sábado, 26 de outubro de 2024

Philip K. Dick, Valis


Publicado em 1981, um ano antes da morte do autor, Valis, de Philip K. Dick, é um romance que combina interesses temáticos de múltiplas ordens, desde os que provêm da Filosofia até aos que se inscrevem na área da mística religiosa, passando pela literatura de ficção científica. Uma leitura possível, entre as inumeráveis que podem emergir do romance, pode fundar-se numa espécie de crítica da modernidade. Não na perspectiva de um tradicionalismo desejoso de um retorno aos tempos pré-modernos, mas na manifestação de uma subjectividade fragmentada e alienada. Se há um marco simbólico da emergência da modernidade, esse marco é o sujeito cartesiano que se afirma como fundamento do conhecimento, capaz de conhecer a realidade, desde que não deixe interferir o seu arbítrio no julgamento das crenças. Esse sujeito transparente é, no romance de Philip K. Dick, uma subjectividade tocada pela loucura, fragmentada, uma identidade cindida e perdida na realidade.

O optimismo epistemológico cartesiano dá lugar a uma desconfiança na possibilidade de conhecer a realidade. Esta deixa de ser transparente a uma razão autocontrolada, fundada em evidências garantidas pela veracidade divina, para poder ser o fruto de uma manipulação, talvez de um génio maligno, para retomar a retórica epistémica de Descartes. A razão não é suficiente para compreender um mundo manipulado. Aqui é perceptível a necessidade de o protagonista Horselover Fat, um alter-ego do autor, se aproximar da religião, na esperança de que a experiência a mística abra o caminho que a razão é impotente para abrir. É aqui que se insere o título do romance. VALIS é o acrónimo de Vast Active Living Intelligence Service, uma entidade, tida pelo protagonista como divina, que se manifestaria através de um raio rosa que o atinge e lhe abre o caminho para o questionamento da realidade e a desconstrução das representações correntes que dela fazem os seres humanos.

Contudo, naquilo que se poderia chamar uma visão pós-moderna, a mística do romance não se inscreve já na tradição cristã, mas está mais próxima de uma revivescência da gnose e de perspectivas gnósticas acerca do mundo, o que convoca a discussão sobre a origem do mal. Esta questão, a da origem do mal, liga-se ao problema da realidade. Esta é percebida pelo protagonista, a partir das suas experiências místicas, como informação. O universo seria, na sua essência, informação, uma perspectiva ontológica que combina teologia e ciência. É esta informação que pode ser interpretada ou manipulada por quem tenha o conhecimento adequado, podendo haver intérpretes de natureza benévola, como VALIS, ou outros cujas intenções sejam menos benevolentes. Isto permite integrar uma outra temática de índole filosófica na estrutura narrativa de VALIS. Trata-se do problema do livre-arbítrio. Por um lado, a percepção de que essa informação constitutiva da realidade é manipulada e a crença de que somos livres não passa de uma ilusão. Por outro lado, Horselover Fat empreende uma espécie de viagem em busca de uma realidade não manipulada, da realidade conformada por VALIS, de uma realidade onde seja genuinamente livre.

A natureza fragmentária da mente do protagonista, assim como a da própria narrativa, a pluralidade de referências e o recurso a jogos de linguagem de proveniência tão diversa como a ciência ou a teologia, tudo isto compõe uma estratégia narrativa que pretende reconstruir um mundo romanesco que dê conta da experiência existencial da América dos anos sessenta e setenta, onde uma explosão social e cultural tornou a paisagem humana complexa e de difícil decifração para subjectividades que perderam a capacidade de sustentar a certeza cartesiana. O romance de Philip K. Dick surge assim coma a reconstrução de uma experiência social e existencial de que faziam parte a guerra do Vietname, o desenvolvimento de um capitalismo avassalador, apesar da crise dos anos setenta, a explosão de experiências estéticas e artísticas e a proliferação de culturas alternativas à cultura americana dominante. Em VALIS, essa paisagem disfórica, de alguma forma, procura encontrar um sentido.

Se se percebe na leitura do romance a preocupação do autor com temas que actualmente se tornaram essenciais na vida das sociedades ocidentais, temas como o das teorias da conspiração e o das paranóias sociais, também se encontra, desse o início, uma visão crítica da contracultura que naquelas décadas de sessenta e setenta tomou conta das novas gerações, uma contracultura fundada no uso de alucinogénios como caminho de uma busca espiritual fora das exigências das estruturas do cristianismo ocidental. O suicídio de Gloria, uma amiga do protagonista, é o ponto de partida para essa crítica de uma visão do mundo na qual a juventude norte-americana tinha embarcado e que arrastou atrás dela também partes substanciais da juventude europeia. Entre as muitas coisas paradoxais que se manifestam em VALIS, encontra-se essa crítica da contracultura norte-americana num dos produtos intelectuais mais emblemáticos dessa contracultura, o próprio romance VALIS.

sábado, 12 de outubro de 2024

Eduardo de Noronha, O Conde de Villamediana


Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa, bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das suas obras romanescas.

