sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Jonathan Littell, As Benevolentes


O título do livro de Jonathan Littell, As Benevolentes (Les Bienveillantes, no original francês), coloca a obra sob a égide de Ésquilo e da Oresteia, isto é, da tragédia clássica grega, o que é acentuado pela dimensão musical presente na denominação dos capítulos (Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabanda, Minuete em rondó, Air, Giga). O que nos pode indicar que, em última análise, estaríamos, com a violência desencadeada pelo nazismo, perante a emergência transbordante, no palco do mundo, das forças dionisíacas, com os seus grandes cortejos dançantes de horror e sangue.

Por outro lado, a matéria da narrativa, os acontecimentos da II Guerra Mundial, e a mescla de personagens fictícias e de personagens reais colocam o romance na categoria de romance histórico. A história seria agora contada por um daqueles que perdeu, Maximilien Aue, um oficial das SS, por um dos inúmeros carrascos que levaram a morte a milhões de pessoas em nome de uma ordenação do mundo segundo uma delirante hierarquia rácica. A figura do carrasco não deve ser lida como mera metáfora indiciadora de um comportamento de violência extrema. Deve ser tomado no sentido estrito do funcionário encarregado de executar uma sentença de morte.

Vale a pena recordar a caracterização feita pelo conde Joseph de Maistre, em Les Soirées de Saint-Petersbourg, da figura do carrasco (ler o excerto). É uma figura inexplicável pela lógica humana, evidenciando, na verdade, uma eleição divina, e, ao mesmo tempo, é o horror e o laço que permitem aos homens viverem uns com os outros. Sem ele, “a ordem dá lugar ao caos, os tronos precipitam-se no abismo e a sociedade desaparece”. O carrasco é, pelas características sublinhadas por Maistre, uma figura apolínea, cuja função é assegurar que as sociedades continuem a funcionar, eliminando aqueles que as põem em perigo. Apesar do temor que provoca nos homens e do horror da sua profissão, ele tem prazer na qualidade do trabalho que executa, na sua eficiência e eficácia, no cumprimento estrito do dever.

O que torna o romance de Littell particularmente interessante é o casamento das forças dionisíacas e apolíneas nos nazis alemães. A personagem de Maximilien Aue serve para uma longa meditação narrativa sobre a natureza do carrasco. O oficial SS constitui-se como arquétipo de todos aqueles que acreditaram ser sua missão no mundo eliminar todos os que, por natureza racial ou por convicção ideológica, se opunham à sociedade distópica nascida na mente dos responsáveis políticos nazis. Nele confluem, em tensão, tanto na vida pessoal como na acção político-militar, as pulsões dionisíacas e a inclinação apolínea.

A construção da vida pessoal de Aue, decalcada da Oresteia, tem por fundo o desaparecimento do pai e o ódio que devota à mãe, que acusa de ser responsável pelo abandono a que a família foi votada. Do pai, na verdade, nada se sabe, mas Maximilien parece estabelecer, pelo menos inconscientemente, uma analogia entre o desaparecimento do pai e a morte de Agamémnon às mãos de Clitemnestra, sua mulher, e de Egisto, o amante desta, na primeira peça da Oresteia. Ele é um Orestes abandonado que possui um ódio nunca disfarçado à mãe. Embora, o romance nunca o esclareça, tudo indica que Maximilien seja o responsável pelo assassinato da mãe e do padrasto, numa reactualização da tragédia de Ésquilo.

Esta dimensão da formação do carácter da personagem principal é completada pela relação incestuosa que mantém com a irmã gémea Una. Esta acabará por ultrapassar a situação e colocar o incesto como uma mera experiência do passado que não pretende repetir. Max, porém, nunca abandona o desejo de união e de fusão com e na irmã. Este desejo frustrado de se perder na fêmea original (Una remete para a ideia de uma unidade primordial, para uma indistinção entre o masculino e feminino) é o outro lado da sua sexualidade marcada pela homossexualidade, na qual ele, ao entregar-se passivamente a outros homens, acaba por se reencontrar como sendo a sua própria irmã gémea.

Toda esta dimensão trágica, marcadamente dionisíaca, tem contudo uma contrapartida apolínea. Esta dimensão residirá menos no Max Aue que escapa, no pós-guerra, à Alemanha e à punição, casando em França, constituindo família e dirigindo os seus negócios, do que na sua formação. A formação em direito e o interesse na área da filosofia – para além de uma cultura alargada no campo da literatura e da música – dão ao narrador e protagonista da obra uma dimensão de racionalidade adequada à pulsão apolínea. No entanto, esta pulsão apolínea não se manifesta na ordem moral ou política severa, mas na dimensão técnica, na eficiência com que se entrega às suas funções de oficial das SS, sejam essas as de matar ou as de calcular como tornar os campos de concentração mais eficientes para o esforço de guerra nazi.

