quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Herta Müller, A Terra das Ameixas Verdes

 

Herztier (1996) é um romance da escritora alemã, nascida na Roménia, Herta Müller, prémio Nobel (2009). Literalmente, o título original significa coração animal. Em França, o título escolhido foi Animal du Coeur, em Espanha, La bestia del corazón, e em inglês, The Land of Green Plums. A tradução portuguesa (1999) seguiu a inglesa. O romance começa e acaba com as mesmas palavras: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Esta estratégia confere à narrativa uma espécie de ciclicidade, de eterno retorno do mesmo, mas também o sentimento de um círculo fechado. Este cerramento não é um mero exercício de estilo, mas o modo como autora cria no leitor a sensação de opressão existente na Roménia sob a ditadura comunista. Ciclos contínuos de expectativas (a da sempre adiada morte do ditador), mais do que esperanças, e de desesperos, um ambiente fechado, controlado, de onde qualquer liberdade individual fora banida.

Um outro elemento estrutural liga-se ao anonimato da narradora num romance autodiegético. Ela é a principal personagem, mas nunca se sabe o seu nome, enquanto o das outras personagens – Lola, Edgar, Georg, Kurt, Tereza e o capitão Pjele – são conhecidos. Várias recensões da obra vêem nela um romance autobiográfico, devido à existência de traços biográficos comuns à autora e à narradora. O anonimato desta seria uma ocultação do nome da autora. Existe, todavia, uma outra possibilidade de leitura mais interessante. Essa ausência de nome da personagem principal, esse espaço em branco na trama narrativa, permite que ele fique em aberto e possa ser preenchido por qualquer um. Ao espaço fechado da narrativa corresponde o espaço aberto do sujeito da acção. Num mundo opressivo e fechado, num regime totalitário, o lugar da vítima está sempre em aberto, para que qualquer um, se for esse o desejo do poder, o ocupe. O anonimato da narradora significa que aquele lugar não é pessoal e intransmissível. Pelo contrário.

Contrariamente ao que se possa pensar, não se está perante uma obra de matiz ideológico nem perante um romance de tese. Dentro do espaço fechado da narrativa, o que Herta Müller faz é dar a ver o impacto do universo político sobre as pessoas, não apenas nas suas condições sociais, mas, fundamentalmente, nas suas condições psicológicas ou, melhor, na sua ipseidade, isto é, na forma como se constituem enquanto pessoas. Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, pessoas que vivem sob regimes totalitários ou autoritários não percebem que a opressão se abate de forma muito insidiosa sobre a construção da personalidade de cada um, mesmo sobre a dos adeptos e sicários desses regimes. Não são apenas os corpos que são presos, torturados, violentados, ou o discurso que é censurado. O que qualquer regime opressivo faz é manietar os indivíduos não lhes permitindo desenvolver, muitas vezes sem que eles próprios percebam, as suas possibilidades mais fundamentais. Neste tipo de regimes, a política não é apenas a política, mas uma forma de rasurar a humanidade e de impedir a pessoa de se descobrir a si mesma. É uma prática sistemática de amputações, mesmo que os corpos pareçam ilesos.

Apesar de a narrativa ser fechada, ela parece pouco estruturada. Não há divisão por capítulos. O texto corre de princípio até ao fim, composto por pequenos parágrafos, quase como se fossem versos que não coubessem numa linha e tivessem de se expandir por várias. Esta sensação é intensificada pela própria natureza imagética da escrita. Por exemplo: Eu puxo o fio, escreve Lola, a coroa de espinhos vira-se para baixo. A mãe canta. Deus tende piedade de nós, e eu puxo para abrir o polegar da luva. Há uma clara preocupação de dar a ver os pequenos gestos, os acontecimentos insignificantes, tudo aquilo que constitui a vida. Há uma atenção hiperbólica ao real, como se essa atenção fosse o outro lado da opressão e, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e afastamento do universo concentracionário.

O romance gira em torno de quatro amigos todos com a mesma origem. A narrador sem nome, Edgar, Kurt e Georg. São todos romenos de origem alemã e todos eles tinham pais que fizeram parte das SS nazis, tal como o pai da própria autora. Essa comunidade alemã presente na Roménia era o resultado de acontecimentos políticos, passados no século XIX, que envolveram o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. No romance, a opressão acentua também o conflito de nacionalidades, o choque de culturas, a exclusão dos romenos de origem alemã. O sonho de todos os quatro amigos, depois de terem concluído os cursos superiores, de terem entrado no mundo do trabalho e de dele terem sido excluídos por desagradarem ao regime, era emigrar para a Alemanha. A vida na Roménia tornara-se insuportável, embora eles não tivessem qualquer actividade política digna desse nome. Limitavam-se a cantar canções alemãs, ler livros que não faziam parte do cânone permitido pelo regime ou, no caso de um, de tirar fotografias, que ninguém via, aos autocarros que transportavam presos para os trabalhos de construção das obras do regime. É a insignificância destes gestos e as retaliações que eles suscitam que mostra a natureza totalitária da sociedade romena daqueles dias. Não havia aspecto da vida que não fosse vigiado.