O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país.  Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo, que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica, tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.

Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa, explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.

Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição, de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social, ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade, seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado. Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos tempos.

Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o, recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira, a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape, a paixão erótica e o amor espiritual.

A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.

domingo, 29 de setembro de 2024

Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar

Publicado, no Japão, em 1963, o romance O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, insere-se na cruzada do autor, Yukio Mishima, contra o Japão moderno nascido da derrota na segunda Guerra Mundial e da ocupação do país pelas tropas aliadas, encabeçadas pelas dos Estados Unidos, ocupação que durou entre a rendição dos japoneses em 1945 e 1952. Essa rendição e essa ocupação militar foram, para o Japão, muito mais do que um acontecimento político e militar. Representaram a transição do país de um mundo tradicional, estruturado em torno do Imperador e dos valores da aristocracia guerreira, para o mundo moderno, onde esses valores aristocráticos do heroísmo e da honra são substituídos pelos valores burgueses do mundo dos negócios e do conformismo social. É este novo mundo – o qual, aos olhos dos ocidentais, mas também de grande parte dos japoneses, teve um êxito assinalável, transformando o Japão numa potência económica de primeira grandeza – que Mishima descreve e julga cruamente, apesar de uma linguagem poética de grande riqueza, no romance de 1963.

O enredo gira em torno de três personagens. Noboru, um adolescente de 13 anos, Fusako, uma jovem viúva e mãe de Noboru, e Ryuji, um marinheiro mercante com quem Fusako estabelece uma relação amorosa. Estas personagens não são meras representações singulares, mas funcionam, na economia do romance de Mishima, como autênticos arquétipos de atitudes sociais presentes na sociedade japonesa da época. Ryuji representa o homem com valores tradicionais que, até certa altura, aspira a um grande feito heróico, no qual encontraria o sentido da sua existência de homem solitário que atravessa os mares. Fusako, dona de uma boutique de luxo, herdada do marido, representa a mulher moderna, forte e independente, um modelo do espírito burguês triunfante, ao mesmo tempo competente nos negócios e tocada pela sentimentalidade afectiva, também ela marcadamente burguesa. Em Noboru, por seu turno, simboliza-se uma nova geração brilhante e cruel, destituída da vulnerabilidade do sentimento e cultora de uma visão distorcida da realidade. Assume os valores tradicionais do heroísmo, mas já sem o suporte da sociedade tradicional que lhes dava sentido, o que a conduz a uma visão niilista do mundo.

O estatuto de Ryuji é marcado por uma equivocidade inicial que será o fundamento do desenvolvimento da personagem ao longo do romance. Ryuji, ele que é um homem do mar, habituado à solidão das viagens marítimas, aspira a um grande gesto, a um acto heróico que dê sentido à sua existência. Contudo, a oportunidade desse gesto decisivo nunca lhe aparece disponível no horizonte existencial. Na verdade, ele não é um marinheiro militar em tempo de guerra, onde poderia haver lugar para a coragem e a heroicidade, mas um marinheiro mercante, um agente do mundo burguês cuja função é o prosaico transporte de mercadorias e não a realização de qualquer acto que o sublinhe como homem de honra e o nobilite aos seus próprios olhos. O encontro com Fusako funciona como um revelador da inadequação do seu projecto existencial. Nasce em si o desejo de trocar a vida no mar pela vida mais segura em terra, a integração numa família burguesa. Esta transição de um espírito heróico para um espírito conformista e burguês não deve ser lido apenas como uma metamorfose subjectiva de Ryuji, mas como o sintoma de que esse mundo da honra e da glória fundada na heroicidade já não existia. A frustração de Ryuji com o seu destino e a desistência da heroicidade é o resultado de uma transformação na ordem social, marcada pela decadência e morte dos valores aristocráticos e a vitória, dinamizada pela presença americana, dos valores burgueses, que são também, aos olhos de Yukio Mishima, valores femininos.

