Lulu nos braços do sócio Machado, levaria à destruição do casamento, ao fim de uma profunda e quase paternal amizade e, não menos importante, à desagregação da sociedade comercial.

Godofredo da Conceição Alves, o nome do personagem central do pequeno drama, é todo ele um programa narrativo. Aos banais apelidos, a mãe, senhora dada à leitura de romances, por certo românticos, antes de se dedicar ao culto do Senhos dos Passos, decidiu antepor um nome de outros tempos, um nome godo, como se ela quisesse ver no filho o aristocrata que ela não era. Esta ironia queirosiana é fundamental para a compreensão do romance. Perante o ultraje, Godofredo sente ânsias de lavar a honra em sangue, de matar o Machado ou de morrer ele, mas libertar-se assim do peso que o adultério da mulher lhe punha nos ombros. Depois de ideias e propostas bizarras, vai ter com dois amigos, um deles experiente em coisas da honra, para resolver o assunto. O que vai descobrindo, todavia, é que o caso não exigiria cometimentos tão drásticos. Os padrinhos de ambos os lados manobram até que se chegue à conclusão que nada há a fazer. Duelos relativos a questões de honra exigem mais que uma mera peripécia do deus Eros. Por exemplo, ser escarrado na face. Isso sim é grave para a honra de um homem.

A instituição da honra já não pertencia àquele mundo habitado por burgueses, era coisa de uma velha aristocracia que tinha desaparecido. Um qualquer Conceição Alves, mesmo que Godofredo, não tem honra a defender, até porque o motivo seria pura e simplesmente irrisório, num mundo em que as histórias de maridos traídos e mulheres adúlteras seria a norma. Eça liberta o Eros da sua relação com o sangue e a morte, mas não o faz como um pensador libertino. Pelo contrário, o importante é outra coisa. Importante é que o matrimónio não se desfaça, que as amizades permaneçam, apesar da intromissão da deslealdade, e que as sociedades comerciais prosperem. A honra, essa é uma coisa que não se deve intrometer no bom funcionamento das instituições burguesas. Godofredo, apesar do nome, não era um aristocrata. A vida, a sociedade, o Machado, a Ludovina e o seu coração exigem outra coisa dele, exigem que não tome a excepção como a regra e não desfaça o mundo laboriosamente tecido, um mundo apontado à prosperidade e às aparências, para que a vida decorra segundo a nova visão do mundo, a daqueles que já substituíram no comando das coisas a velha aristocracia, cujos valores são agora inúteis. A virtude central não é a honra, mas a prudência, pensada a partir do cálculo da utilidade dos actos. 

domingo, 7 de março de 2021

Jeffrey Eugenides, Middlesex

Publicado em 2002, Middlesex, do norte-americano, de origem greco-irlandesa, Jeffrey Eugenides, ganhou o Pulitzer de ficção no ano de 2003. O romance é mercado por duas temáticas identitárias. Por um lado, ele é situado na comunidade grega que emigrou para os Estados Unidos na sequência da primeira guerra mundial e, fundamentalmente, dos conflitos entre gregos e turcos. Não sendo apenas uma resposta à questão quem somos nós?, não deixa de ser uma exploração da vida dessa comunidade, uma descrição dos seus valores, tradições e modos de ser, assim como da forma como se vão integrando na vida americana e alimentam o, e se alimentam do, american dream. É neste pano de fundo comunitarista, que emerge uma outra interrogação, agora sobre quem sou eu? O motivo da interrogação não é metafísico, mas físico, uma deficiência no gene SRD5A2, que codifica a enzima 5-alpha reductase. O resultado é o nascimento de um rapaz, embora com caracteres sexuais externos femininos. É isto que acontece ao protagonista do romance. Calliope – nome que recebeu de baptismo, enquanto rapariga – e Cal, nome que adaptou em adolescente quando se descobriu como rapaz. É um caso de intersexualidade.

