quarta-feira, 28 de outubro de 2020

José Régio, A Velha Casa – (II) As Raízes do Futuro

O segundo romance do ciclo A Velha Casa, As Raízes do Futuro (1947), medeia entre o retorno de Lelito (Manuel Trigueiros, o segundo de quatro filhos do casal Maria Teresa e Martinho Trigueiros) e a morte de madrinha Libânia, a matriarca da família e a proprietária efectiva da casa. Se Uma Gota de Sangue não dava qualquer pista que permitisse compreender a época em que decorria a acção romanesca, o segundo informa que se estava em 1920. Esta indicação não é despicienda para a compreensão da trama narrativa. Está-se no início dos chamados loucos anos 20. Não é que numa aldeia rural, Azurara, do concelho de Vila do Conde haja referência existencial ao modo de vida que a expressão consagra, mas de uma maneira ou de outra o Zeitgeist haveria de encontrar maneira de ali se reflectir, ainda que de forma imperceptível para os próprios habitantes.

A casa não é propriamente o edificado, mas antes a teia de relações sociais, familiares e afectivas que nela se entretecem. Não é que partes da casa não tenham, por si mesmas, um valor próprio na narrativa. O sótão ou o quarto da madrinha Libânia, mas não é o aspecto arquitectónico que é central. A situação é curiosamente ambígua. Uma casa, entendida do ponto de vista social e na época em que a narrativa decorre, tem por referência o nome e a pessoa de um homem. A velha casa, todavia, centra-se na figura de Libânia, uma solteirona, tia de Martinho e tia-avó dos filhos deste. Ela é o centro da casa, é para ela que se voltam os olhares e as expectativas, embora seja Martinho o gestor das propriedades da tia, assim como das suas. A família de Martinho é a presuntiva herdeira, embora a relação de veneração que todos, naquela casa, têm pela matriarca esteja muito para além do mero interesse. Martinho é um gestor rigoroso, um homem dos antigos, o representante de uma tradição de honradez e de fidelidade piedosa para com os valores do passado, onde se incluem os valores da religião em que todos foram criados.

A fortuna de Libânia resultou de uma herança de um irmão que, perante a pobreza e a dificuldade dos tempos, emigrou para o Brasil. De certa maneira, o romance de Régio ainda é um reflexo da saga dos brasileiros, isto é, dos portugueses que foram para o Brasil em busca de aventura e fortuna. Esse brasileiro enriqueceu, mas não tinha descendentes. Entre os inúmeros irmãos escolheu Libânia como herdeira e, de certa forma, tutora discreta das famílias dos outros irmãos, que tinham perante ela a necessidade de estabelecer relações cordiais e, por isso, de disfarçar a inveja e o azedume causados pela protecção ao sobrinho Martinho. Se Libânia é o centro vivo da família, o brasileiro é o espiritual. Também neste aspecto Régio não deixa de criar uma ambiguidade. Em cada aniversário da morte do emigrante, são rezadas três missas, cada uma por um padre da família. No entanto, o leitor percebe que o brasileiro talvez não fosse muito católico e que o seu compromisso seria com a Maçonaria, a qual surge como uma sombra ténue na obra.