Fusako, a bela viúva, é aquela que vai dinamizar no marinheiro a tomada de consciência da real situação em que vive. A atracção que ela sobre ele exerce é também o apelo que a terra, enquanto símbolo de uma vida tranquila e sólida, lhe começa a dirigir. Ela é o símbolo de uma nova sociedade. Independente e cheia de sucesso profissional, mas também uma mulher em busca da dimensão afectiva, onde os sentimentos são reconhecidos e precisam de espaço existencial para se manifestarem. Esta dupla vertente de Fusako – a competência empresarial e a sentimentalidade feminina ou uma certa vulnerabilidade emocional – são também um retrato, na perspectiva tradicionalista de Mishima, do mundo burguês vitorioso no Japão. Fusako, também ela, não é apenas o retrato de uma mulher singular, mas a radiografia da sociedade burguesa do pós-guerra. Ela é a manifestação plena dos novos valores, os quais, depreende-se da leitura do romance, representam uma queda. Do Japão heróico, da sociedade onde o risco de vida e o sentido da honra dão uma orientação pelo menos à elite aristocrática, passa-se a uma sociedade que procura a estabilidade sempre necessária ao mundo dos negócios.

A personagem central do romance é, contudo, Noboru, o filho de Fusako. Ele, juntamente com os seus amigos, representa a nova geração que não se reconhece no mundo burguês e sentimental de Fusako e já não possui o respaldo de uma tradição heróica que lhe dê uma orientação. Noboru e os seus amigos são retratados, do ponto de vista intelectual, com extremamente precoces, mas emocionalmente frios, destituídos de qualquer tipo de sentimentalidade convencional, capazes da mais pura crueldade. Noboru e os amigos representam os velhos valores, mas sem o espaço onde estes poderiam ser exercidos, o que os torna violentos, com uma enorme vontade de poder e controlo dos outros. A princípio Noboru entusiasma-se com a presença do marinheiro, vê nele o homem autêntico que vive no mar, o símbolo de uma liberdade absoluta e dos grandes perigos. No entanto, a relação afectiva de Ryuji com a sua mãe, assim como a equação de deixar a vida no mar e trocá-la por uma vida estável e de conforto, invertem a visão de Noboru sobre o marinheiro. É visto, tanto por ele como pelos seus amigos, como um traidor que deve ser punido com a pena que espera todos os traidores.

Yukio Mishima serve-se de uma prosa poética com grande poder evocativo para tomar posição sobre o mundo em que vive. Um mundo onde se dá uma desprezível vitória do feminino – e é assim que Norobu vê a mãe, como alguém desprezível por ceder à dimensão sentimental – sobre um outro mundo fundado nos valores aristocráticos da honra e do heroísmo. O pior e o mais digno de punição é aquele que pertencendo à velha ordem cede à nova e se acomoda nela, como é o caso do marinheiro. Aqueles que conhecem os valores tradicionais e que um dia aspiraram à honra dos grandes feitos e agora se acomodam são traidores. Mishima, apesar desta visão crítica do novo Japão, não alimenta, no romance, qualquer expectativa de um retorno. A nova geração, mesmo que tocada pelo desprezo da moral convencional e do estilo de vida burguês, centra-se numa visão distorcida da realidade e da própria tradição. Almeja uma liberdade absoluta, assente na pura crueldade e na ausência de quaisquer outros valores, que não conduzirá a mais nada do que a uma violência sem sentido.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Julien Green, Moïra


Julien Green (1900-1998) foi um escritor norte-americano de expressão francesa. Converteu-se em 1916, após a morte da mãe, de orientação protestante, ao catolicismo. A sua temática romanesca está ligada às grandes questões colocadas pela fé. O romance de 1950 Moïra não foge a esse interesse central do autor. O protagonista, Joseph Day, é um jovem recém-entrado na Universidade, vindo de um mundo rural, educado num estrito espírito protestante, onde o pecado, a culpa e a necessidade de redenção têm um papel central na existência do crente. A obra é dinamizada pelo conflito entre natureza e fé. Deslocado do ambiente protegido da ruralidade e da obediência quase cega à tradição, vê-se confrontado com um ambiente que está muito longe daquele onde se sente em casa, um ambiente em que os valores religiosos parecem ter pouco sentido. É neste universo estranho e adverso que o conflito entre a natureza, a sua natureza, e a fé, aquela que o move e dá sentido à sua existência, se desencadeia.

