terça-feira, 28 de julho de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Outono


Em 1902, Ramón del Valle-Inclán começa a publicação da sua tetralogia conhecida como Sonatas. Cada um dos romances – pequenos romances – é dedicado a uma das estações do ano. As obras têm por objecto as memórias amáveis – de amorosas – do fictício Marquês de Bradomín, um velho conservador no exílio devido à sua fidelidade a Carlos de Bourbon e às políticas antiliberais, legitimistas e de defesa do regresso ao Antigo Regime. As Sonatas, do ponto de vista estético, representam uma reacção ao movimento artístico conhecido como realismo e são um dos momentos mais altos do chamado modernismo espanhol. São uma afirmação da arte pela arte, de uma preocupação com a linguagem, procurando a raridade e a elevação aristocrática, e deixando-se contaminar, no ritmo e na metafórica, pela música e pelas artes plásticas. Sonata de Outono é o primeiro romance, e é claro nele a preocupação de captar, através da linguagem, tanto o ritmo como a paisagem outonal da Galiza, sítio onde se desenrola a trama romanesca. O Outono é a metáfora que sublinha a maturidade consumada de Xavier, o Marquês de Bradomín.

O Marquês é uma variação do tema de D. Juan, apesar de feio, sentimental e católico. Como estamos perante memórias, sabemos de imediato que é um D. Juan retirado e que se entrega à rememoração da sua vida galante. Sonata de Outono é a recordação de um amor trágico. O leitor é informado logo no início do desfecho do romance. Concha, sentindo-se mortalmente doente, manda chamar Xavier, em nome de um antigo amor, para que a acompanhe nos últimos dias. Ela é casada, tem duas filhas, mas o marido está longe e o Marquês é a sua grande paixão. As relações que entretecem à beira da morte são marcadas pela tensão entre a consumação do desejo e a rejeição dessa consumação, devido ao estado mórbido em que ela se encontra. Toda a obra é percorrida pela aproximação entre Eros e Tânatos, pela insinuação da relação entre sexo e morte, temática que terá uma enorme fortuna com a psicanálise. O jogo entre Eros e Tânatos, porém, tem como finalidade ilustrar a ideia de amor fatal, não porque seja a causa da morte, mas de uma eventual perdição da alma.

Concha vive os últimos dias dividida entre sentimentos contraditórios. O amor que arde dentro dela implica a infidelidade matrimonial. No entanto, a questão da infidelidade, tal como Valle-Inclán retrata o ambiente aristocrático onde se desenrola a narrativa, não é por si mesmo importante. A sua importância advém-lhe da proximidade da morte, de representar um pecado capital e dar à protagonista a perspectiva de uma condenação eterna da alma. Consumar o amor ou salvar a alma? Ceder à tentação e ao tentador – em Xavier há algo de satânico, apesar de católico – ou resistir e reconciliar-se com Deus, agora que a morte se aproxima. A temática religiosa na novela não é sem significado. A presença do Nazareno em certo lugar do palácio não deixa de ter efeitos mesmo sobre a consciência do Marquês, um homem na plena maturidade. Por outro lado, é em nome da salvação que Concha resiste.

Valle-Inclán dá uma visão de uma aristocracia de província, já anacrónica do ponto de vista da História, mas ainda fortemente arreigada aos seus tiques de casta, ao modo de vida de séculos, à genealogia que lhe deu olhar e porte altivos. Uma das características dessa aristocracia era a combinação entre a piedade e a crueldade. Os homens eram cruéis e as mulheres piedosas. Eles desafiavam Deus e elas ajoelhavam perante a cruz no altar. Concha e Xavier são figurações enfraquecidas desses arquétipos de uma aristocracia bárbara. Ela não deixa de ser piedosa e beata, mas é fraca com os devaneios do coração. Ele é um aristocrata sedutor e não um violento e impiedoso senhor de terras e homens. No entanto, a relação dele com Concha não deixa de conter um outro tipo de violência, que nasce dos diferentes graus com que o amor entre ambos é vivido. O dela é extremado e absoluto, o dele é, fundamentalmente, erótico e efémero, demasiado efémero. O amor dela nasce do sentimento, o dele do desejo. Não deixa de ser significativa esta transição no tipo de crueldade do homem aristocrático. Do império físico ao império sentimental. As memórias do Marquês são também a memórias do declínio de uma casta, cujo papel no mundo se aproximava, a passos largos, do fim. A Grande Guerra de 1914-1918, ainda não sonhada em 1902, pôs-lhe fim. Os cultores do Antigo Regime não passavam já de fidalgos perdidos em justas eróticas, que, afundados na velhice e no exílio, não têm outra ocupação senão a rememoração.