Algumas leituras da obra tendem a questionar a necessidade da primeira metade do romance, a sua inutilidade para a questão central que é o drama da adolescente que se descobre ser um adolescente. A primeira metade é a narrativa que traz os avós paternos de Cal de uma aldeia grega, mas em território turco, para os Estados Unidos, em 1922, durante a guerra greco-turca. É um fresco épico que vai até a 1960, ano em que nasce Calliope. A questão que se coloca é a de como narrar a acção à distância de um gene recessivo que vai acabar por se manifestar. O autor fá-lo contando a história de uma consanguinidade intensa, a qual se inscreve na história dos homens e das comunidades. Podemos imaginar uma história genética puramente natural nos animais. No homem, apesar de se poder traçar a história genética dos homens como se traça a de seres de outras espécies, ela, para lá do discurso científico, é incompreensível. O drama de Cal não é um drama proveniente de nenhures, mas inscreve-se na duração, e esta só inteligível através da narrativa. Por isso, Eugenides conta a história de Eleutherios Stephanides, conhecido como Lefty, e da sua irmã e mulher Desdémona Stephanides, os avós de Cal. Conta também a de Milton, filho do casal incestuoso, e de Tessie, os pais de Cal e do seu irmão Capítulo 11 (uma referência ao capítulo da lei das falências dos EUA e à propensão do irmão de Cal para levar os negócios a mau porto).

Uma história de sangue no sangue da história. Em Bithynios, uma aldeia na Ásia Menor habitada pela minoria grega e de onde vêm os antepassados de Cal, o casamento entre primos, considerado incestuoso, era uma prática corrente. Isto significa que a consanguinidade e uma maior concentração de traços genéticos já ocorriam antes do casamento incestuoso dos irmãos Lefty e Desdémona. O filho de ambos, Milton, pai de Cal, acaba por casar também com a filha de uma prima dos pais. Esta história de concentração genética não é pura história genética, mas está inscrita, no romance, na própria história, no sangue que a história, no seu papel de negar continuamente as configurações do mundo humano, faz correr. Os pais de Lefty e de Desdémona morrem vítimas da guerra entre turcos e gregos. Os filhos órfãos fogem para os EUA do momento em que se dá o grande incêndio de Esmirna, motivado pelo conflito greco-turco. Eugenides não deixa de dar uma visão, nas passagens referentes à fuga dos avós de Cal, do genocídio arménio. Se o autor, que dá uma tenção a esses conflitos muito localizados, passa muito por cima a segunda guerra mundial, torna a focar-se na histórica localizada, agora em Detroit, com os seus conflitos interétnicos, como os motins de 1967, mas também a emergência da Nação do Islão, ou as condições de trabalho nas fábricas de automóveis. Narra a ascensão e queda de Detroit. A história de uma desgraça genética precisa da história humana para ser contada, mas não uma história mundial. É sempre a história local, quase que se pode dizer paroquial, que é mobilizada. É sempre a história de comunidades muito precisas e caracterizadas no espaço e no tempo.

A segunda parte do romance foca-se em Calliope e a sua descoberta da realidade sexual que lhe coube em sorte. Está-se em meados dos anos setenta do século XX, ela entrara na adolescência, mas não lhe aparece nem a menstruação nem se lhe desenvolvem os seios, ao contrário do que acontece às suas colegas do colégio feminino que frequentava. A revelação deve-se a um acidente. A narrativa, a partir daqui, concentra-se no processo de reconhecimento da nova situação e na disputa interior do protagonista sobre a sua condição. Eugenides explora a tensão entre cultura e natureza na definição do género e parece questionar a ideia de que o género é uma construção fundamentalmente social. Cal cresceu e foi educado como rapariga e frequentou um colégio feminino. Toda a construção do género foi feita no feminino. No entanto, a sua primeira paixão pelo Objecto Obscuro (uma referência ao filme de Buñuel, O Obscuro Objecto do Desejo), uma colega do colégio, era tipicamente masculina, de acordo com a sua natureza masculina. Quando chega o momento de optar, opta de acordo com o sexo genético e não com o género social, mesmo estando desprovido externamente da genitália masculina.