A estratégia narrativa de Green é marcada por uma deslocação da personagem central, Joseph Day, de um mundo para outro. É nesse outro mundo, muito diferente daquele onde viveu a infância e adolescência, no qual recebeu os valores que o orientam e formou as suas crenças religiosas e sociais, que aquilo que ele é vai ser posto à prova. Na economia romanesca, a universidade, a grande cidade e mesmo a casa onde se vai hospedar, e onde se hospedam outros estudantes, são espaços que representam, cada um à sua maneira, provações existenciais, partes de um universo onde ele se sente como um estranho, pois nesses lugares a cultura, os valores e as crenças são completamente diferentes dos seus. Há, na construção romanesca de Green, um exercício experimental que tem por finalidade descobrir como é que um jovem protestante, ancorado naquilo a que hoje se chamaria fundamentalismo religioso, se comporta num espaço completamente distinto daquele de onde veio e no qual adquiriu e consolidou a fé. Na verdade, é um exercício onde um Green maduro, na casa dos cinquenta anos, interroga o que poderia ter sido caso permanecesse protestante.

Como se irá comportar a natureza de Joseph Day quando deslocada do espaço onde a fé se gerou e que, pela própria estrutura social, a protegia? Esta natureza é, claro, o corpo e neste, para além e acima da força física, o sexo. É a sexualidade a mola dinamizadora da acção narrativa. Melhor é o conflito entre a libido, as pulsões sexuais, e um desejo de pureza sentido como caminho de redenção, de conquista do paraíso, de salvação da alma. O romance organiza-se através de um conflito entre dois desejos, o que impele o corpo para outro corpo e o que impele a alma para outra dimensão. O conflito nasce da incompatibilidade que as grandes religiões monoteístas determinam entre a consumação de ambos os desejos. O desejo de imortalidade impõe a repressão do desejo sexual. A consumação do desejo sexual arrasta a perdição da imortalidade.

O romance apresenta um conjunto de conflitos e alianças secundários, cuja finalidade é testar e preparar Joseph Day para o encontro com o destino. E o destino é Moïra, a filha adoptiva da senhoria, que se encontra, do ponto de vista religioso e moral, num lado completamente oposto ao de Day. Julien Green tece, com esta personagem, uma complexa trama de simbolizações que se sobrepõem e intensificam. Moïra é, como o autor referiu, um nome irlandês, o equivalente a Maria. Contudo, no romance, Moïra é uma Eva tentadora. Enquanto na tradição do cristianismo Maria é uma segunda Eva, mas uma Eva reparadora, a Maria (Moïra) do romance representa uma regressão a essa Eva primitiva que tentou Adão e com ele se perdeu. A ambiguidade da personagem é interessante, pois era possível que essa Moïra que tenta Joseph Day e o perde, perdendo-se com ele, fosse também ela reparadora, integrando-o num mundo estranho, cujas regras ele desconhecia e temia. Contudo, a ambiguidade de Moïra é mais ampla, pois, na mitologia grega, Moïra representava o destino, representava uma lei que nem os homens nem os deuses podiam transgredir e aos se deveriam submeter. E Moïra foi, de facto, o destino de Day.

No entanto, essa Moïra que o tenta, que lhe desperta a libido, que o ameaça arrastar para a perdição, não é mais do que uma projecção da sua própria natureza reprimida e recalcada na sexualidade. Nessa rapariga que o atrai condensa-se aquilo que ele é, um homem dotado de sexualidade e que, na verdade, não é capaz de compatibilizar a violência da libido desencadeada pelo objecto sexual e a violência repressiva trazida pela fé, pelos códigos de conduta que, segundo a instituição religiosa, asseguram o paraíso eterno. Como acontece numa guerra civil, também o resultado do conflito interior que se acendeu em Joseph Day, ao ser deslocado do seu espaço natural para um espaço adverso, é a destruição que, curiosamente, como também acontece após tremendas guerras civis, pode abrir ainda um caminho para uma redenção, uma outra redenção, um outro destino.

sábado, 7 de setembro de 2024

Irène Némirovsky, A Presa


Irène Némirorovsky (1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social. Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito cartesiano.

Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.

Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa.  É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.

O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.

A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.

O título do romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa. Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é, cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo, em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ursula K. Le Guin, Do outro lado do sonho

 

Publicado originalmente em 1971, nos Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de 2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.

As alterações da realidade estavam longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo, em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano. Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente, caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os seus sonhos representam.

A preocupação de Orr com o seu poder de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos passados.

O outro lado do romance de Ursula Le Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber, psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam. Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador, para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e social.

