segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Thomas Mann, Sua Alteza Real


Publicado em 1909, sete anos após o primeiro romance, Os Buddenbrook, Sua Alteza Real é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de imediato à mente são romances como Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha Mágica ou Doutor Fausto. O que terá desapontado a crítica de então e encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que, também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das existências individuais.

O Grão-Ducado é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.

As grandes decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração, numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a pessoa e a sua subjectividade.

Para além de conto de fadas, Sua Alteza Real é também um romance de formação, na tradição do Bildungsroman iniciada com Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade, constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.

O conto de fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função, dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é, transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.

O casamento é visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros, movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Julien Gracq, Au Château d’Argol

 

Publicado em 1938, Le Château d’Argol é o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo literário de Louis Poirier (1910-2007). André Breton considerou a obra como o ponto culminante do surrealismo. Independentemente desta relação com o surrealismo, está-se perante o início de um percurso literário – nomeadamente, no âmbito do romance – de grande qualidade, apesar de o autor estar longe de ser popular. Como o título indica, o acção romanesca passa-se num castelo/palácio da aldeia bretã de Argol, uma povoação realmente existente, incrustada na floresta armórica, a qual, no romance, se funde com o próprio château. Contudo, em Argol não há ou houve qualquer château. É no cruzamento entre a realidade da povoação e a irrealidade do espaço narrativo que o autor produz a mitificação do espaço, retirando-o da dimensão narrativa da existência quotidiana e, de alguma forma, operando uma espécie de consagração, embora de uma sacralidade tenebrosa, na qual emergem as forças obscuras do inconsciente como grandes agentes da acção.

O château e a floresta envolvente, pelo processo de mitificação que está na sua origem, tornam-se o espaço de uma utopia, não no sentido que podemos encontrar naquelas desenhadas por Platão na República ou por Thomas More na Utopia, onde se encontra uma idealização das relações humanas, mas num sentido denso em que se combina a ideia de um espaço estranhamente configurado, como se fora uma sugestão de não espacialidade, pelo menos daquela espacialidade onde habitamos, e a percepção de que ali, naquele lugar que é um nenhures, um não lugar, está suspensa a trivialidade com que os seres humanos gerem as suas relações, e as relações que ali decorrem obedecem a forças que estão adormecidas ou domesticadas na vida quotidiana, a qual só é possível pelo adormecimento e pela domesticação dessas forças. A esta utopia corresponde ainda uma ucronia assente em duas linhas de força. Por um lado, não é claro qual é o tempo histórico da narrativa, pois nela se combinam elementos modernos, como o automóvel ou a referência a Hegel, com intencionalidades românticas e mesmo pré-modernas. Por outro, episódios em que a linearidade temporal é subvertida, onde elementos do passado são, na realidade, elementos de um tempo a vir.

Albert, um jovem aristocrata de grande riqueza, comprou o château possuído pelo demónio do conhecimento. Aos quinze anos, via-se florir nele todos os dons do espírito e da beleza, mas ele desviou-se, com uma singular firmeza, dos sucessos que, em Paris, todos lhe prometiam. O demónio do conhecimento tinha-se já tornado senhor de todas as forças deste espírito. Visitou as universidades da Europa, de preferência as mais antigas, aquelas onde persistia ainda a recordação de um saber filosófico dos mestres da Idade Média raramente ultrapassado pelos modernos. Ao comprar o estranho château na afastada Bretanha, Albert procurava um lugar onde pudesse satisfazer a sua paixão filosófica num ambiente que se aproximaria, de algum modo, daquele que teria sido o dos velhos mestres medievais. O château em Argol era um sítio de meditação e, ao mesmo tempo, de viagem no tempo ao encontro de um passado que, na verdade, não tinha sido, aos olhos do jovem aristocrata, superado, como se a vontade do indivíduo pudesse superar a dialéctica do espírito no seu processo histórico, tal como era compreendida por Hegel.

A certo momento chega ao château Herminien, o melhor amigo de Albert e como ele alguém espiritualmente dotado, acompanhado por Heide, uma belíssima mulher. A partir deste momento suspende-se a vida banal e forças mais poderosas e inconscientes entram em acção, nesse lugar onde o tempo e o espaço tinham sofrido uma subversão. O que vai emergir, quando a vida trivial, com as suas regras sociais e jurídicas, é suspensa não é um hino sublime à beleza, mas a força da violência, de uma violência que vem do fundo do ser e se apodera dele. Essa violência anuncia-se em verdadeiras justas medievais entre os dois amigos, não em combates de cavalaria, mas de confrontos retóricos em torno do saber. Podemos pensar a retórica como uma primeira forma de domesticação da impetuosidade do logos, mas falhamos o essencial. A retórica apenas torna mais sofisticado o discurso enquanto arma de agressão e de luta pela dominação do outro. A tentação de confronto existente desde sempre entre os dois amigos é agora intensificada pela disputa de Heide, pelo triângulo erótico nascido da imediata atracção de Heide por Albert.