Se o romance é uma resposta às questões quem somos nós? e quem sou eu?, essa resposta não se funda numa revolta contra a própria condição comunitária e pessoal. A comunidade grega de que Cal provém não deixou de ser uma comunidade grega, mas agora claramente integrada no modo de vida americano, estabelecendo pontes entre os preconceitos da cultura originária e os da cultura em que se integram. Uma imagem de integração do sonho americano. É verdade que a questão racial, mesmo no romance que a trata a partir da visão preconceituosa da comunidade grega, é uma nota dissonante dessa visão idílica de uma América integradora. É como se esta fosse acolhedora para aqueles que a procuram e têm a perspectiva adequada sobre o trabalho e a riqueza, mas fosse impiedosa para aqueles para ela foram levados contra a sua vontade, enquanto escravos. Os gregos que fugiram da Europa são agora plenamente americanos, apesar de ainda serem gregos. Também Cal, ao narrar a sua vida até à assunção da sua identidade masculina, se mostra reconciliado com a sua situação, tendo ultrapassado as inquietações psicológicas, nunca estando em causa outras. Não há qualquer questionamento metafísico e as abordagens da situação circulam entre o conhecimento científico de natureza genética e médica e a abordagem psicológica. Cal quando narra a sua história, quase trinta anos depois, mostra-se completamente reconciliado com a sua natureza. É plenamente homem, apesar daquilo que nele ainda subsiste de feminino. Middlesex não é um romance de revolta, mas de reconciliação.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty

Publicado em 1970, o romance A angústia do guarda-redes antes do penalty é uma das obras mais conhecidas do escritor austríaco Peter Handke, Nobel da literatura em 2019. O leitor de imediato sente a possibilidade de carrear alguns pontos genealógicos que se configuram elos de uma corrente que levam ao romance de Handke. Kafka e Ungar, Broch e Musil, mas ainda Camus, de O Estrangeiro, ou Sartre, de A Náusea. A obra faz parte de uma paisagem pesada que parte da literatura europeia foi construindo, num jogo de espelhos, com a realidade dessa Europa que, no século XX, orgulhosa da sua civilização material, não teve a contenção necessária para evitar duas guerras mundiais e um número desmedido de patifarias. Uma paisagem devastada de homens sem qualidades. A ausência de qualidades é também a ausência de qualificativos. Os homens são substâncias nas quais a essência se despiu dos acidentes, para falar à maneira de Aristóteles.

Assim como, na Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda uma manhã transformado num insecto gigante, também é subitamente que Joseph Bloch, um mecânico, se vê despedido da empresa onde trabalha. Não é claro, todavia, se ele foi efectivamente despedido ou se julgou tê-lo sido. Esse é, na narrativa, o primeiro sinal de uma desvinculação ontológica entre o sujeito e a realidade social, na qual se inclui a sua própria realidade de ser social. A referência à doutrina de Aristóteles pode não ser despropositada. Desvincular-se dos acidentes – das qualidades que não constituem o cerne da identidade – deixa os homens reduzidos à sua essência, mas estranhamente a perda do acidental produz uma profunda alienação, em vez de glorificar aquilo que é. O que conduziu Bloch a esse estado não se sabe. Duas qualidades acidentais são referidas, mas ele, no tempo da narrativa, já as perdeu. A de ser um mecânico e, também, a de ter sido um guarda-redes conhecido de uma equipa de futebol, também ela conhecida. Durante a narrativa, contudo, ele já está despido dessas qualidades. Perdido o emprego, Bloch entregou-se à pura errância, a deambular por Viena, primeiro, e depois numa outra cidade, na fronteira sul do país.

Desqualificação e errância são sintomas do estranhamento, da alienação. Um descomprometimento emerge na atitude do antigo guarda-redes. Descompromisso com os lugares, as pessoas, com os próprios actos, sentimentos e situação existencial. Nessa errância, comete um homicídio. Não porque tivesse motivo algum para o cometer. Aconteceu estrangular uma rapariga que trabalhava na bilheteira de um cinema, com quem tinha ido para a cama. No seu acto não houve qualquer finalidade ou motivo. Dir-se-ia que não foi uma acção, mas um mero acontecimento, idêntico a uma avalanche ou a um raio. Esse evento não teve qualquer ressonância interior. Reduzido à sua pura essência, Joseph Bloch não apenas perdeu os acidentes como não o move qualquer objectivo. É isto que transforma os seus actos em puros processos naturais. O estranhamento do mundo social, dos jogos de linguagem e das convenções rituais conduz à pura naturalização do indivíduo.