O romance de Littell permite deste modo encontrar uma explicação para o mistério da função do carrasco, mistério esse sublinhado por Joseph de Maistre. De um ponto de vista abstracto, poder-se-á dizer que o carrasco resulta de uma combinação das pulsões dionisíacas com as apolíneas, mas onde as primeiras, com todo o seu desejo de destruição das formas e das diferenças, não são contidas pelas segundas, as quais abandonam a sua preocupação com a ordem moral e política do mundo, como acontecia na antiguidade clássica, para se concentrarem nos aspectos técnicos da acção no mundo.

O carrasco é, na verdade, uma figura metafísica tal como a intuíra Joseph de Maistre, mas não por ter sido o resultado de uma escolha divina. O carrasco é o resultado de um desequilíbrio entre as forças destruidoras e caóticas do dionisismo e das forças racionalizantes e ordenadoras da dimensão apolínea. Este desequilíbrio, na idade moderna, manifesta-se pela sujeição da razão à técnica. A razão não serve agora para suster as pulsões destrutivas mas para as tornar eficazes, trazendo uma ordem à produção do caos. O carrasco é o resultado de uma falência das forças formadoras do indivíduo. Num tempo em que a quantidade se sobrepôs à qualidade, o nazismo significou a multiplicação dos carrascos, transformando milhões de seres humanos aparentemente normais nessa figura sinistra, da qual todos se afastam.

A formação do carácter de Maximilien Aue é apenas uma parte do romance. A outra é a da sua acção. O leitor acompanha o percurso do oficial nazi na frente Este. Da Ucrânia a Estalinegrado, Jonathan Littell dá a ver a organização meticulosa do exercício da função punitiva que cabe aos carrascos. No caos da guerra, na grande dança báquica que é todo o conflito militar, Aue e os outros oficiais alemães emergem como um princípio de racionalidade. Ora esta racionalidade técnica – a procura de eficácia no combate, no genocídio e na prática de outros crimes de guerra, bem como na organização dos campos de concentração – está ancorada em duas ideias centrais. Em primeiro lugar, a convicção de que os alemães são não um povo eleito mas o povo eleito. Esta eleição permite-lhes tudo para ordenar o mundo segundo essa crença. Tamanha fé, como toda e qualquer grande fé, traz com ela um dever ser, um imperativo ou mandamento que ordena agir em conformidade com aquilo em que se crê.

Os crimes não são, desse modo, para os nazis e para o próprio Aue, apesar da sua sofisticação intelectual, crimes mas o mero cumprimento do dever. O que poderá haver de repugnante na prática de certo tipo de acções – fisiologicamente repugnante, sublinhe-se – com a continuidade torna-se um hábito, e um hábito, como ensinou Aristóteles, é uma segunda natureza. Esta conjugação da crença na eleição do povo alemão, com a concomitante desqualificação dos não alemães à condição de sub-humanos, e do dever que a razão deduz dessa crença conduz-nos a uma consciência não atormentada pelo mal praticado. E este é o ponto central. A acção de um carrasco só é possível porque, na sua consciência, se legitimou o direito a torturar, violentar e executar todos aqueles que a ordem política nomeia como objectos do seu trabalho. É essa consciência que permite a Maximilien Aue dizer, logo no início do romance, que  desde “o fim da guerra mantive-me um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns meus ex-colegas, de escrever as minhas Memórias com intuitos de justificação, porque nada tenho a justificar”.

O que Jonathan Littell nos dá a ver é a formação e o funcionamento, num singular cruzamentos de pulsões dionisíacas e de inclinações apolíneas, da consciência do carrasco. O mal que este pratica não lhe afecta a consciência e, por isso, não sente quaisquer remorsos ou necessidade de justificação ou de prestação de contas. E não o sente porque as suas acções dimanam de uma ordem supra-pessoal, provêm do poder político, ao qual os agentes se limitam a obedecer, pois esse é o seu dever. Como diz Aue: “Não me arrependo de nada; fiz o meu trabalho, e foi tudo”. Em última análise, através da figura de um carrasco, daquele que pratica o mal por dever, somos colocados perante o enigma do poder político, o qual assenta no carrasco e, por isso, o legitima.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Julian Barnes, O Sentido do Fim