sábado, 25 de julho de 2020

Olga Tokarczuk, Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos


O romance da escritora polaca, Olga Tokarczuck, prémio Nobel da literatura em 2018, foi publicado em 2009 na Polónia. Permaneceu desconhecido no Ocidente até à sua tradução em inglês em 2018. A edição portuguesa, da Cavalo de Ferro, é de 2019. A natureza da obra é daquelas que permite discutir a pertinência dos géneros literários. Um romance policial? Um romance de intervenção? Um drama psicológico? De certa maneira, é tudo isso sem, no entanto, ser um tipo de romance específico. Existem assassinatos em série e uma preocupação policial em solucioná-los. Há uma militância em defesa dos animais e contra as prorrogativas que os caçadores reivindicam para si, bem como um questionamento da diferença ontológica, e também teológica, entre animais humanos e não humanos. Por fim, ou talvez no início, exista o drama que representa a velhice e a necessidade de encontrar um sentido para a existência, nesses dias em que o préstimo para a sociedade findou e a morte ainda não fez o seu trabalho.

A narradora e protagonista principal da obra é Janina Duszejko. Antiga engenheira de pontes e calçadas vê-se compelida a uma nova forma de vida por motivos de saúde. Passa pelo ensino e acaba por ir viver para um lugarejo sem nome, com apenas sete casas, numa zona de floresta, com seis meses de neve por ano, perto da fronteira da Polónia com a República Checa. Ocupa o tempo com algumas lições de inglês na escola primária perto de onde vive, traduz o poeta inglês William Blake (o título do romance é a transcrição de um verso de Blake, do livro The Marriage of Heaven and Hell), pratica a astrologia e toma conta das casas vizinhas que, com a exclusão da dela e de mais duas, servem apenas para férias dos proprietários. Aliás, ela não é a única solitária. Também os seus dois vizinhos são solitários, estão de alguma forma cortados do mundo. A trama narrativa é desencadeada pela morte de um deles, Pé Grande, engasgado com um osso de veado. Todas estas ocupações de Janina são exercícios de ocupação do tempo, onde a conjugação das traduções de Blake com a prática da astrologia são formas de dar um sentido à existência, agora que o exercício de uma profissão técnica se tornou impossível. Esta transição da tecnologia, com os seus estritos limites racionais, para o convívio com um poeta inspirado pelas musas e com os desígnios dos astros não é um aspecto insignificante no desenvolvimento da personagem/narradora. Há um alargamento dos limites da acção permissível e isso tem impacto na economia da intriga.

Janina desenvolveu também uma clara consciência crítica das concepções antropocêntricas. Para ela, o homem não tem direitos especiais sobre as outras espécies e por isso ela é uma vigorosa activista contra a caça e os caçadores. Vê na morte de Pé Grande, um caçador, uma vingança dos próprios animais. Advoga uma teoria da rebelião animal contra os homens, por certo inspirada pelo espírito de rebelião de Blake. Eles teriam uma consciência clara dos seus inimigos e estariam predispostos a vingar-se. E é aqui que entra o romance policial. Depois da morte acidental de Pé Grande, surgem outras mortes, todas elas de membros do clube de caça existente nas redondezas. Ela tenta contribuir para a solução do enigma, escrevendo para a polícia e explicando-lhe a sua teoria da vingança animal. Mais do que assassínios, aquelas mortes seriam o exercício de uma retribuição por parte dos animais, os quais nunca evitam deixar vestígios no local dos assassinatos. Estaríamos assim perante uma arcaica forma de justiça retributiva, a qual existe entre os homens desde tempos imemoriais e, possivelmente, antes da sua chegada ao planeta. A polícia e os cidadãos proeminentes, todavia, não a levam a sério. Julgam-na um pouco louca e vítima de uma inimizade irracional com a nobre prática da caça e com aqueles que a praticam.