A própria personagem, por vezes, chega a uma consciência próxima do seu estado. Quando suspeita que certos jogos de linguagem – frases ou conversas – não são sérios, não passarão de uma brincadeira. O mesmo se passa com certos acontecimentos ocorridos nas interacções sociais. Esta desconfiança para com a seriedade da vida social ou da linguagem é um sinal da desvinculação com todo o mundo ritualizado da cultura humana, com os seus jogos linguísticos e representações sociais. Nada daquilo pode ser sério. A autenticidade de um ser puramente natural está aquém do jogo e da representação teatral. Como se sabe, jogo e representação são elementos estruturantes da vida em sociedade, fundamentos do que se convencionou chamar cultura. Joseph Bloch não transcende o social e o cultural na imersão mística no mundo do espírito, mas retorna ao estado de natureza. O romance pode ser lido como uma experiência mental ou, melhor, um ensaio sobre o que seria um homem que decaísse do estado social para o estado natural. O estado natural não é um lugar de emancipação, mas de degradação. Toda a queda se inscreve num movimento de degradação, e a história de Joseph Bloch é também a história de uma queda.

Cair na natureza é também cair fora da história. Isso explica – talvez mais do que o suposto experimentalismo do autor – o tipo de narrativa escolhido por Handke. Sem intriga e sem desenlace. Por exemplo, o leitor percebe que a polícia começa a aproximar-se do assassino da rapariga da bilheteira, mas isso não tem qualquer impacto no romance nem no destino de Bloch. Na natureza não há acções e não há história, apenas acontecimentos. A narrativa tenta ser uma descrição exaustiva de acontecimentos, mesmo que estes tenham aparência de acções humanas. Isto conduz ao papel do narrador. Se há um romance em que se sente a presença obsessiva do narrador é neste. Narrado na terceira pessoa, A angústia do guarda-redes antes do penalty é um exercício literário de registo minucioso de ocorrências, como se o narrador omnisciente redefinisse a natureza dessa omnisciência. Ele é omnisciente não porque sabe o desenrolar e o desenlace da história que está a contar, mas porque regista de forma hiperbólica a factualidade. No universo narrado – um universo natural e não um mundo humano – não há uma história para contar, mas factos para registar, numa espécie de relatório descritivo de um narrador obsessivo com a exactidão do que acontece.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Afonso Cruz, Flores

O romance de Afonso Cruz, Flores, foi publicado em 2015 e obteve o Prémio Fernando Namora em 2016. O autor, com vasta bibliografia e múltiplos interesses, é um dos mais importantes da geração que está na casa dos cinquenta anos. A obra, uma narrativa na primeira pessoa, lida com o problema da identidade, a do vizinho do narrador e, de forma especular, com a do próprio narrador, um jornalista. O trabalho sobre estas duas identidades segue, todavia, processos diferenciados. A do vizinho do narrador é procurada através de um inquérito que combina as técnicas do jornalismo e as da investigação de detective privado. A busca da própria identidade obedece ao monólogo interior ou, para ser mais exacto, ao diálogo consigo mesmo, desdobrando-se o jornalista em duas pessoas, nem sempre as mesmas, que dialogam entre si. 

Casado com Clarisse e pai de Beatriz, o jornalista leva uma vida autocentrada, um exercício pouco discreto de narcisismo, ao mesmo tempo que assiste à morte do casamento. Uma morte porque, com o tempo, a relação perdeu a excitação do primeiro beijo. Entregava-se, para compensar o baixo nível de adrenalina matrimonial, a umas infidelidades, mais ou menos ocasionais com uma colega. Ao mesmo tempo acabou por se interessar por um vizinho, Manuel Ulme. Uma personagem aparentemente deslocada daquele meio. Ulme é um homem de idade. A certa altura confessa que nunca viu uma mulher nua. Questionado sobre a situação, diz que se viu não se lembra. Sofrera um aneurisma e o passado apagara-se. Perdera parte significativa da memória, a que estava relacionada com a identidade e com o que fizera e lhe acontecera durante a vida. Isso, porém, não impedia de ser efectivamente um self estruturado em torno de um conjunto de atitudes e crenças, com as suas idiossincrasias e apreciações do mundo e, fundamentalmente, da maldade do mundo. 