O destino das personagens vai ser marcado pelo desencadear da violência, que passa do conflito retórico para a violência física e a morte. A narrativa é construída sob a influência do romance gótico e das obras de Edgar Allan Poe, onde o doseamento do suspense está feito para criar um clima de tensão que antecede o desenlace. A culminação do surrealismo, como adjectivou Breton o romance de Gracq, é, contudo, equívoca, pois o que se manifesta ali não é uma sobrerrealidade, mas a vitória da infrarrealidade, o sucesso das forças tenebrosas que, aproveitando a combinação da paixão pelo conhecimento com a paixão pela beleza, furaram o cerco apolíneo da razão e abriram o caminho, como sempre acontece, para a destruição e a morte. Escrito em 1937, publicado em 1938, o romance de Gracq parece ser uma premonição e um aviso sobre aquilo que já nessa hora espreitava a Europa e o mundo, como se o tempo do futuro se tivesse antecipado e coagulado simbolicamente numa obra literária.

sábado, 29 de outubro de 2022

Ford Madox Ford, Some Do Not

O romance Some Do Not, publicado em 1924, é o primeiro da tetralogia Parade’s End, de Ford Madox Ford, um dos mais importantes escritores modernistas ingleses. Aparentemente, a tetralogia teria como objecto a primeira guerra mundial. É reconhecidamente um dos grandes monumentos literários provenientes da experiência traumática desse acontecimento que levou à morte uma geração de jovens europeus. Contudo, pelo menos no primeiro romance, a guerra é um assunto distante, que por vezes aflora não nela mesma, mas nas consciências das personagens. O que está em jogo, na trama narrativa, será quase um exercício filosófico, não porque o romance tenha um carácter especulativo e aborde problemas teóricos, mas porque é, na verdade, uma experiência de pensamento, como o são a Alegoria da Caverna, de Platão, ou a Hipótese do Génio Maligno, de Descartes. Não tem, todavia, finalidade de construção conceptual, como as referidas experiências, mas existencial. Apesar de marcadamente orientada para a captura da vida no seu fluir, esta experiência de pensamento não deixa de partilhar com as referidas uma preocupação com a distinção entre aparência e realidade, um cuidado com a verdade. Trata-se de transplantar um homem do século XVIII, Christopher Tietjens para as primeiras décadas do século XX. Não que se esteja perante um romance de ficção científica, em que se faz acordar alguém nascido num passado já remoto num tempo presente. O caso é outro. Christopher Tietjens, o último tory, é um homem cujos valores se pautam pela solidez moral dos gentlemen século XVIII. Pertence a uma família de ricos terratenentes, chegada a Inglaterra com Guilherme de Orange, em finais do século XVII, na sequência da Revolução Gloriosa.

O romance divide-se em duas partes. Na primeira, centra-se num fim-de-semana que vai ter importantes consequências tanto para Christopher como para o seu amigo Vincent Macmaster, um escocês, pertencente a famílias pobres. Ambos foram colegas de faculdade e trabalham agora como estatísticos para o governo de Inglaterra, embora o escocês tenha pretensões em transformar-se em crítico de arte, tendo acabado de publicar um pequeno livro sobre o pintor Dante Gabriel Rossetti, um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, um movimento artístico do século XIX. O primeiro parágrafo da obra é um retrato do mundo ordenado anterior à primeira grande guerra: Os dois jovens – ambos pertenciam ao funcionalismo público inglês – iam sentados numa carruagem de comboio perfeitamente equipada. As correias de couro das janelas eram virginalmente novas; os espelhos debaixo dos porta-bagagens estavam tão imaculados como se tivessem reflectido muito poucas coisas, o tapete acolchoado, de formas regulares, mas luxuosas, era escarlate e amarelo, com pequenos e intrincados motivos de dragão, desenhado por um geómetra de Colónia. O compartimento cheirava leve e higienicamente a verniz; o comboio circulava com tanta suavidade – recordou Tietjens ter pensado – quanto a dos títulos do tesouro da coroa britânica. Viajava depressa, mas se tivesse balançado ou saltado ao passar sobre as juntas dos carris, salvo na curva de Tonbridge ou na mudança de agulhas em Ashford, onde eram permitidas essas excentricidades, Tietjens estava seguro de que Macmaster teria escrito à companhia. Talvez mesmo ao Times. É este mundo de uma ordem geométrica e de uma moral rigorosa que se encontra já em diluição.