Há, no romance, duas alegorias poderosas, ambas ligadas à morte. Os comedores de ameixas verdes e os tragadores de sangue. Na comunidade camponesa alemã, corria o mito de que se as pessoas comessem ameixas verdes morreriam. Ora, os quatro amigos ficaram espantados quando descobriram na cidade que os polícias, os defensores da ordem do regime, enchiam os bolsos de ameixas verdes e as comiam. Era como se comessem a própria morte e a trouxessem com eles, tornando-os agentes mortais. O poder heurístico da alegoria, porém, não fica por aqui. Uma ameixa verde que é comida não tem o tempo suficiente para desenvolver as suas potencialidades, e de se tornar uma ameixa no pleno sentido. As ameixas verdes são os próprios indivíduos que acabam tragados na boca dos polícias, isto é, nas mandíbulas de um estado policial. A outra alegoria provém da experiência profissional, acabada a universidade, de Kurt. Entra como engenheiro para um matadouro. Descobre, então, que os trabalhadores tragam o sangue dos animais mortos, o que o perturba profundamente. Essa vampirização das vítimas – os animais mortos tornam-se, como as ameixas verdes, uma imagem das pessoas perseguidas pelo estado policial – por parte dos trabalhadores do matadouro torna manifesto que o poder opressivo não se limita aos aparelhos de estado, mas que a própria população se torna uma roda no mecanismo da opressão. No processo, porém, o que mais horrorizava Kurt era a aceitação das famílias da situação. As próprias crianças eram já cúmplices dos pais e não almejavam outra coisa senão o matadouro. É este universo mortal que sustenta as primeiras e a últimas frases do romance: Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos. Num espaço concentracionário ninguém sabe o que fazer com o discurso, com a luz do logos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Michel Houellebecq, Aniquilação

Publicado, em França, no início de 2022, Aniquilação é o oitavo romance de Michel Houellebecq. Como se tornou hábito, o lançamento de um novo romance deste autor gerou uma enorme controvérsia entre defensores e detractores do romancista. No campo da detracção, é sublinhado com insistência o facto do romance ser composto por temáticas diversas que parecem não se encontrarem devidamente soldadas umas nas outras, para que façam sentido estarem presentes numa mesma obra. Aniquilação seria, então, uma obra descosida, e grande parte das páginas desnecessárias. Essas linhas romanescas sem real conexão seriam o terrorismo como ameaça ao mundo ocidental, um terrorismo não identificado e com recurso a uma simbólica satânica do século XIX. Isto aconteceria no período que antecederia as eleições presidenciais francesas de 2027, uma outra linha temática, onde o candidato da maioria actual seria um homem de mão do presidente ainda em funções. Neste ponto, estar-se-ia perante um romance de antecipação e um thriller político. Por fim, o destino do protagonista Paul Raison, o principal conselheiro político do ministro da Economia, um homem chave no triunfo do candidato da maioria perante um adversário do partido da senhora Le Pen. No caso de Paul Raison, o que estaria em jogo seria o seu confronto com o destino, isto é, com o amor e a morte. Para muitos, esta é a parte fundamental do romance, que dispensaria as outras linhas narrativas que, no seu entender, não contribuem para o desenlace romanesco.

Uma outra leitura é possível, começando por não aceitar que o protagonista principal do romance seja Paul Raison, mas a família Raison e seria esta a solda que une as diversas linhas que parecem sem ligação. Não deixa de ser estranho que a generalidade dos comentadores não tenham atribuído qualquer importância ao apelido Raison, a palavra francesa para razão. Falam, muitas vezes, de se estar perante um romance crepuscular, mas parecem não compreender onde está a essência desse crepúsculo, confundindo os efeitos do crepúsculo (o terrorismo, a eutanásia, a diluição dos valores, etc.) com aquilo que o provoca. Ora, é a crise da própria razão – encarnada na família Raison – que gera o imenso crepúsculo a que o mundo ocidental estaria sujeito, na perspectiva do romancista. Édouard Raison, um antigo quadro superior da segurança nacional, um homem que teria tido um importante papel nos serviços secretos franceses, é o pai de Paul, um alto quadro do ministério das Finanças e conselheiro político do ministro Bruno Juge, que procura devolver França à glória económica, de Cécile casada com um notário no desemprego, um casal católico tradicionalista e apoiante do partido da senhora Le Pen. Também Aurélien é um Raison, filho mais novo de Edouard, o mais próximo da mãe, já desaparecida no tempo da narrativa, e como ela restaurador de tapeçarias medievais.