O romance introduz na realidade uma ambiguidade fundamental em relação ao peso do passado e da memória relativamente ao que se é no presente. Manuel Ulme não necessitava do seu passado para ser aquilo que é no presente. Essa ausência pode assombrá-lo, mas não é uma condição necessária para conduzir razoavelmente a sua existência na nova condição. Dito de outra maneira, o romance parece, ainda que de forma não totalmente clara, abrir um rasgão na sutura que une memória e identidade. A narrativa é atravessada pela repetição, como se fora um mantra, de uma frase enigmática pelo senhor Ulme: Entremos mais dentro da espessura! Uma leitura imediata poderá compreendê-la como a formulação de um desejo de penetrar na névoa em que se tinha tornado o passado. No entanto, não é claro que o seja, pois a frase é um verso de S. João da Cruz. A espessura em que Manuel Ulme deseja entrar pode muito bem ser a autêntica realidade, que ele tenha adquirido a consciência de que o que se chama o real não passe de uma aparência.  

Na reconstituição do passado do vizinho, o jornalista, a partir do que encontra na casa daquele, consegue chegar à aldeia alentejana onde ele nasceu, descobre que vinha de uma família rica e reconstrói a sua teia de relações sociais, de amizade e familiares. A identidade que é assim reconstruída é sempre uma identidade perspectivística e exterior ao self de Manuel Ulme. Entre louvores e censuras, o jornalista reconstitui a vida do vizinho, construindo uma imagem contraditória, ao mesmo tempo que perpassa por um conjunto de cenários do Portugal anterior ao 25 de Abril e, também, do que veio depois. No trabalho de investigação, descobre-se uma linha de continuidade entre o antes e o depois do aneurisma, a preocupação com o mal do mundo, com o facto de este ser palco de um teatro onde a canalhice e a maldade humanas são sempre as principais protagonistas. Na fase desmemoriada da existência, Manuel Ulme colecciona notícias de jornais onde se relatam as perversões do homem. Descobre-se, porém, que já antes o fazia e até com o papel acumulado tinha construído um gigantesco golem – um ser artificial ligado à tradição mística do judaísmo, que pode ser trazido à vida – talvez com a esperança de que este fizesse aquilo que nem os homens nem Deus fazem, dissuadir os homens do mal. Estava escondido num armazém da aldeia, cuja chave Manuel Ulme trazia sempre ao pescoço, embora não soubesse para que servia ela. Era a chave da continuidade entre o antes e o depois da doença. 

Este trabalho de investigação com as suas descobertas são o contraponto das descobertas que o próprio jornalista faz de si e da sua vida. O exercício fundamental de autodescoberta passa-se na casa de banho no diálogo com o espelho. Fala consigo mesmo, embora se desdobre em dois. O que está em jogo, nessas conversas, não é apenas um passado real, mas também um presente e um futuro desejados. Vê-se como um herói, imagina-se outro de si mesmo, em versão magnificada. Isso, todavia, é contraposto com decomposição da sua vida conjugal e da sua vida amorosa em geral. Se Manuel Ulme tinha uma obsessão pelas malfeitorias da humanidade, ele tinha-a pela ordem. Percebeu que alguma coisa ia mal quando a mulher não arrumou um dos seus chapéus no lugar, deixando-o ficar em cima de uma cama, sabendo que ele não suportava essa pequena desordem. Este pequeno esquecimento era o sinal de que o casamento se desfizera, a excitação há muito dera lugar à morte do desejo. A saída de casa da mulher e da filha é, na verdade, o desmentido do seu narcisismo, dessa imagem superlativa que, diante do espelho, construía de si mesmo. Uma identidade falhada, um self sem consistência, sem elevação. A fractura da memória de Manuel Ulme pode não ser decisiva para a existência de um self consistente. A existência de uma continuidade mnemónica de si está longe de ser uma garantia de uma identidade sólida e capaz de lidar com a realidade.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Hermann Ungar, Os Mutilados