É no campo da sexualidade que emerge a dissolução dos valores e da velha ordem do império britânico. Tietjens mostra a Macmaster uma carta de Sylvia Tietjens, uma católica, que tinha trocado o marido, o próprio Christopher, por um major, do qual se fartou em pouco tempo. Pedia para regressar a casa. Durante o fim-de-semana, Macmaster conhece Mrs. Duchemin, também ela escocesa, mulher de um clérigo enlouquecido, proprietário de quadros pré-rafaelitas, com a qual inicia um caso que conduzirá ao casamento, no dia a seguir ao óbito do senhor Duchemin. Também Christopher trava conhecimento com a jovem sufragista Valentina Wannop, filha de um casal amigo do pai, e com a qual estabelecerá uma relação amorosa, mas nunca consumada durante o tempo desta primeira narrativa. É neste ambiente, já marcadamente sexualizado, que Christopher vai pôr à prova os seus sólidos princípios de cavalheiro, tanto na aceitação do retorno da mulher, como na preocupação com a reputação dela. Um cavalheiro não se divorcia. Se a mulher quiser o divórcio, concedê-lo-á, mas não dará qualquer passo que possa prejudicar a imagem da mulher, uma rica e, aparentemente, frívola socialite, sexualmente promíscua, que o odeia. Têm um filho, um acaso, embora não seja claro se Christopher é ou não o pai da criança, embora as provas existentes sejam fortes a favor da sua paternidade. Graham Greene considera que Sylvia possui o pior carácter do romance moderno.

À hipersexualização do ambiente, pois a promiscuidade da mulher é apenas um sintoma do espírito do tempo, responde Christopher com o seu desejo de ser um santo anglicano. À libertinagem reinante, responde: Eu defendo a monogamia e a castidade. E que não se fale mais nisso. Não é, todavia, esta defesa da castidade e da monogamia que leva a que a mulher, Sylvia, o odeie. É o facto de ele ser tão sólido e de estar de tal maneira fundado nos seus valores de pertença a uma velha família terratenente que a deixam fora dela. Ainda por cima, ele é servido por uma superior inteligência, com capacidade de não apenas deslindar os enigmas do presente como de prever o futuro, não por possuir qualquer dom profético, mas pela capacidade de cálculos das consequências das coisas que ocorrem. Esta segurança torna-o, num primeiro momento, insuportável para a mulher. Contudo, na segunda parte do romance, passada já bem dentro da grande guerra, quando Tietjens está em casa, depois de uma recuperação de um ferimento de guerra, no qual perdeu parte substancial da memória, de tal como modo que se obriga a ler a enciclopédia britânica, como modo de recuperação da informação perdida, o autor torna manifesto que, apesar de alimentar uma espécie de conspiração contra a honra do marido – e honra aqui tem a ver com as contas em ordem e um comportamento sexual exemplar –, Sylvia está apaixonada por Christopher, na verdade o único homem verdadeiramente substancial que conhece, ela que tem um lato conhecimento dos homens na intimidade.

É a desadequação entre o sentimento manifesto e o sentimento real de Sylvia ou, ainda de uma forma mais clara, entre a imagem que foi criada à volta de Christopher, de um homem devasso, valdevinos, com filhos ilegítimos, à beira da falência, por ser um gastador inveterado, coisa acreditada pelo próprio pai, e a sua realidade de homem moralmente imaculado, contido nas despesas, um cavalheiro em todos os sentidos da palavra. Assim como o ódio de Sylvia esconde uma intensa paixão pelo marido, também a má reputação mascara a verdade de alguém que vive segundo exigentes preceitos de rectidão, de tal modo que o amor que se acendeu entre ele e Valentina permanece por consumar. Entre a aparência e a realidade vai uma longa distância. A verdade é uma outra coisa que não aquilo que é manifesto. Ora, é a solidez, deste último tory, ancorada no passado, num romântico feudalismo, como notou Julian Barnes, que lhe permite, sem exaltações, viver num mundo marcado pela duplicidade, pela mentira, pela libertinagem e pela dissolução daqueles valores sólidos que fizeram da Inglaterra a primeira potência mundial e que se manifestavam inclusive na suavidade com que os comboios circulavam. É ainda essa solidez moral que leva Christopher a voltar para a frente de combate, enquanto facilmente poderia ficar em segurança numa repartição em Londres. Some Do Not significa, na prática, que nem todos são iguais, nem todos se dobram ao espírito do tempo. Por isso, o primeiro romance termina com a partida de Tietjens para França, para a frente de combate.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Dinis Machado, O que diz Molero

Publicado em 1977, O que diz Molero, romance de Dinis Machado, foi quase imediatamente, apetece dizer, um grande sucesso de bilheteira. Não apenas porque há na sua construção qualquer coisa de teatral, o que permitiu uma posterior adaptação à representação no palco, mas também porque há um ritmo cinematográfico exuberante, por vezes sufocante, uma sucessão de imagens vertiginosa, transformadas em texto, de onde os pontos finais estão ausentes durante largos excertos textuais, uma técnica que precipita o leitor a acompanhar a velocidade da produção imagística. Luís Pacheco refere “uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos, mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.” Por outro lado, Eduardo Lourenço sublinha estar-se perante o indício de novas relações entre a literatura contemporânea e uma nova cultura que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos decisivos. Tese, na verdade, bastante discutível, pois não são poucas as passagens textuais que ecoam temáticas que naqueles dias obsidiavam o mundo literário académico em Portugal.