O romance não representa um conflito entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro radicalmente diferente.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Knut Hamsun, À Porta do Reino (Ved Rigets Port)

 

Não traduzida em português Ved Rigets Port (À Porta do Reino) é a primeira peça de uma trilogia centrada na figura de Ivar Kareno, um jovem filósofo que pretende manter-se fiel à radicalidade do seu pensamento, influenciado por Nietzsche, e em confronto com a filosofia de origem britânica. As outras duas peças são Livets Spill (O Jogo da Vida) e Aftenmde (Crepúsculo). Existe uma edição francesa, da editora Actes du Sud, que reúne as três peças. Em À Porta do Reino, a tensão dramática gira em torno do tema da fidelidade. Esta é tratada em diversos níveis, desde a fidelidade matrimonial, o nível mais baixo e menos relevante na peça, a fidelidade entre amigos e a fidelidade a si mesmo, o tema central que fundamenta os outros níveis de fidelidade.

A fidelidade a si mesmo, contudo, é a fidelidade às suas ideias, à visão que se tem do mundo. Ivar Kareno, como acontece, não poucas vezes no mundo do pensamento, pretende representar uma ruptura com aquilo que está estabelecido. Vive centrado na produção e publicação de uma obra que, imagina, abrirá novos horizontes, obra que põe em causa o pensamento e a influência do professor Gylling, um reputado e respeitado filósofo e professor. Casado com Elina, Ivar Kareno, tem o casamento à beira da ruptura. Por um lado, a incapacidade de sustentar a família, pois a sua obra é recusada pelo editor, que não está disponível para publicar uma obra radical e um ataque a Gylling. Por outro, pela pouca atenção que dá à sua mulher, a qual se sente abandonada, pela excessiva preocupação de Ivar com a obra. A fidelidade a si é uma fidelidade, de natureza fundamentalista, às suas ideias radicais, que nem o perigar do casamento, nem a bancarrota do casal, o levam a pôr em causa, em amenizar a crueza do pensamento de uma juventude ainda imatura, como sugere o Gylling.

Essa intransigência com as ideias emerge numa outra situação. Carter Jerven, um amigo de Kareno e que com ele partilha uma nova visão do mundo, acabado de se doutorar, empresta-lhes dinheiro para este evitar a bancarrota de Ivar a penhora dos seus bens. Este acaba por aceitar. Contudo, ao descobrir que a tese de doutoramento do amigo trai os princípios em que ambos acreditavam, ao perceber que, de algum modo, Jerven cedeu para encontrar um caminho para a sua carreira, devolve o dinheiro. Esta devolução e as razões apresentadas têm um efeito inesperado na vida de Jerven. A noiva, perante a recusa de Kareno em aceitar o dinheiro, rompe a relação. Jerven tenta, em nome da amizade, que Kareno aceite a sua ajuda, pois isso salvaria a sua ligação Mademoiselle Hovind, a noiva. Contudo, Ivar Kareno mantém-se intransigente. As suas ideias valem mais do que a amizade, ainda por cima a amizade de um homem que traiu os seus ideais de juventude.

Também o casamento de Ivar e Elian entra em crise. A situação financeira e, fundamentalmente, a pouca atenção que Ivar dá à mulher abrem o caminho para que Endre Bondensen, um jornalista influente e sedutor, atraia Elina, já desesperada pelas suas tentativas infrutíferas para levar a que o marido permita uma solução para a degradada situação financeira em que vivem, para que ele aceite a ajuda dos pais dela ou para que siga os conselhos do professor Gylling, os quais levariam à publicação da obra de Kareno pelo editor. A intransigência do jovem filósofo é total, e mesmo a ameaça de infidelidade da mulher é inútil para o fazer mudar de atitude. O casamento pode desfazer-se, o importante, porém, é que o autor seja fiel a si, isto é, às suas ideias e à sua radicalidade.

A peça de Hamsun explora uma ambiguidade na ideia de fidelidade a si. Ivar Kareno é, na verdade, fiel a si mesmo ou fiel a uma visão do mundo, a um conjunto de ideias e a um projecto de as impor destruindo outras visões do mundo? Será essa fidelidade uma relação autêntica consigo mesmo ou não passará de uma intransigência motivada por um conjunto de ideias abstractas, fruto de um ego inflacionado? Não é claro, nesta primeira peça, o estatuto de Kareno. Será um herói ou um bufão imaturo e incapaz de compreender o mundo? As relações concretas de amizade e de amor são trocadas pela fidelidade a essas ideias. Os outros – no caso, a mulher Elina e o amigo Carter Jerven – têm, claramente, menos valor, aos olhos do candidato a filósofo, do que essas ideias, pelas quais está disposto a enfrentar a pobreza e o abandono. O caminho de Ivar Kareno está em aberto e isso será explorado nas outras duas peças da trilogia.