A tradução portuguesa do título talvez perca alguma coisa presente no original inglês, The Sense of an Ending. Não por ter traduzido sense por sentido e não por sensação ou sentimento. O romance de Barnes é, de certa forma, um inquérito e, como tal, o termo sentido reenvia para um processo de racionalização, enquanto as outras traduções possíveis abririam a interpretação para uma perspectiva de ordem afectiva, algo que, na intriga romanesca, não está em jogo. A questão surge na tradução de an ending por (d)o fim. O leitor pode imaginar que, estando o narrador/protagonista, Anthony Webster, na parte final da vida, o fim que está em jogo seja o dessa própria vida. No entanto, o inquérito, que vai permitir pensar essa vida, visa apurar o sentido do desenlace de uma outra vida, de um amigo de Webster que se suicidou há 40 anos. Qual o sentido daquele desenlace? Quais as responsabilidades do narrador nesse desenlace? Como esse acontecimento afecta a imagem e a verdade que tem de si mesmo? A utilização, em inglês, do artigo indefinido remete para uma indeterminação do sentido desse desenlace, o que é mais consentâneo com este questionamento do que o artigo definido da tradução portuguesa.

Surpreendentemente, nas recensões críticas que li da obra, nenhuma a mostrava como mais uma variação de O Estranho Caso do Dr. Jekill e Mr. Hyde. Não se trata de refazer, em termos contemporâneos, a experiência científica que teria levado à cisão do afável Dr. Jekill e a concomitante segregação do seu alter-ego, o tenebroso Mr. Hyde. O que está em jogo é a descoberta, passados 40 anos, daquilo que no protagonista e narrador, Anthony Webster, havia de Mr. Hyde, e que nunca tinha sido reconhecido, permanecendo recalcado ao longo de toda uma vida.

O romance está dividido em dois momentos. No primeiro, anos sessenta, narra-se a vida de um grupo de amigos, no seu tempo de liceu, a irreverência, a prosápia, as pretensões excessivas, enfim tudo aquilo que acompanha o excesso hormonal da primeira juventude. Julian Barnes, contudo, dá uma imagem dos anos 60 bastante diferente da habitual. A libertinagem sexual, o consumo de drogas, a liberdade irrestrita de uma juventude mais ou menos dourada - imagens de marca desses anos - são vistos de forma bastante mitigada e quase como fenómenos marginais. A maioria dos jovens não viveu aquele tipo de vida, pelo contrário. A moral era tradicional e a liberdade sexual raramente chegava à consumação de uma relação genital. É nesta época que decorrem os acontecimentos - uma visita a casa da namorada, um quase triângulo amoroso, o suicídio de um amigo, precisamente um dos vértices do triângulo - que vão estar no centro das preocupações do narrador e protagonista, quarenta anos depois.

O segundo momento começa, passados quatro décadas, com uma estranha herança. É a partir daí que se vai desencadear o processo que leva a uma reavaliação de si mesmo por Anthony Webster. A dado momento Barnes escreve: «Quantas vezes contamos a história da nossa vida? Quantas vezes adaptamos, embelezamos, fazemos cortes matreiros? E, quanto mais a vida avança, menos são os que à nossa volta desafiam o nosso relato, para nos lembrar que a nossa vida não é a nossa vida, é só a história que contámos sobre a nossa vida. Que contámos aos outros mas - principalmente - a nós próprios (p. 100).» O que está em jogo é - em primeiro lugar - o problema da verdade. Qual a verdade de uma vida? Como é que os acontecimentos vividos - os pensamentos, palavras acções e omissões - são retidos, catalogadas, inscritos no plano da veridicção. A verdade de uma vida surge como um texto, um texto sempre em aberto que, continuamente, pode ser editado, transformado, apagando ou acrescentando pormenores. Há um problema de difícil resolução na relação entre a narrativa que se faz de uma vida (seja o próprio ou terceiros) e a realidade substantiva dessa vida, como se a narrativa fosse, ao mesmo tempo, o lugar impossível de emergência dessa verdade e o único onde essa mesma verdade pode emergir. Uma verdadeira aporia. Usando o jargão filosófico, temos um problema ontológico e um problema epistemológico. Qual a efectiva realidade de uma vida? Que capacidade tem a narrativa para dizer a verdade dessa vida?