O romance, como uma das suas marcas de modernidade, não apresenta um plot, mas não deixa de ser todo ele movido por uma intriga. Existem nele várias camadas diegéticas. Uma primeira camada é a conversa entre Austin e Mister Deluxe, e que o primeiro vai contando ao segundo, entrecortado por comentários de ambos, sobre o relatório de Molero, a segunda camada narrativa, referente a um rapaz nunca identificado pelo nome, sobre a vida deste, o que terá feito, dito, ouvido, as pessoas com que se terá relacionado, etc., uma terceira camada narrativa, na qual não apenas as palavras como as acções são textualidade. Apesar de não haver plot, o rapaz não deixa de ser um herói – ou, se se preferir, um anti-herói – de uma intriga em que a vida é tomada como um processo de descoberta existencial, uma procura sobre quem é, uma espécie de questionamento metafísico, que em momento algum encontra resposta, pois de princípio ao fim não lhe é dado um nome, nunca deixando de ser o rapaz. Há, contudo, nesta caracterização um excesso de informação sobre essa identidade, pois alia a pertença ao género masculino a uma adolescência – consignada, precisamente, na denominação o rapaz – nunca ultrapassada, já que é sempre desse modo que Molero o refere no relatório. Apesar das peripécias, das viagens e dos amores, ele nunca é o homem.

Alguma crítica refere estar-se perante a fragmentação da subjectividade, que o próprio texto, com a sua natureza fragmentária acentua, apesar de ter, no nível intermédio, um relatório, o que suporia uma coerência, seja jornalística ou detectivesca. O facto de nunca se perceber quem são, na verdade, Austin, Mister Deluxe e Molero, e o modo como é referido, nos diversos níveis narrativos, o rapaz acentuariam essa natureza fragmentária das identidades, que eventualmente se poderiam sobrepor. A questão, porém, é que mais que uma subjectividade fragmentária, se está perante uma subjectividade que, na verdade, nunca amadureceu, nunca entrou na idade adulta, nunca saiu da menoridade culpada. E isto será o mais notável, no aspecto da crítica cultural, que o romance de Dinis Machado torna manifesto. Apesar de uma hiperinflação cultural presente no texto. Serão poucos os lugares comuns do mundo cultural português dos anos setenta do século passado que não estejam referidos no romance e referenciados em o rapaz. Apesar disso, ele não deixa de ser o rapaz. Não se está perante a fragmentação pessoana do sujeito, tão pouco perante uma visão freudiana de um ego em negociação constante com um id ameaçador e um superego veiculador da ordem, mas de um eu eternamente adolescente.

A obra é uma máquina de produção mitológica e são esses mitos que impedem a transição de o rapaz para o homem. Está-se perante duas fontes mitológicas essenciais, as da pequena Lisboa e as da grande Lisboa. Por pequena Lisboa, denota-se o bairro popular. São os mitos localizados numa cultura específica, com os seus heróis e vilões, onde a vida exuberante se estrutura e ganha sentido. São os mitos que constituem o lastro de o rapaz. Por grande Lisboa, significa-se um certo meio cultural lisboeta dominante nos anos setenta, no pós-revolução, mas que viria já de antes. São, agora, os mitos das viagens, do cinema, da cultura, da filosofia, da literatura, do amor ou do sexo, para não falar das mitologias new age emergentes na parte final do livro, mas como se tudo se passasse numa dimensão onírica, mesmo quando se fazem viagens, se escrevem livros, etc. O jornalismo ou a literatura policial fazem a mediação que permite a fusão entre a pequena e a grande Lisboa, entre ambas as mitologias. A sensação que daí resulta, e que contamina o leitor, é que nunca nada é consumado realmente. Viaja-se como se não se viajasse, citam-se autores que não se compreenderam ou não se leram. Na verdade, um exercício de pura adolescência. As mitologias criadas por Dinis Machado, apesar de divertidas, não são meras diversões. São retratos impiedosos de uma certa pequenez – menoridade – envolvida no artifício da referência e da citação, mediadas pela cultura jornalística ou pela literatura policial.

O relatório de Molero, ao qual nunca se tem acesso, a não ser pelos comentários e diálogos entre Austin e Mister Deluxe, com a sua natureza fragmentária, é o relato irónico de um mundo cultural lisboeta que transformava a boémia e a referência superficial aos objectos culturais em voga num mito de alta cultura. O romance entretece uma analogia entre a sua estrutura romanesca e a situação desse mundo cultural da capital. Assim como Austin, Mister Deluxe e o próprio Molero, apesar da sua peregrinação investigativa, nunca conseguem chegar à essência de o rapaz, também esse mundo cultural e boémio lisboeta, apesar da frequência cinematográfica e da referenciação superlativa aos objectos culturais, nunca toca de forma séria nessa alta cultura, que diz admirar, mas que não passa de tema de conversa, entre dois copos, ou de técnica de engate, pois o desejo tem os seus imperativos e há quem só se dispa se for embalado por uma conversa de alto valor cultural. Os lugares-comuns em que o romance abunda são uma estratégia narrativa para tornar patente o irrisório, senão a impotência, dessa comunidade cultural que se acharia a vanguarda espiritual da nação. Na verdade, uma comunidade de velhos adolescentes, mergulhados na menoridade, de que são, eles próprios, culpados, mas parafrasear, mais uma vez, Kant. Um fogo-de-artifício para mostrar que, apesar da seriedade de Pombal, o Iluminismo nunca terá penetrado seriamente por aqui, para tornar manifesto que aqueles que parecem herdeiros desse século das Luzes são, na verdade e todos juntos, uma rapaziada. 