Este segundo romance acompanha a doença e recuperação de Lelito, mas também esboça o que poderá ser o futuro da família. Há uma grande tensão entre a tradição e as novas gerações. Não apenas Lelito desobedece aos imperativos paternos com a sua fuga do colégio no Porto, como o irmão mais velho, já engenheiro, se afastou de casa, pretextando a continuação da formação no estrangeiro, encontrando desculpas para adiar continuamente o seu retorno. O ramo masculino procura o seu próprio caminho. Lelito preparando-se para a Universidade, incendiado por interesses estéticos e filosóficos que estão muito para além daquilo que lhe poderá proporcionar a tradição familiar. João ter-se-á afastado decisivamente dos valores da casa, apesar da relação afectiva que mantém com os que dela fazem parte. Enquanto estudante em Lisboa, não deixou de levantar, na aldeia, suspeitas de interesse pela Maçonaria e por todo uma cultura que estava longe de se coadunar com o velho catolicismo do mundo rural. Estava-se em plena primeira República. Mais tarde, o narrador deixa a suspeita de que será o anarquismo e o combate social em nome dos desfavorecidos que movem João e o afastam de casa. Também as raparigas, mais novas que os rapazes, trazem nelas um enorme potencial para fazer explodir o apego à tradição e à venerabilidade dos velhos valores. A mais nova, Angelina, parece tocada por um fervor místico, o qual é intensificado pela descoberto de um caderno de uma tia que morreu louca, ou assim é contado, caderno esse que sugere uma intensa vida espiritual, marcada por experiências que ultrapassam em muito a mera devoção beata e convencional. Por fim, Maria Clara, que começa a tornar-se mulher tomou-se de amores por um desigual. Seja qual for a perspectiva, os valores da tradição que animavam a alma da velha casa encontram-se perante um desafio trazido pela nova geração. Seja como for, a casa, a velha casa, representa as raízes dessa nova geração. É ela que a segura e a alimenta, que a abre para o futuro.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Invierno

A Sonata de Invierno (1905) termina o ciclo de quatro pequenos romances dedicados às memórias amorosas do marquês de Bradomín, talvez o mais admirável dos Don Juan, pois, segundo uma tia, era feio, católico e sentimental. A personagem de Bradomín permitiu, principalmente neste último romance, a Valle-Inclán fazer uma exploração romanesca sobre o carlismo, movimento político antiliberal, defensor do Antigo Regime e oposto tanto aos republicanos como aos monárquicos constitucionalistas. O movimento organizou-se em torno de Carlos VII. Xavier Bradomín, nesta Sonata, está na cidade de Estella, em Navarra, onde se encontra a corte do pretendente ao trono de Espanha, aquando de mais um conflito entre constitucionalistas e absolutistas.

As Sonatas, no seu conjunto, são um autêntico exercício de desconstrução. A estratégia levada a efeito por Valle-Inclán reside no dissimulado contraste entre aquilo que a personagem do Marquês proclama e o modo como é reconhecido pelas outras personagens, por um lado, e, por outro, o que o desenrolar da acção romanesca nos mostra. A estratégia é subtil por que foge ao modelo da demonstração. Aquilo que é afirmado pelo Marquês e pela envolvência é que estamos perante um Don Juan, um católico e um tradicionalista fiel a Carlos VII. O que acontece é que os seus actos e, muitas vezes, as próprias opiniões em vez de confirmarem a tese, acabam por contradizer tanto a sua natureza donjuanesca, como o seu catolicismo e o seu carlismo. O autor constrói a personagem do marquês a partir da tensão entre um ideal, dado pelas três características referidas, e uma existência que, apesar daquilo que o discurso sublinha e engradece, não tem a potência para realizar esse ideal. O glorioso marquês é, a todos os títulos, um falhado.

As aventuras amorosas, quase todas, são inconsequentes ou, mesmo se chegam à consumação sexual, há nelas mais um rasto de derrota do que a afirmação de um D. Juan coleccionador de vítimas, que abandona e esquece. Na Sonata de Inverno, apesar de uma noite fogosa com uma antiga amante aquando da sua chegada à corte de Carlos VII, os seus dois objectivos eróticos – evitar que essa amante opte pelo marido em detrimento dele ou o consumar da sedução de uma jovem educanda num convento – saldam-se da mesma maneira, com um beijo apenas, na verdade um beijo de despedida. Esta natureza equívoca do grande conquistador desenha-se em todas as outras Sonatas, de forma mais acentuada nas de Primavera e de Outono. O donjuanismo é, na verdade, um elemento ideológico e não uma forma de agir ou um modo de existência. Esta visão de Valle-Inclán da figura de D. Juan é uma das mais interessantes, pois desmonta o mito – reduzindo-o a mera ideologia, no sentido marxiano de imagem invertida da realidade – através de um processo que, um leitor ingénuo, acreditará que o reforça.