Hermann Ungar (1893 – 1929) foi um escritor checoslovaco, de origem judaica e que escreveu em língua alemã. Os Mutilados (1923) é o primeiro dos seus dois romances. Ungar faz parte de um grupo de escritores judeus checos organizado em torno da figura de Max Brod e do qual também fez parte Franz Kafka. A morte prematura do escritor e a natureza tensa e obsessiva das suas obras, bem como a acção de algumas pessoas influentes nos meios literários, como o próprio Brod e Willy Haas, terão conduzido ao esquecimento da sua obra durante largas décadas. Isto, apesar da grande admiração de Thomas Mann – padrinho do filho de Ungar – e da obra Os Mutilados ter tido a honra de ser uma das primeiras a ser queimada pelos nazis, como exemplo de arte degenerada. Influenciado pelo expressionismo alemão e pela psicanálise, o romance é uma descida ao inferno, isto é, às obsessões e nevroses que habitam as pessoas e as mutilam.

Se se entender por mutilação a amputação de um membro, então apenas uma das personagens, Karl Fanta, é verdadeiramente um mutilado. Isto, porém, contraria o plural presente no título do romance. Todavia todas as cinco personagens em torno das quais gira a intriga – Franz Polzer, Klara Porges, Karl e Dora Fanta e o enfermeiro Sonntag – são, todas elas, de uma maneira ou de outra, mutiladas. A personagem central, Franz Polzer, é mutilada espiritualmente. A morte prematura da mãe, a vida numa casa pobre onde o pai, um pequeno merceeiro de província, e a irmã deste exerciam sobre ele uma violência contínua, assim como a suspeita de que o pai e a tia se entregavam a uma relação incestuosa, tudo isso criou em Polzer o temor não apenas pelo sexo feminino como pela espontaneidade da vida, com as suas incertezas e as suas ameaças. Estas são interiorizada como um caos, ao qual ele deveria fugir, através de uma vida regulada até aos ínfimos pormenores.

Quando o romance começa, Polzer é empregado num banco há dezassete anos, desde precisamente os 20. Amigo de infância de Karl Fanta, o filho de um rico judeu, acompanha este para a universidade, por generosidade do pai de Karl. Quando este, porém, fica doente e tem de abandonar os estudos, o velho Fanta cessa o apoio a Franz, empregando-o num banco. A vida de pequeno funcionário burocrático ganhou aí todo o sentido, através da organização meticulosa tanto dos horários – nunca faltou ao emprego, nunca chegou tarde – como do próprio trabalho que tem de desempenhar. O que mais teme este homem sem qualidades é o desconcerto desta realidade. O seu principal desiderato é manter-se invisível na rotina da grande organização. Vive num quarto alugado em casa de uma viúva, Klara Porges. É o único hóspede de uma mulher sexualmente demasiado activa e que acabaria por violá-lo, por lhe impor uma sexualidade que ele queria a todo o custo evitar. A sua fraqueza psicológica reflecte-se na sua incapacidade de resistir pela força ao desejo vulcânico da viúva. No entanto, não é apenas a imposição física da mulher que o dobra. A certa altura, Klara espanca-o com um cinto, numa cena de sadomasoquismo que remete para e experiência infantil de Polzer, quando era sovado pelo pai ou mesmo pela tia. A rejeição do sexo feminino funde-se na complacência para com a dominação e a submissão que, desde muito cedo, se inscreveram no seu inconsciente.

Quando o mundo de Polzer começa a desestruturar-se – a partir do momento em que a sua amante forçada lhe destrói a imagem de um santo, a única herança da mãe, e que ele tinha como o ponto no mundo de onde a ordem emanava – ele retoma relação com o seu amigo de infância, pelo qual terá sentido uma atracção homoerótica, assim como acontecerá pelo filho adolescente deste, Franz Fanta. Karl Fanta, devido a uma terrível doença, fora amputado das duas pernas e prepara-se para ser amputado de um braço. A sua condição existencial leva-o para um universo de suspeições acerca da vida da mulher, Dora, e das suas supostas intenções de o matar. Karl impõe uma relação de sujeição e arbítrio à mulher e tudo o que ela faça, seja tratar-lhe das feridas purulentas, seja ceder aos seus caprichos sexuais, apenas serve para confirmar a convicção de Karl de que a mulher conspira continuamente contra ele. A vida de ambos é um inferno, a dele porque a amputação física lhe destrói o discernimento e a razão, a dela porque sofre o exercício de um poder despótico a que não pode resistir.