Se estas questões perpassam no texto de Julian Barnes, há ainda um terceiro problema filosófico, um problema de natureza ética. Qual a autenticidade com que me narro? Não se trata aqui de uma erro epistemológico, uma ilusão na apreciação da vida vivida, mas da distorção, mais ou menos propositada, dessa vida, o seu acomodamento ao que é confortável pensar sobre si mesmo. No romance em causa, os estratos ontológico e epistemológico (é evidente que estas palavras nunca ocorrem no texto de Barnes, uma pura narrativa romanesca) são o suporte da interrogação sobre a autenticidade com que os seres humanos se descrevem e se narram. Durante toda a vida, o protagonista recalcou o episódio que tornava manifesto o seu lado Mr. Hyde. Recorde-se a homofonia entre o nome próprio Hyde e o verbo hide (ocultar, esconder). A distorção dos factos é ainda uma expressão de um carácter distorcido, de alguém que lida mal com a veracidade do que ocorreu, que sente necessidade de a apagar, de a ocultar.

A questão ética da autenticidade liga-se a uma questão mais geral, a da identidade: Quem sou eu? Como se verá de imediato, a questão da identidade emparelha com a da avaliação de si: «Do ponto de vista de Adrian [o amigo que se suicidou na juventude], eu desistia da vida, desistia de a examinar, tomava-a  como a via. E assim, pela primeira vez,  comecei a sentir um remorso mais geral e aversão a mim próprio - em relação à minha vida toda. Toda. Tinha perdido os amigos da minha juventude. Tinha perdido o amor da minha vida. Tinha desistido das ambições que acalentara. Tinha querido que a vida não me incomodasse demasiado, e tinha conseguido - e como isso dava pena!» E logo de seguida acrescenta: «Mediano, era o que tinha sido desde que saí da escola. Mediano na universidade e no trabalho; mediano na amizade, lealdade e amor; mediano, sem dúvida no sexo (p. 104).»

O processo de uma vida examinada e avaliada é um elemento estrutural da arte romanesca. Para que haja narrativa e não mera descrição factual é necessária uma des-coincidência do protagonista consigo mesmo. É esta des-coincidência que torna a identidade problemática, imprecisa. Julian Barnes, ao tomar como narrador o próprio protagonista, fá-lo não como um narrador omnisciente mas como narrador impreciso, que se interroga, que acompanha o leitor na descoberta dos factos e da verdade. Anthony Webster descobre - mais do que as suas atitudes tortuosas e as possíveis implicações destas no suicídio do amigo - a verdade sobre si. No fundo, as pessoas sonham, nos primeiros tempos da juventude, desmedidamente sobre o seu destino. A generalidade fica pela mediania.

Na estratégia romanesca de Barnes, a descoberta da identidade como mediania está ligada à distorção dos factos ocorridos na longínqua juventude. A mentira a si mesmo e a composição de uma narrativa ocultadora de certos acontecimentos são elementos centrais desse ser mediano. A mediania nasce da traição a si mesmo. Contudo, a leitura não deve ficar por aí. A descoberta da verdade sobre si e a desocultação da sua identidade como ser mediano, medíocre, não são eticamente neutras. A verdade é uma pena infligida pela própria vida. Subtilmente, o autor revela o mecanismo de falência existencial: a mentira a si mesmo, uma mentira que nem os quarenta anos de vida corrente ocultaram definitivamente. O surpreendente é que se revela aqui um fenómeno nuclear no problema da identidade. A identidade não é meramente a questão da verdade de cada um. A procura dessa veracidade, enquanto exercício de avaliação de uma vida, é o caminho para o cerne da questão da ipseidade (termo usado em certas filosofias para a questão da identidade): o exame de si mesmo remete para a ideia de um juízo, de um julgamento, mas também de uma pena. No centro da nossa identidade não está o nosso ser verdadeiro, mas um processo de natureza jurídico-penal. A questão da identidade (quem sou eu?) nada tem a ver com a natureza do nosso ser mas com o processo pelo qual, ao julgar a vida vivida,  instituímos uma identidade que pode ser suporte de uma pena ou, eventualmente, de um recompensa. Um processo que, devido à natureza e à tradição da nossa cultura, apenas prescreve - se prescrever - com a morte do processado.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Mathias Enard, Bússola


Bússola, o sexto romance do francês Mathias Enard, prémio Goncourt de 2015, é uma obra que está colocada sob o signo do desconcerto. Este manifesta-se nas duas coordenadas essenciais da obra. A insónia e a bússola que em vez do Norte aponta o Leste, o Oriente. É neste enquadramento que Franz Ritter, um musicólogo de Viena, fascinado pelo Oriente, por Sarah, uma orientalista deambulante, e temeroso das opiniões da mãe e dos resultados que estão para vir de uns exames médicos, se vai entregar a um longo exercício de rememoração da sua vida e dos seus interesse. Esta rememoração – é sempre difícil fugir à tutela literária de Platão – é um questionamento sobre a verdade das relações entre o Ocidente e o Oriente, entre nós e o outro.

