domingo, 15 de novembro de 2020

Knut Hamsun, Pan

Interpretado, por vezes, como um romance de amor, Pan, do norueguês Knut Hamsun (Nobel em 1920), publicado em 1894, encena o conflito entre a vida livre do bom selvagem e a vida civilizada. É, também, uma releitura do mito de Pã, do deus grego dos bosques e das florestas, e da sua paixão pela náiade Sírinx. Nessa releitura não falta sequer o piloto Tamo que anuncia ao mundo a morte do grande Pã. O romance faz parte do conjunto de obras onde o autor contesta radicalmente a vida e os valores burgueses, esse mundo regulado pela burocracia e por regras que aniquilam o instinto vital. Não o faz, todavia, numa perspectiva social que tocou o realismo ou o naturalismo literários e, mais tarde, o neo-realismo, mas do ponto de vista do herói individual, da afirmação do carácter único do indivíduo. Não como uma singularidade que persegue o interesse próprio, tal como o burguês, mas de uma individualidade que emerge do tumulto da natureza e que nele pretende voltar a mergulhar.

O Tenente Thomas Glahn, aos 28 anos, foi para as terras selvagens do norte da Noruega, onde aluga uma cabana de caça, adoptando um modo de vida frugal. Os dias eram passados na floresta, na companhia do seu fiel cão de caça Esopo. A vida selvagem e desordenada eram o ambiente natural onde florescia a vida espiritual do militar. Uma espiritualidade tipicamente pagã, vivida através da divinização da natureza. Aquele era o lugar para um homem meio selvagem. No entanto, a vida civilizada, de uma povoação próxima, cruzava-se com os seus caminhos. Neles atravessou-se Edwarda e uma paixão exaltada nasceu no coração de Glahn.

Essa paixão, aliás correspondida, arrastou-o para contactos com a sociedade organizada do povoado adjacente, onde o pai de Edwarda, Herr Mack, um rico comerciante, tinha um papel central. Estes contactos sociais são, então, ocasiões para que Thomas Glahn ostente um carácter imprevisível, surpreendente e, quase sempre, pronto a quebrar as regras da civilidade. Hamsun explora aqui a tensão entre a espontaneidade do homem bravio e a artificialidade e afectação que as pessoas em sociedade necessitam de ostentar. Está em jogo o confronto entre a autenticidade existencial, por vezes brutal, e a vida falsificada produzida num mundo em que as arestas são limadas para que se evite o espectáculo da dor ou do prazer excessivos. Ora, era essa disrupção que a conduta de Glahn introduzia na vida social que conduziram a um ostensivo afastamento de Edwarda. Acabada a época de caça, esse Verão das terras do Norte, o militar foi-se embora. A sua náiade rejeitara-o.

O romance é composto por duas partes. A primeira, com cerca de 150 páginas, tem por título ‘Segundo os papéis do Tenente Thomas Glahn’. É narrada na primeira pessoa, uma espécie de rememoração do próprio Tenente. Começa assim: Ultimamente tenho pensado e repensado no Verão do Nordland e nos seus dias intermináveis. Estou aqui sentado a pensar nisso, mas também numa cabana onde vivi, e no bosque atrás dessa cabana, e vou anotando essas coisas para passar o tempo; para me entreter, nada mais. A rememoração nunca é inocente. Ela refere-se a algo que passou e que deixou de fazer parte do leque de possibilidades disponíveis para uma existência, mas que continua a afectar aquele que viveu esses acontecimentos, de tal maneira que tem necessidade não apenas de os rememorar como de os anotar. Essa vida selvagem e esse delírio erótico pertencem a um mundo acabado. Tudo o que é substancial na relação entre Glahn e Edwarda encontra-se nesses papéis deixados pelo Tenente.

A segunda parte, com pouco mais de 20 páginas, tem por título ‘A morte de Glahn – Um documento de 1861’. Está também ela narrada na primeira pessoa, mas agora essa primeira pessoa não é o protagonista do romance. Inicia-se do seguinte modo: A família de Glahn pode perfeitamente continuar a anunciar o desaparecimento do Tenente Thomas Glahn durante o tempo que quiser, mas ele nunca mais regressará. Está morto e, além disso, eu sei como morreu. Como o piloto de navios Tamo anunciou a morte do deus Pã, também este narrador anuncia a morte dessa sua encarnação, que era o Tenente Glahn. No entanto, contrariamente a Tamo que apenas obedece a uma ordem e não faz ideia como morreu o deus, este narrador sabe como morreu Glahn e sabe aquilo que no coração de Thomas Glahn o abriu para a morte. O que ele não sabe, pois essa não é a sabedoria de um narrador, mas do autor, é que a morte de Glahn significa o fim de um mundo e de uma tradição e a vitória da ordem burguesa, burocrática e feita de artifícios, onde impera o culto da inautenticidade. Essa morte encontra a sua simbolização plena no carácter póstumo da publicação dos papéis do Tenente Glahn.

 

domingo, 8 de novembro de 2020

Faure da Rosa, Nós e os outros

Publicado em 1979, Nós e os outros, de Faure da Rosa, passa-se num curto espaço de tempo, quatro dias de uma semana de Maio de 1973. Bernardo, o narrador, conta, num tempo já bem posterior e demarcado no calendário político do país, a sua vida quotidiana nesses dias em que a ditadura entrara em pleno, embora não visível, estertor. A obra é cruzada pela tensão entre duas linhas narrativas. Por um lado, a preocupação com a análise de um certo tipo de família burguesa. Por outro, a questão do compromisso político, de um compromisso com o único partido que, apesar da sua ideologia materialista e ateia, tem qualquer coisa de efectivamente religioso. Aliás, essa ligação devocional ao partido surge várias vezes na narrativa, sugerindo-se, por vezes, quase uma ligação a um corpo místico. A tensão desenha-se, deste modo, entre o cosmos da vida privada, uma vida real e efectiva, e o da vida pública, mais sonhada e desejada do que autêntica.