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Michel Houellebecq, Serotonina

Tornou-se um hábito surgir uma espécie de guerra cultural sempre que Michel Houellebecq publica um romance. Serotonina, de 2019, não foi excepção. Em muitas das recensões que se encontram disponíveis na internet parece haver uma maior preocupação em atacar ou defender o escritor do que enfrentar-se com a obra. Fica-se sempre com a suspeita que o que dinamiza os textos são aspectos ideológicos que se presume serem os do próprio autor. Há uma obsessão em identificar narrador e autor. Para além de um certo fogo-de-artifício com uso de expressões que infringem os ditames do denominado politicamente correcto, tais como afirmações misóginas, um elogio a Franco como criador do turismo de massas, embora claramente irónico, considerações xenófobas relativamente a ingleses, holandeses e japoneses, a consideração, pelo narrador, da possibilidade de assassinar uma criança para recuperação de uma amante, ou o ódio visceral à proibição de fumar, a obra sublinha, não muito sub-repticiamente, a tensão entre tradição e modernidade. É uma crítica rude dos valores cristalizados pelo Iluminismo.

Dois núcleos centrais do romance questionam a livre-escolha. Por um lado, na vida sexual; por outro, na vida económica. Em ambas, a liberdade de escolher conduz a um beco sem saída. Aquilo que está em jogo é sempre a tensão entre a existência regulada e a vida deixada ao livre-arbítrio dos indivíduos ou ao jogo livre das forças do mercado. De modo mais preciso, entre a menoridade e a maioridade, para usar o tema do ensaio de Kant sobre o Iluminismo. O que Houellebecq põe a nu é a incapacidade de os indivíduos gerirem a sua própria existência, quando libertos de tutores e entregues a si. O que se manifesta é a falência de cada um em fazer uso da sua razão para dirigir a existência. Camille representava para o narrador, Florent-Claude Labrouste, a mulher com que gostaria de casar, mas a sua liberdade de escolha, a quebra de um compromisso tácito – na verdade, de uma promessa não formulada – levou a que ela se desligasse dele. Na base, um caso de sexo, pouco mais que esporádico. Se se olhar a vida sexual das pessoas que rodeiam Labrouste, a sensação é sempre a mesma. A nossa liberdade sexual é impotente para gerar a felicidade e dar um fim à existência. Esta liberdade não passa de uma licença para suspender os contratos amorosos, o compromisso com o outro e com a vida. No romance, nota-se a nostalgia de um tempo em que o livre-arbítrio dos indivíduos não era sinónimo de licença nos costumes. Nostalgia de um tempo, onde a força das instituições – esses artifícios apolíneos – colmatava a fraqueza dos indivíduos perante os apelos e injunções de Diónisos. A abertura infinita das possibilidades, das possibilidades de busca de objectos para consumação do prazer sexual, é um mal, um gerador de equívocos e de vidas falhadas.

Por outros motivos, também os produtores de leite da Normandia estão em guerra com as instituições que, no lugar de superintenderem e regularem as relações económicas, procurando assegurar a rentabilidade do mundo rural, servem apenas para criar uma legislação que desregulamenta a vida económica, favorece o agro-negócio e entrega os agricultores a esse mar tenebroso do livre-comércio. O mercado acaba por ser visto, ainda que não de forma explícita, como um lugar onde o génio de Diónisos se compraz com a dança das bacantes. Labrouste que teve, do ponto de vista profissional, um papel que deveria proteger a especificidade do queijo da Normandia e, desse modo, a vida económica desses agricultores, descobriu que as intenções de Bruxelas e do governo são deixar morrer, um-a-um, esses homens que asseguravam uma certa tradição agrícola, mantinham viva a especificidade dos lugares e ligavam as comunidades ao fio histórico das gerações. A revolta dos produtores de leite normando não é mais do que a manifestação de uma impotência perante as forças dissolventes da globalização, com a sua natureza niilista.

Perante essas forças que actuam na vida privada e no mudo da economia, não há, na perspectiva do narrador, modo de se lhes opor com êxito. Ele próprio é um sintoma dessa impotência. Nascido numa família das classes médias-altas, com uma boa educação académica, a sua vida profissional não passou de um desastre. Nela não encontrou, a realização que o tempo da universidade lhe parecia prognosticar. A retórica sobre a boa formação como abertura de possibilidades existenciais para uma vida boa não passa de um engano. Os empregos modernos não trazem consigo uma possibilidade de auto-realização. São antes um dos múltiplos motores de alienação, do estranhamento a si mesmo, que estão em acção. A rasura do sentido para a existência conduz à fuga da realidade e à depressão. É este o destino do narrador e protagonista,

Quando Labrouste descobre que a sua namorada japonesa, filha de boas famílias, de quem já estava completamente farto, se entregava a orgias na sua ausência, que incluíam sexo com cães, e tendo a noção de que a sua vida profissional não o conduzia a lugar nenhum, decide desaparecer, perder-se no anonimato da grande cidade, sem comunicar a ninguém. Essa defecção, porém, não tem poder salvífico. Liberta o protagonista de factores que produzem um mal-estar contínuo, mas não fornece força regeneradora. O perigo de suicídio passa a acompanhá-lo. Salva-o o captorix, um medicamento à base de serotonina, um neurotransmissor que regula o humor. Como efeito secundário, porém, causa impotência. O dilema que enfrenta Labrouste é o complemento da reflexão sobre o carácter dissolvente da liberdade sexual. Perante ele, está a escolha entre a vida ou o sexo. Este dilema sobrecarrega a ligação da sexualidade à morte.