Cada um dos Raison representa uma vertente da razão, tal como o Ocidente, no decurso da sua história intelectual, a entendeu. Edouard representa a razão de Estado marcada pela busca de segurança, uma razão inspirada, em parte, em Thomas Hobbes. Não deixa de ser sintomático que uma das suas leituras seja Joseph de Maistre, o principal pensador da contra-revolução e um defensor do Absolutismo, contra as pretensões do terceiro-estado e a visão liberal do mundo. Paul simboliza a razão económica, cujo protagonista no romance é Bruno Juge, considerado como o melhor ministro da Economia desde Colbert. A referência a Colbert não é um acaso, mas uma afirmação, no campo da Economia, da razão de Estado contra a razão liberal. O Colbertismo é marcado pelo dirigismo estatal da Economia, por políticas intervencionistas e proteccionistas. Tanto Edouard como Paul representam simbolicamente a afirmação da razão de Estado e do Estado-Nação. Aurélien encarna uma razão estética, percebida como incapaz de lidar com a própria existência e os problemas que ela coloca. Uma razão marcada, por outro lado, por laivos de romantismo, manifesto no interesse pela Idade Média. Por fim Cécile, simboliza uma razão prática, preocupada com a família, submetida ao império da fé católica.

O destino dos membros da família Raison fornece uma chave para compreender o que está em jogo. Torna também patente o motivo pelo qual muitas análises vêem em Aniquilação um romance crepuscular e, ao mesmo, tempo uma obra onde existe um sopro de esperança. Édouard, durante todo o romance, está num estado de saúde mais próximo da morte do que da vida, fruto de um AVC. Independente das peripécias que o envolvem, que passam pelo seu rapto, de uma instituição de saúde pública, por parte da família, o que transparece é a doença da própria segurança do Estado. Também a doença que atinge Paul é um sintoma da doença de uma razão económica que se furta ao liberalismo e adopta o proteccionismo em nome do Estado-Nação. Paul não era ministro, apenas um membro do staff, mas seria uma espécie de voz da razão económica. O caso de Aurélien que se suicida torna patente a fragilidade da razão estética que se apoderou de parte do discurso ocidental. Na visão que se desprende do romance de Houellebecq, essa razão é impotente para lidar com os problemas que a existência coloca. Resta Cécile Raison. Nela a razão submete-se à fé, a um catolicismo que não se nega a si mesmo nem se põe em causa. Ela é a única que sobrevive verdadeiramente na tormenta que atinge a família Raison. Só ela resistiu ao processo de aniquilação da família. Há no romance uma visão crepuscular da cultura ocidental, mas é preciso compreender que no crepúsculo existe ainda uma luz, embora ténue. Essa luz é Cécile.

Muitas leituras do romance apontam a existência, nesta obra de Houellebeca, de um princípio de esperança e que este se revelaria no amor entre Paul e a mulher, Prudence, um amor que esteve posto entre parêntesis durante 10 anos, mas que pouco antes de Paul saber do seu estado de saúde se reavivou e foi uma luz na vida dele. Contudo, esse amor não tem qualquer poder salvífico e é impotente para contrariar o destino de Paul. Se o romance é marcado por um princípio de esperança, este só poderá residir em Cécile, isto é, numa conexão entre fé e razão. Também neste romance de Houellebecq se pressente a influência de Joris-Karl Huysmans, o romancista do século XIX que começou no naturalismo, passou pelo decadentismo e acabou numa conversão ao cristianismo. A doença mortal que atinge, no romance, Paul Raison é a mesma que levou à morte Huysmans, uma espécie de sinal de reconhecimento de Houellebecq para com o escritor do século XIX. Raison não chega a dar o passo que deu Huysmans, embora, em certos momentos, o leitor fique com a ideia de que está próxima uma conversão. Contudo, o facto de Cécile ser a única Raison sobrevivente torna manifesto, de um modo claro, onde permanece ainda, para o autor, um sopro de esperança para o Ocidente e, em particular, para França. A salvação não se encontra nem nos delírios estéticos, nem numa razão de Estado que combine a segurança hobbesiana e o intervencionismo económico colbertista, mas nessa aliança entre fé e razão, que um dia deu vida ao Ocidente, mas que se lhe tornou completamente estranha com a vitória do liberalismo. Na verdade, um programa não muito diferente do de Joseph de Maistre.