Mais importante do que descobrir quem matou os diversos membros do clube de caça, a parte policial da obra, é dar atenção ao questionamento filosófico e político que ela representa. Diversas tensões percorrem a obra. A mais imediata é a tensão entre animais humanos e não humanos. A fronteira que os separa talvez seja tão débil quanto é a fronteira que naqueles lugares separa a Polónia da República Checa. Uma outra é aquela que atravessa o saber e o divide em saberes técnicos e saberes inspirados, cada qual com a sua forma de compreender o mundo, o ordenar e de lhe dar sentido. Por fim, e a não menos importante, a tensão entre a justiça civil, a qual nasce de um contrato entre os homens para sua protecção e gestão dos seus interesses, e uma outra justiça de natureza arcaica, que nasce no interior da própria natureza e cujos decretos, fundados nas suas tábuas de direitos e deveres, estão aquém da linha que pretende separar animais humanos e animais não humanos, para usar uma distinção agora em voga.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar


Publicado em 1965, O Guarda do Pomar, é o primeiro romance do norte-americano Cormac McCarthy. Em 1966 foi-lhe atribuído o William Faulkner Foundation Award. O romance passa-se no tempo da Lei Seca, no Tenessee, em zona montanhosa, num lugarejo denominado Red Branch, e cruza os destinos de três personagens. O velho Arthur Ownby, o guarda de um pomar abandonado, que vive com um cão, um podengo, também ele velho. A paisagem bravia envolvente e ele fundem-se e espelham-se ao longo do romance. O jovem John Rattner, cujo pai foi assassinado, embora ele nunca tenha a certeza disso. O leitor sabe que Kenneth Rattner, o pai, foi morto, sabe quem o matou, as razões do assassinato e o lugar onde o corpo foi escondido. O jovem John e a mãe apenas suspeitam que isso tenha acontecido, dado o desaparecimento dele. Por fim, Marion Sylder um contrabandista de whiskey que matou Kenneth Rattner em autodefesa. Kenneth Rattner, aparentemente uma personagem menor e circunstancial, é o elo que liga, de forma invisível, aquelas três pessoas. Um era filho, o outro o assassino e o terceiro, o velho Ownby, em cujo tanque o cadáver desconhecido tinha sido depositado, que mantém o corpo escondido e ao qual, de certa forma, presta culto.

Uma das questões que se poderá colocar acerca da natureza do romance é se se está perante um romance de formação (Bildungsroman). Na verdade, a personagem central é o jovem Rattner. Central porque é a que possui laços que o ligam tanto a Ownby como a Sylder. O primeiro acaba por dar algum apoio à família Rattner após o desaparecimento do pai. O segundo, na sequência de um acidente em que é socorrido por John, estabelece uma relação com este quase como se fosse um pai substituto. São estes dois homens que, com os seus códigos de valores, ajudam à formação do carácter do órfão. No entanto, formação do carácter não resulta apenas das relações estabelecidas com as outras duas presonagens, mas também com a envolvência natural. A montanha e a floresta parecem ter um poder enorme sobre quem nelas habita e é isso o que autor sublinha. A vida selvagem, as paisagens inóspitas, o exercício da caça, tudo são elementos que vão fortalecer e moldar o jovem Rattner.

As relações de John tanto com Ownby como com Sylder são uma meditação sobre a natureza da família. É verdade que qualquer um destes caracteres é marcado pelo individualismo típico da cultura americana. A independência dos outros e o culto da autonomia estão bem vincados. No entanto, a família, enquanto comunidade de transmissão de valores, tem um papel fundamental. À desestruturação da família Rattner, devido à morte do pai, segue-se uma recomposição noutros termos, onde Arthur Ownby funciona como a imagem de um avô sagaz e a de Sylder, a de um pai que inicia o filho aos mistérios do mundo. Natural ou simbólica, a família é estruturante para a formação do jovem e um contraponto comunitário ao puro individualismo.

Se a formação do jovem Rattner e a família são temas importantes no romance de McCarthy, os temas do paraíso e do paraíso perdido não o são menos. O lugar onde se desenrola a vida das personagens é descrito de forma bastante pormenorizada. Não o lugar social que se descobre evanescente e pouco sólido, mas o lugar natural. A natureza selvagem e luxuriante é descrita com exuberância. As descrições são exercícios de virtuosismo em que o autor parece pretender que o leitor não apenas leia sobre aquele mundo arcaico, mas que o veja, que o consiga projectar diante dos olhos. Este mundo é uma imagem do paraíso e é no paraíso, apesar e tudo, que as personagens vivem. Ora, sempre que existe um paraíso onde as pessoas vivem, existe também uma queda, uma expulsão desse paraíso. Basta uma desobediência ou, talvez de forma mais dramática do que desobedecer, basta crescer para que as portas do paraíso se abram e quem lá vive seja expulso e não mais possa voltar a esse lugar encantado. No entanto, não é Deus que expulsa o homem do paraíso, mas o próprio homem que se expulsa lugar encantado.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Anthony Doerr, Toda a luz que não podemos ver