Comportamentos obsessivos e neuróticos misturam-se com sexualidades pervertidas pela vida. Esta surge como o lugar onde não existe livre-arbítrio, capacidade para os agentes escolherem. Polzer não escolheu aquele pai e aquela tia que o maltrataram, nem sequer escolheu a viúva para amante. Tudo se lhe impôs. Também o rico Karl Fanta não escolheu a doença que o corrói. Os Mutilados é também um romance sobre a retracção do espaço de liberdade na vida dos homens. O essencial das suas existências não resulta de escolhas livres, mas consiste em coisas que lhes acontecem, como acontece uma trovoada ou um tsunami. É nesta ambiência que emerge ainda uma quinta personagem fundamental, o enfermeiro Sonntag, contratado para cuidar continuamente de Fanta. Antigo magarefe que não suportava a profissão, torna-se enfermeiro ao mesmo tempo que se converte a uma visão radicalizada do cristianismo, tomando a vida como o lugar de uma expiação contínua. A expiação resulta de uma revivescência incessante – uma revivescência obsessiva – dos actos pecaminosos, numa inversão da proibição bíblica de olhar para trás dada à família de Loth.

Se o que acontece com Karl Fanta e Franz Polzer não resulta de escolhas livres, se o mesmo se passa com Dora e a própria Klara Porges, que não escolheu ficar viúva nem sequer a sexualidade com que é dotada, uma possibilidade de introduzir a religião seria a de vincar o seu carácter emancipatório, a sua luta contra a submissão que o pecado impõe aos homens. Libertar os quatro do passado, fazer com que eles não se transformem estátuas de sal, tal como aconteceu à mulher de Loth. A intromissão da religiosidade pervertida de Sonntag é, claramente, a negação dessa possibilidade. O retorno contínuo da consciência ao passado, ao mal como forma de expiação. Isso significa, porém, que o expiador nunca encontrará o alívio da sua consciência, como se a remissão do mal fosse impossível. A mutilação emerge assim como o acontecimento em que o mal triunfa irremissivelmente sobre o bem e a vida é o inferno, esse lugar de expiação infinita. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Ernst Jünger, Heliópolis


O romance Heliópolis (1949), de Ernst Jünger, não foi até hoje traduzido para português europeu, embora exista tradução brasileira. Há também traduções em línguas acessíveis como o espanhol, o francês e o inglês. O título pode ser lido como uma referência, embora irónica, à obra utópica de Tommaso Campanella, A Cidade do Sol (1602), na qual se desenha uma sociedade comunista liderada por sacerdotes. Na realidade, Heliópolis é uma organização política que está longe de preencher os requisitos de perfeição e felicidade presentes nas utopias. Pelo contrário, fica na fronteira entre um mundo de ficção científica e uma distopia, como aquelas que foram criadas por Aldous Huxley e George Orwell. No entanto, se se tomar literalmente a palavra utopia – como um não lugar ou um lugar que não existe – Heliópolis é uma utopia, pois o espaço da acção, apesar de algumas referências ao mundo conhecido, é uma criação ficcional. Aliás, todo o romance põe em jogo uma geografia inexistente. O próprio tempo da narrativa é num futuro indeterminado.

O que está em jogo, porém, é a desenvolvimento espiritual da personagem principal, o comandante Lucius de Geer, a superação do seu compromisso com a acção política e o poder e a ascensão a novas concepções de poder e a novas formas de vida espiritual. Após uma guerra decisiva, de âmbito mundial, o vencedor, apenas referido como regente, que estabelecera uma ordem monárquica mundial, retira-se do palco político, desiludido por as suas concepções políticas não encontrarem eco na humanidade. Dá a si mesmo uma espécie de exílio no espaço, par onde se retirou com todo o armamento de grande alcance, e de onde vigia a Terra, mas sem intervir nos negócios políticos dos estados. É possível que esta figura de um regente do mundo exilado num espaço inacessível ao comum dos mortais seja um eco das considerações feitas por René Guénon, num livro publicado em 1927, Le Roi du Monde. O romance desenvolve-se nesta clareira aberta pela retirada do regente, que permitiu a emergência de vários estados na Terra, entre os quais o de Heliópolis.