Esta é, na verdade, a grande protagonista do romance. Ela está omnipresente e desenha-se como o horizonte para o qual tudo tende, não como resultado de se ter vindo à vida, mas pelo caminho que se desenhou ao viver. Seja a vida mergulhada no prazer sexual, seja o destino dos homens que lutam contra as grandes instituições que os deveriam salvar e proteger, mas que se tornaram suas inimigas. Aymeric, um aristocrata e amigo de Labroust, suicida-se num protesto de agricultores, desencadeando distúrbios, entre a polícia e os manifestantes, com várias vítimas. A certa altura o narrador vê no assassínio de uma criança de quatro anos, filha de Camille, a possibilidade de recuperar o amor desta, ao tirar de cena o pequeno ser que concentra o amor da mãe. Em todo o lado, a morte é a sombra que reina e superintende a vida no mundo ocidental, de onde a promessa na vida eterna desapareceu da consciência dos indivíduos. Essa promessa era o princípio de esperança que orientava, nas sociedades estruturadas pré-modernas, a existência dos homens, dando-lhes um sentido para a vida e para a morte. A morte desfez-se da promessa numa outra vida e Houellebeccq compraz-se em tornar manifesto ao leitor o mundo em que apenas a morte é rainha. 

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ernst Jünger, Eumeswil

O romance Eumeswil foi publicado em 1977, tinha Ernst Jünger 82 anos. Pode ser visto como um repositório das principais crenças do autor em relação ao indivíduo, à sociedade ocidental, à política, ao estado do mundo. Contudo, o centro nevrálgico da obra é uma meditação romanesca sobre o destino de um espírito aristocrático num mundo que deprecia os aristoi (literalmente, os melhores em grego clássico) e vive para a satisfação dos desejos e o cuidado dos temores do demo. Qual será o comportamento possível, num ambiente político marcado pela democracia liberal, no qual as concepções de bem se privatizaram nas consciências, para acabarem soterradas na submissão à volubilidade do desejo, às pulsões inferiores, aos interesses materiais? Esta meditação é colocada, contudo, num tempo e num espaço exteriores à sociedade contemporânea em que Jünger escreveu, a República Federal Alemã, nascida da queda do nazismo e da secessão da República Democrática. O tempo é o de um futuro indeterminado, época posterior a uma catástrofe de que não são dados a conhecer os contornos, mas que produziu significativas reorganizações do mundo, se comparado com o do século passado, ou mesmo do actual. Também o espaço político, a cidade-estado de Eumeswil, não deixa de ser um território indeterminado para os conhecimentos actuais, apesar de situada no Norte de África. O romance apresenta uma tonalidade, embora moderada, de ficção científica ou de romance de antecipação, mesmo do ponto de vista tecnológico.

No centro da narrativa, encontra-se Martin Venator, um jovem historiador, proveniente de uma família de historiadores. Para além desta sua ocupação académica, Venator consegue o lugar de barman ou camareiro nocturno junto do Condor, o tirano que governa a cidade-estado. A estranha opção do historiador, aliás recomendada pelos seus mestres (o historiador Vigo, uma encarnação de Giambattista Vico, e o filósofo Bruno, outra reencarnação, agora de Giordano Bruno), tem como finalidade poder observar de perto o próprio poder. A ocupação de barman é uma espécie de trabalho de pesquisa, quase à maneira do método etnográfico utilizado na Antropologia. Uma descrição de uma pequena sociedade – isto é, do círculo restrito do poder. A sua aparente finalidade será a de conhecer o estilo de vida desse grupo e a sua cultura. Um trabalho de campo. Esta ocupação na esfera do poder foi sempre mal vista tanto pelo pai como pelo irmão, também eles historiadores, mas adversários políticos do tirano, adeptos daquilo que, no romance, é denominado como os tribunos. A vida política de Eumeswil balanceia entre tiranos e tribunos, percebendo-se que o tipo de regime muda fruto de golpes mais ou menos violentos.