Em qualquer das Sonatas o apregoado catolicismo de Bradomín choca com a sua aura erótica, mesmo que frustrada. Apesar de ser uma espécie de D. Juan anti-D. Juan, o marquês não deixa de se envolver numa ambiência sensual, na qual mergulha a generalidade dos contactos com o feminino. Os casos consumados ou não com mulheres casadas conflituam com um dos mandamentos que regem a moralidade católica, o de não cobiçar a mulher do próximo. No entanto, o autor é um modernista e como tal não deixa de ser tentado a desafiar as convenções e as próprias convenções religiosas. Tanto na Sonata de Primavera como na Sonata de Inverno o marquês seduz, embora sem consumação sexual, duas candidatas aos votos religiosos. No caso da irmã Maximina, na Sonata de Inverno, há que juntar um outro ingrediente. Há a suspeita de que ela seria filha bastarda do próprio marquês, feia como ele. Desrespeito pela sacralidade do matrimónio, tentativa de destruição através da sedução de vocações religiosas e indiferença perante a possibilidade de incesto, casos que não geram nele nenhum traço de arrependimento, dão a medida da natureza meramente ideológica do catolicismo de Xavier Bradomín.

Resta o seu tradicionalismo, a sua fidelidade a uma aristocracia medieval e à glória antiga de Espanha. Já na Sonata de Verão, passada no México, a revivescência da glória imperial de Espanha, à qual o carlismo se declarava fiel contra a visão dos liberais, é atravessada por uma funda ironia. Na Sonata de Inverno, toda ela perpassada por acontecimentos da história política de Espanha da época em que decorre a acção romanesca, vemos o marquês próximo da Corte, a sua intimidade com Carlos VII, o risco que corre pela causa e até a perda de um braço num recontro com as forças militares inimigas. É aqui que, ao contrário do que tinha acontecido até aí, o discurso vai desmentir a acção. O que será o carlismo e a causa absolutista para o marquês, ele que combate e dá um braço pela causa de Carlos VII? Oiçamo-lo. “Eu achei sempre mais bela a majestade caída que sentada num trono, e fui defensor da tradição por estética. O carlismo tem para mim o encanto solene das grandes catedrais, e já nos tempos da guerra ter-me-ia contentado que o declarassem monumento nacional. Bem posso dizer, sem jactância, que como eu pensava o Senhor.”

Quase no fim da obra, Valle-Inclán deixa a chave decisiva para compreender a personagem Xavier Bradomín, esse falhado D. Juan, falhado católico e falhado carlista. “Eu não aspiro a ensinar, mas a divertir. Toda a minha doutrina está numa só frase: Viva a bagatela! Para mim, ter aprendido a sorrir, é a maior conquista da Humanidade.” A equivocidade do marquês não o aproxima da personagem de D. Juan, mas de D. Quixote. Bradomín é um Quixote dos tempos modernos, um esteta que se diverte com aquilo que finge ser, que ri das suas crenças e da sua falência existencial. 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

José Régio, A Velha Casa – (I) Uma Gota de Sangue

Na obra ficcional de José Régio (1901-1969), A Velha Casa, um ciclo de cinco romances, publicado entre 1945 e 1966, é o ponto mais elevado, o confronto decisivo do escritor, em plena maturidade, com a narrativa de grandes dimensões. Uma Gota de Sangue (1945), o primeiro romance do ciclo, não explora directamente o espaço da velha casa de família da personagem principal, Manuel Trigueiros, quase sempre referido por Lelito, em Azurara (Vila do Conde). Nesta obra inicial, o espaço da casa é mitificado e idealizado pela distância a que Lelito dela se encontra. Ao espaço mítico da origem, com o seu mundo íntimo, é contraposto o espaço desencantado, profano e opressivo do Colégio Familiar, na cidade do Porto, com as suas regras impessoais e os seus poderes, uns de direito e outros de facto.