O romance de Anthony Doerr, Toda a luz que não podemos ver, foi publicado em Maio de 2014 e ganhou o Prémio Pulitzer para ficção, no ano de 2015, bem como a Andrew Carnegie Medal for Excellence in Fiction. A edição portuguesa é também de 2015. O cenário temporal onde se desenvolve a acção romanesca é o da segunda guerra mundial e as duas personagens centrais, Marie-Laure LeBlanc, uma rapariga francesa, e Werner Pfennig, um rapaz alemão, são marcados, cada um deles, por uma perda fundamental. Devido a um problema de cataratas, ela cegou aos seis anos. Ele, por seu turno, é órfão e vive num orfanato. A obra combina as características de diversos géneros literários. É ao mesmo tempo um Bildungsroman (um romance de formação), um romance sobre a segunda guerra mundial, um romance de aventuras e ainda uma meditação sobre o destino, a liberdade e o condicionamento que a realidade envolvente coloca aos seres humanos.

De todas estes aspectos, o mais dispensável, na trama romanesca, é o de romance de aventuras. Essa faceta decorre à volta de um diamante que possui uma maldição. O importante é a escolha de uma cega e de um órfão, jovens durante o tempo dos acontecimentos, para protagonistas. A sua condição é a de estarem afectados por uma perda que condiciona a sua existência e lhes diminui a liberdade, ao ponto de terem a sensação de não a possuírem. Esta condição de perda presente nos protagonistas é o contraponto de um mundo também em perda devido à segunda guerra mundial e à erosão de valores gerada tanto pelo regime totalitário nazi como pelas próprias circunstâncias do conflito, no qual os limites da decência humana são ultrapassados com excessiva facilidade.

Marie-Laure LeBlanc e Werner Pfennig têm de enfrentar, no processo de formação, os seus condicionamentos. Como poderá ela orientar-se num mundo construído sob o efeito da luz, um mundo visual? Como poderá ele, sem família, recolhido num orfanato, condenado a ter ir trabalhar para mina de carvão aos 15 anos, realizar o seu sonho de ser cientista, fugir à escuridão da mina e deixar-se guiar pela luz da ciência? A questão central é se esses condicionamentos possuem uma natureza rigidamente determinada, se são uma consequência inexorável vinda do passado, ou se há a possibilidade de lhes fugir por actos de liberdade. O que se coloca a ambos os jovens não é o mero problema teórico de possuírem livre-arbítrio, mas o que fazer com ele, caso admitam que o possuem. O que fazer nos momentos mais difíceis, como aqueles que se passam Saint-Malo, cidade à qual a guerra os conduz? Ela chegou ali vinda de Paris para fugir com o pai da ocupação alemã, ele integrado no exército invasor com a missão de detectar um posto clandestino de rádio que dava informações cifradas aos aliados, e que funcionava, precisamente, na casa do tio-avô de Marie-Laure e aonde ela vivia.

O romance, ao desenvolver este questionamento sobre a liberdade no processo de formação de ambos, deixa compreender, ao mesmo tempo, algumas facetas da segunda guerra mundial. A obra de Doerr torna manifesto o grau de adesão mística dos jovens ao nazismo, a suspensão por eles da racionalidade, do bom senso e da empatia com os seres humanos, tudo isso substituído por um culto feroz da violência, pela glorificação do mais forte e pela ausência de piedade que se deve ostentar como programa de vida ao serviço Füher e forma de se dissolver no fundo atávico da comunidade. Observa-se também a resistência francesa, a forma como os cidadãos franceses se opuseram à invasão nazi, como se organizaram para enfrentar o inimigo que os humilhara. A obra deixa perceber, todavia, uma realidade matizada e não é um exercício maniqueísta, no qual os bons estão todos de um lado e os maus no outro. Jutta, a irmã de Werner, opõe-se, anda que no âmbito restrito da relação familiar, ao delírio criminoso alemão, enquanto o pai de Marie-Claude é preso pelos alemães após denúncia de um colaboracionista francês.

O processo de formação conduzirá os dois jovens a destinos diferentes. A liberdade – e é possível detectar no romance o eco da ideia sartriana de que estamos condenados à liberdade – é um exercício que, por si mesmo, não nos assegura outra coisa senão sermos livres. Entregues a essa liberdade, as pessoas seguem caminhos diferenciados e chegam a portos também eles diferenciados. Será ela, a liberdade de assumirmos um destino, de fazermos uma escolha, toda essa luz que não podemos ver. A liberdade não é do domínio da experiência empírica, mas a luz invisível que na nossa razão nos guia e torna humanos, que faz de nós mais que meros artefactos manipulados pela espírito da massa.