As palavras usadas por Jünger não são menos equívocas do que o espaço e o tempo da narrativa. Venator reconhece no Condor não um déspota, não um ditador do século XX, mas um tirano, como Pisístrato, que figura nas listagens dos Sete Sábios. Ou, então, como os tiranos da tragédia clássica, talvez como Creonte da Antígona. O Condor não é um déspota iluminado, mas um tirano compassivo, que interfere o menos possível na vida privada dos indivíduos. Também a designação de tribunos, para os oficiantes do regime alternativo, contém diversas camadas semânticas. Neles, pode-se ouvir o eco dos tribunos da plebe, na antiga Roma, mas também o do orador público, marcado pela eloquência, enfim, o demagogo, ou o que hoje se costuma denominar por populista. Uma linha de interpretação plausível dos tribunos é vê-los como os políticos dos regimes democrático-liberais. Apesar do seu íntimo descomprometimento político, é clara a preferência de Martin Venator pelo regime do Condor, cujo comportamento é o de um aristocrata que, na perspectiva do narrador, é menos invasivo da vida das pessoas do que os políticos liberais que, pela trama da legislação e da demagogia, acabam por prender nas redes do poder as liberdades individuais.

Um dos temas do romance é o conflito com o pai. Não se trata do habitual conflito edipiano, em que o filho deseja a morte do pai para ficar com a mãe. Estamos perante uma inversão da narrativa freudiana. É o pai que quer a morte do filho e não tanto pelo desejo de assegurar a mulher – no caso, a amante – para si, mas porque um novo ser incomodava os seus interesses. Martin nasce contra a vontade paternal, que preferia que tivesse sido abortado. Este conflito com o pai é usado simbolicamente como denúncia do carácter mortal das opções liberais, da livre escolha. O pai, um adepto dos tribunos, não hesitou em querer suprimir uma vida nascente, o que não aconteceu apenas pela determinação da mãe. A forma como Martin se refere ao pai e ao irmão (na verdade, meio irmão, porque filho de mãe diferente) é sempre irónica. Apesar de não gostar nem de um nem de outro, nunca deixava de cumprir os seus deveres familiares, como se estes fossem fruto de uma missão, mas não de uma afecção. E isto é o que distingue um espírito aristocrático, o de Martin, de um espírito liberal, o do pai e do irmão.

Como pode um espírito aristocrático viver num mundo marcado pelo niilismo, numa cultura em que foi banida todo o valor da superação, de se tornar melhor ou, na perspectiva clássica, de exercitar a excelência? Martin reconhecia-se a si mesmo como um anarca. Uma interpretação possível da figura do anarca é vê-la como uma consumação do Único e a sua propriedade, de Max Stirner. Seria um equívoco ver a figura do anarca seja à luz do anarquista tradicional que pretende mudar o mundo, seja a dos libertários de direita que têm, hoje em dia, algum peso intelectual nos EUA. A política não o interessa, mas não desafia a autoridade. Reconhece que precisa dela, embora não acredite nela. O anarca segue os seus próprios interesses e tudo o que faz visa protegê-los. Contudo, esses interesses são meramente espirituais. Não confia na política, e a história, apesar de ser historiador, cansa-o com as suas eternas repetições. Há que sair dela.

Eumeswil é rodeada por dois estranhos mundos, o das catacumbas, onde se desenvolvem os prodígios da tecnologia, e o mundo da floresta, universo perigoso, habitado por seres mitológicos, o lugar da mais autêntica liberdade, aquela que, com o perigo sempre presente, representa um desafio à coragem e à superação de si. Ali está-se perante um mundo onde a lei civil e estado desapareceram. Resta uma outra lei, a natural. Com a aproximação de um novo golpe de estado e o retorno dos tribunos – isto é, uma nova transição à democracia e ao domínio da plebe – o Condor e a sua corte decidem fazer um passeio pela floresta, para o qual Venator é convidado, como uma espécie de historiador oficial. Dessa viagem não há retorno. São dados como mortos, mas isso tão pouco está confirmado pela presença de cadáveres. Ora, esta imersão na floresta é uma saída da história. O historiador sai do espaço histórico para se confrontar como uma outra lei. Qual o destino, nos tempos modernos, dos aristoi? Transformarem-se em anarcas, abandonarem as ilusões políticas e as peripécias da história, mergulharem na floresta em busca, por certo, das provas necessárias que os legitimem na pretensão aristocrática.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Italo Svevo, Senilidade

Publicado em 1898, o romance Senilidade, de Italo Svevo, é o segundo da sua vida de escritor. A publicação é feita em folhetins no jornal de Trieste L'Indipendente. Assim como o primeiro, Uma Vida, este é completamente ignorado pela crítica. De tal modo que o autor toma a decisão de abandonar as ilusões literárias. Só passados 25 anos, em 1923, volta a publicar um romance, o último, A Consciência de Zeno. Há diversos motivos para a indiferença original em relação aos primeiros romances de Svevo. Não seria um cultor exímio do italiano. Movia-se num ambiente linguístico marcado pelo triestino – um dialecto do véneto, uma língua românica, mas com consideráveis diferenças do italiano – e pelo alemão. Por outro lado, os seus romances tinham já uma inclinação marcadamente modernista, afastando-se das escolas realista e naturalista. O seu carácter inovador poderá ser também uma razão decisiva para o desinteresse com que foram acolhidos. O grande defensor de Svevo foi James Joyce, que o conheceu quando esteve em Trieste, onde lhe ensinou Inglês, e reconheceu naqueles romances o seu valor literário.