Em busca de um filho na noite lisboeta, o narrador, de 64 anos, acaba por encontrar Carol, uma jovem, na casa dos 20 anos, sexualmente caridosa com velhos e rejeitados, que o provoca. Acabam por se envolver eroticamente. É a partir desta deriva extraconjugal, que as relações familiares vão sendo exploradas. Uma vida inteira ao lado de Luci, dois filhos, e, de súbito, a figura da mulher surge a uma outra luz. Torna-se enigmática, obscura. Esta obscuridade provém, contudo, da própria mentira que esconde a infidelidade. Na verdade, há em Bernardo uma ânsia em ser descoberto, um desejo de ver a situação revelada, uma necessidade de confissão, como se isso pusesse um ponto final ao desvario. É o facto de Luci não se dar conta da situação, ou de não deixar transparecer que a pressente, que a torna obscura aos olhos do marido, como se ele supusesse o casamento, depois de uma vida inteira lado a lado, um lugar da mais pura transparência. O que preocupa, todavia, Luci não é o marido e os eventuais desvarios eróticos, mas o filho mais novo que desapareceu. Tendo-se radicalizado politicamente, participado em acções de natureza terrorista contra o regime, acaba por sair do país.

O romance não espreita apenas para dentro desta família. Olha as relações entre Antonieta, irmã do narrador, e César, um professor universitário que, na juventude, militou na oposição, mas que, com o passar dos anos e da carreira, se foi tornando complacente com o regime, se não mesmo defensor. É a figura negra do romance, aquele que tanto Bernardo como os filhos – Nuno, o fugitivo, e Paulo – não suportam, embora ele tenha diligenciado, no âmbito da vida profissional e pessoal destes, várias vezes em favor do cunhado e dos sobrinhos. É uma personagem quase estereotipada, o vilão da história, aquele que Bernardo se revê como um negativo e perante o qual se sente múltiplas vezes derrotado. A tensão dentro desse casal cresce motivada pela própria política, pela fidelidade de Antonieta aos ideais comunistas de Bernardo e dos outros irmãos já mortos e pelo desprezo de César por esse mundo. Também o casal Paulo e Gabi é observado e questionado pelo narrador. Paulo é o filho perfeito, o homem que, apesar de ter uma carreira profissional, se comprometeu com o partido e a luta contra a o regime. Todavia, é estéril. Bernardo teme que a nora acabe por ceder a uma forte inclinação amorosa pelo outro filho, pelo carácter aventureiro e radical deste.

Estes pequenos dramas familiares, de famílias tipicamente burguesas, de uma certa classe média lisboeta e oposicionista, são contrastados pelo seu, de Bernardo, compromisso político com o Partido Comunista. Um compromisso relativamente distante. A sua ligação à família, a sua preocupação com os filhos e a educação destes, a relação com a mulher pouco interessada nos ideais do marido, impedem Bernardo de se entregar a um compromisso radical com a organização que encarna os seus ideias de justiça social desde a juventude, de entrar no corpo místico que é o partido. Contenta-se em ser um homem da segunda linha, um devoto, alguém que não tem estatuto para se tornar o herói revolucionário que um dia terá sonhado ser. Aos 64 anos, essa figura do herói suscita-lhe a nostalgia do passado e também a melancolia que a realidade vivida lhe trouxe, a qual é agora, por um curto espaço de tempo, substituída pela aventura erótica. O tempo do adultério é um exercício compensatório para a sua impotência de revolucionário. A fusão erótica está no lugar da fusão no corpo místico do partido e através dele no povo.

A estratégia narrativa assenta no contínuo cruzamento entre o tempo curto, o daqueles quatro dias, e o tempo longo de uma vida. O tempo curto é aquele em que o narrador conta a sua vida banal. A procura do filho por injunção da mulher, o encontro com uma futura e breve amante, um jantar de família, os sonhos que lhe povoam a noite, as cenas da vida profissional, as frustrações existenciais. Este tempo da banalidade quotidiana, mesmo que atravessado pela fuga do filho e a conquista de uma jovem amante, é posto em tensão, através de um constante exercício mnésico, com o tempo longo da sua vida, um tempo que vai do passado ao futuro. O narrador entrega-se a contínuas analepses e prolepses, que lhe dão uma densidade temporal, lhe conferem uma identidade e uma história. Permitem compreender o percurso que o leva àqueles quatro dias e o caminho que esses quatros dias abriram até depois de 25 de Abril de 1974, até ao momento que em 1978 escreve a história, um romance que pretende ser também a confissão de um adultério. Nós e os outros é a história de um homem da classe média a entrar na parte final da vida. De um homem que um dia sonhou ser revolucionário e ficou preso dentro desse sonho, impotente para o realizar, como o faz o filho, e impotente para sair dele, como o fez o cunhado. O ano de 74, permitiu-lhe, todavia, mergulhar na militância comunista, embora sem o encanto mítico do herói da resistência, sem a experiência sobrenatural de comunhão com um corpo que é sentido, pelos que dele fazem parte, como sendo mais do que humano.