Heliópolis vive uma estranha situação política marcada por dois pólos de poder. Por um lado, o Procônsul, por outro, o Perfeito. Como o poder real, o do Regente, não intervém, estes dois poderes entregam-se a um difícil jogo de equilíbrios, com ataques e conciliações, exercícios diplomáticos e planos para aniquilar a outra parte. Existe uma divisão de poderes, mas não a tradicional divisão nascida com a modernidade. O Procônsul domina os militares e a universidade. O Prefeito, a polícia, a imprensa e um estranho Instituo de Toxicologia. Domina também a ira popular que instiga, sempre que dá jeito, contra uma minoria conhecida como parsis, os quais são submetidos não poucas vezes a violentos pogroms. O confronto real é, todavia, mais do que político, espiritual. O Procônsul representa as forças de uma velha aristocracia política, militar e espiritual, forças que crêem na liberdade dos homens, entendida, antes de mais, como livre-arbítrio. O Prefeito, um hábil populista amado pelas massas, encabeça os que têm uma visão técnica do mundo, os que se servem da ciência apenas como ponto de partida para aumentar o poder tecnológico, tido como uma forma de dominação da natureza e da sociedade. Em resumo, uma visão determinista e mecânica do homem e do mundo. Não será deslocado ver no Perfeito e nas suas forças um retrato da essência do nazismo. Desde o poder sedutor do chefe até à perseguição dos parsis, uma etnia fictícia que encarna no romance o destino dos judeus, até ao culto do poder da técnica, tudo parece ser um retrato do nazismo.

 O comandante Lucius de Geer pertence às forças do Procônsul. É um alto quadro militar e diplomático, um homem de acção. O romance gira em torno do seu desenvolvimento espiritual, da sua inquietude perante os limites da acção e da sua busca por uma outra ordem que ultrapasse os quadros da velha tradição aristocrática. Constata que os métodos do seu próprio lado acabam por se degradar, perder a tensão espiritual que deveriam encarnar e aproximam-se, perigosamente, dos do lado do Perfeito, isto é, tornam-se meramente técnicos. Subjacente a estas apreciações, estão em conflito duas formas de ver a guerra e a própria acção. Por um lado, uma visão de que a guerra é uma espécie de iniciação espiritual, uma idealização das visões da guerra pré-moderna, na qual o guerreiro, tal como o contemplativo na oração e meditação, transcende a sua singularidade empírica. Por outro, a guerra como mera técnica, na qual o uso da tecnologia abole qualquer experiência espiritual, qualquer valor heróico, resumindo-se a guerra à gestão de homens e tecnologias e à contabilidade de mortos, de vitórias e derrotas. É o sentimento que o seu próprio lado se afasta da tradição aristocrática idealizada que abre no espírito do comandante à dúvida e a comportamentos que o conduzirão à queda dentro da hierarquia do Procônsul.

A dúvida e a queda são mediadas não apenas pelas reflexões do próprio comandante, mas também pela influência de um padre católico, padre Félix, um eremita que vive na montanha, cuidando de um apiário. O religioso é um dos mediadores da transformação espiritual de Lucius, assim como Budur Peri, uma jovem mulher, de origem parsi e norueguesa, também ela vítima das perseguições do Perfeito e das massas ignaras. Budur, devido às suas ligações com um tio, tem acesso a certas substâncias psicotrópicas. Num dos episódios, a noite do laurel, ambos se entregam a uma experiência com ópio, a qual será um momento decisivo de aproximação entre eles e que abrirá o caminho para seu casamento. A queda do comandante por um comportamento inadequado numa acção militar, que conduziu de forma vitoriosa e corajosa, é o momento em que ele abandona o caminho do velho aristocrata e se vai abrir a uma nova espiritualidade que o levará para a proximidade do Regente, o qual há-de voltar um dia para restabelecer a ordem no mundo, isto é, no seu reino. A queda, e quase todo o romance é a descrição daquilo que conduz Lucius à queda, foi a condição necessária da ascensão a uma outra dimensão da realidade e a outras experiências do espírito. Uma replicação romanesca da queda adâmica, a qual foi a condição necessária para a vinda da salvação crística.