A personagem central da narrativa é Emilio Brentani, um escritor falhado, apesar de o seu primeiro, e único, romance ter sido bem acolhido e de lhe ter dado uma certa aura de intelectual e, com o passar dos anos, alguma autoridade nos meios cultos da cidade, pelos menos era isso o que ele imaginava. Tem 35 anos quando se passam os factos que compõem a narrativa. Não é propriamente um velho, embora a senilidade que está presente no título da obra se aplique ao seu comportamento amoroso. O romance explora a relação do eu, de Brentani, com a realidade, tanto através do conhecimento como da acção. Está-se perante a análise do processo de falência cognitiva e volitiva do sujeito. A Idade Moderna começa, no século XVII, com a afirmação do sujeito como fundamento do conhecimento, de um sujeito que procura as evidências como forma de evitar as ilusões e, desse modo, encontrar a segurança e a correcção na acção. Brentani é o contrário disto. Ilude-se sobre a realidade e age de forma desadequada nela.

Emilio, apesar das suas aspirações literárias, sempre adiadas, necessita de trabalhar para se sustentar, bem como à sua irmã Amalia. É escriturário numa companhia de seguros. Há neste facto duas curiosidades. Em primeiro lugar, parece ser uma premonição casual de duas grandes figuras da literatura europeia, que eram escriturários e, também, escritores. Franz Kafka e Fernando Pessoa. A segunda curiosidade, não é casual como a primeira. Brentani quer ser escritor, mas não passa de escriturário. Entre o ideal e a realidade há uma diferença assinalável, aquilo que ele é não passa de uma sombra daquilo que deseja. Esta tensão entre o ideal e o real envolve por completo a personagem. O caso é uma história de amor aparentemente trivial. Inexperiente das coisas amorosas, Emilio conhece a jovem Angiolina Zarri. Teria chegado a sua hora de conhecer a felicidade. Contudo, a rapariga é o contrário do pretendente. É exuberante e tem uma vida amorosa agitada, cheia de casos, muito longe do anjo que, a certa altura Emilio, quis ver nela.

A sua inexperiência condu-lo a comportar-se como alguém senil perante uma jovem amante, que o trai sem escrúpulos. A paixão amorosa conduziu o protagonista a um afastamento da sua irmã, de quem cuidava, e do seu principal amigo, o escultor Steffano Bali. Este, ao contrário de Brentani, não se ilude com a realidade e insiste para que Emilio não se deixe envolver, que se divirta, mas que não dê mais importância ao caso do que a de uma simples aventura, como aquelas em que ele se envolve. Svevo acaba por traçar dois tipos contrapostos de homem, nas figuras dos dois amigos. Steffano vivido, saudável, afirmativo, apesar de a sua carreira de escultor não ser particularmente sucedida, apreciador da vida, pouco dado a devaneios românticos. É o homem que na vive na realidade e a olha com uma mistura de cinismo e complacência. Emilio é inexperiente, pouco saudável, incapaz de uma verdadeira afirmação de si, temeroso e propenso, a meio da vida, a deixar-se envolver numa fantasia romântica, que tem por contrapartida o mergulho nas águas pantanosas do ciúme. O primeiro é o homem do real, pés na terra, o segundo é o do ideal, um subproduto da cultura romântica. Por outro lado, também no campo feminino encontramos a mesma diferença entre a saudável, exuberante e bela Angiolina e a doente, sofredora – apaixonou-se, também ela, pelo indiferente amigo do irmão – e feia Amalia. O que emerge da obra é que aqueles que sofrem são vítimas de si mesmos, da sua deficiente apreciação tanto de si, como da realidade em que vivem.

Dois traços da narrativa são indicadores de se estar já perante uma obra de ruptura. Por um lado, o foco não na realidade social ou numa pretensa descrição científica da vida social, mas na complexidade psicológica das personagens, no modo como apreendem a realidade e aquilo que as motiva nas trivialidades da vida quotidiana. Por outro, o papel do próprio narrador (narrador na terceira pessoa) que constrói as personagens e, ao mesmo tempo, vai intervindo na sua desconstrução, mostrando o pensamento e a acção de Emilio a partir do ponto de vista deste, mas acompanhando essa manifestação com subtis comentários que tornam patente a equivocidade em que o protagonista está mergulhado. Constrói um herói que não passa de um anti-herói. Na verdade, um zé ninguém atolado numa compreensão nebulosa e de pouca vitalidade da realidade. Por fim, saliente-se o modo como a temática do amor é usada. Não se trata de um romance de amor, de um amor falhado, mas de um romance que usa o amor como revelador daquilo que as personagens são. O amor não tem, na obra, um valor intrínseco, mas puramente instrumental. Steffano e Angiolina percebiam-no e eram saudáveis. Emilio e Amalia, cada um a seu modo, erigiam-no como um valor em si mesmo, o que os conduziu à derrota existencial, revelando a sua fraqueza vital e, também, moral. Só os fracos e doentes se apaixonam.