Lelito fora ali parar como semi-interno. Residia no colégio, mas frequentava o liceu. Estaria a preparar o último ciclo dos liceus para entrar na Universidade. Desde o primeiro momento que a sua atitude contemplativa e de inclinação intelectual entra em confronto não apenas com muitos dos colegas, mas também com alguns dos adultos, entre eles um prefeito poderoso e ameaçador e o próprio director da instituição. A personagem é confrontada com um espaço e um tempo racionalizados, distribuídos segundo regras explícitas, cuja violação poderia acarretar sanções tanto da autoridade colegial como dos próprios colegas. Os espaços dos recreios, divididos escrupulosamente segundo níveis etários, bem como os das salas de estudo, do refeitório e do dormitório obedeciam uma ordem quase militar, que os despia de qualquer encanto para alguém que trazia consigo o peso da imagem idealizada do lugar de origem.

É neste sítio ominoso que Lelito se vai descobrir no confronto com os colegas e mesmo com os prefeitos. Naquela sociedade fechada, as relações organizam-se em torno de grupos, com os seus cabecilhas, e as rivalidades habituais entre bandos juvenis. Está longe de ser o melhor sítio para personagens singulares, meditantes, pouco interessadas nas brincadeiras mais ou menos inocentes a que a massa dos alunos, mesmo os mais velhos, se entregavam. Este é um dos traços mais marcantes do romance, o confronto entre um self em busca de si mesmo, da sua singularidade e a massa indiferenciada do nós comandada por pequenos chefes, aprendizes de tiranetes. Todo o romance é atravessado por este conflito entre o eu e o nós, entre a singularização do espírito e a massa anónima dos corpos, com a alarvidade dos seus desejos.

Neste espaço concentracionário, onde apenas existem membros do sexo masculino, a libido não se entrega a um prolongado sono. Régio não deixa de enfrentar romanescamente a suspeita da existência de uma homossexualidade mais ou menos difusa neste tipo de organização escolar. É com ela também que Lelito, sendo-lhe estranha, se confronta, num jogo violento e que, de forma enviesada, acabará por determinar não apenas o seu estatuto perante os colegas, os prefeitos e o próprio director, como acabará por decidir a sua relação com o colégio, a cujas regras implícitas, com o seu cortejo de servidões e derrotas, nunca se adequará. É também desse episódio de violência desencadeado por uma tentativa de sedução que ele descobre os limites do que é possível falar ou não com o pai.

Se o romance Uma Gota de Sangue é marcado pelo conflito entre dois espaços, não o é menos pela questão da família. Não por acaso, a instituição escolar onde Lelito se encontra tem o nome de Colégio Familiar. Isto permite ao autor esboçar uma contraposição entre a família, com os seus laços de solidariedade e regras de autoridade mediadas pelo afecto e a partilha de interesses comuns, e esses sucedâneos da família que, nas grandes cidades, acolhem os jovens que pretendem estudar. O Colégio Familiar era destituído de tudo aquilo que é essencial numa família. As suas regras, como aconteceu durante décadas em Portugal até à explosão do ensino público, aproximam-nos das instituições penitenciárias e disciplinares ou, num outro âmbito, das organizações militares. Nelas não há lugar para o emergir e florescer da singularidade do self.

Uma Gota de Sangue é, deste modo, um romance de formação, onde se acompanha, numa certa fase da vida, o processo de desenvolvimento moral, psicológico, intelectual e estético do protagonista. Contrariamente a certos romances realistas e neo-realistas, José Régio dá grande atenção à complexidade das personagens. Nenhuma das que tem importância na economia narrativa se deixa capturar por um arquétipo definido a priori. Todas elas possuem elementos mais luminosos e outros mais sombrios, embora esse doseamento não seja igual em todos. Há personagens mais tenebrosas e outros mais cintilantes. É neste jogo de luz e trevas que Manuel Trigueiros inicia a sua efectiva formação, é nele que se descobre e vai descobrindo aquilo que lhe é próprio e aquilo que não fará parte do seu acervo existencial.