Estar num estado insone é encontrar-se em plena perturbação. Esta perturbação é marcada por uma ambiguidade. Por um lado, o estado vígil parece trazer uma grande lucidez racional ao espírito. Há na insónia uma racionalidade hiperbólica. Por outro lado, aquilo que alimenta a insónia é a impossibilidade de dominar razoavelmente os pensamentos, que se atropelam numa associação incontrolável. É este o estado de Franz Ritter, perturbado e em pleno desconcerto. Franz Ritter, porém, é a imagem do Ocidente actual, da sua perturbação e desconcerto. Um Ocidente que sofre de uma hipertrofia da razão e que, por isso mesmo, perdeu a razoabilidade e o controlo de si e da sua vida.

É neste estado que, entre as 23:00 e talvez as 7:00 da manhã seguinte, as relações do Ocidente e do Oriente são revisitadas. Revisitadas nas histórias de orientalistas e aventureiros que se deixam seduzir pelos países muçulmanos – da Síria à Pérsia – e por lá encontram, entre o triunfo e a morte, a razão de viver, mas também na dívida que a música – a grande música erudita – e a literatura ocidentais terão para com esse Oriente. O Oriente será então esse outro que está em nós e nos constitui. Contra a construção do muçulmano – a partir da experiência do terrorismo e dos acontecimentos dos últimos tempos – como um outro radicalmente diferente, Mathias Enard aposta, através do exercício de rememoração de Ritter, na suposição de construções identitárias fluidas, onde as contaminações são o essencial. Contra os muros da ideologia, o autor joga, segundo o próprio, a carta das pontes que ligam o que parece separado e diferente.

Esta intenção é corroborada por entrevistas de Enard. A questão, porém, é que as obras, ao serem publicadas, fogem ao autor. Este passa a ser um leitor entre outros dessas obras e a sua leitura, até porque enviesada, não possui mais autoridade que qualquer outra. Na verdade, esta apologia das pontes e da contaminação é colocada sob o signo do estado perturbado da insónia. Ela é o resultada de uma falência fisiológica. Ritter delira acordado. O próprio carácter da personagem – a sua dependência da opinião maternal, a sua timidez erótica, a sua fragilidade perante o médico – têm um efeito deletério em relação à intencionalidade explícita do autor. Há nele um excesso de desejo a que não corresponde uma vontade capaz de realizar o desejo. Efectivamente, ele é impotente para construir qualquer ponte, como se compreende da sua relação amorosa com Sarah.

Este desconcerto é acentuado com a história da bússola, uma lembrança oferecida por Sarah ao musicólo insone. Esta é duplamente desconcertante. Desconcerta porque aponta o Leste e não o Norte. Este desconcerto, porém, é fruto de um outro. É causado por um truque na construção da bússola, onde a agulha magnética está oculta sob o mostrador, estando visível uma agulha falsa acoplada à primeira de tal forma que quando a agulha invisível aponta o Norte a que se vê aponta o Leste. A metáfora da bússola mostra-se assim mais complexa do que parece. O que ela nos diz é que toda essa atracção dos ocidentais pelo Oriente, toda a construção de pontes e de identidades fluidas fruto da contaminação, tudo isso é resultado de um truque, de um engano, de uma falsificação. Mais do que a grande erudição invocada pelo autor – Pessoa, por exemplo, é visita frequente – ou as descrições desse oriente, o que fará a fortuna do romance de Mathias Enard será o desconcerto entre a intenção proclamada pelo autor e o poder de a contrariar que as metáforas usadas – a insónia e a bússola – possuem na economia narrativa. Talvez um autor nunca devesse abrir a boca sobre a obra que produz. Talvez.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Herta Müller, Hoje preferia não me ter encontrado


Se se disser que o romance Hoje preferia não me ter encontrado, de Herta Müller, é um retrato da Roménia comunista sob a dominação de Ceuasescu, diz-se a verdade e, no entanto, falha-se o essencial. Não é um romance de denúncia política mas a revelação de um modus vivendi, como acontece nos regimes totalitários, em que a política se imiscui em todos os aspectos da vida privada. Publicado pela primeira vez em 1997, numa época onde, no Ocidente, o domínio público estava já sob a ameaça dos interesses e pontos de vista meramente privados (a célebre dissolução, que ainda não parou, da esfera pública), a obra de Herta Müller reenvia para uma experiência totalmente diferente, de natureza orwelliana: o Estado interfere nos mais ínfimos pormenores da intimidade.

Não há obra romanesca que não seja um diálogo com o cânone literário. Este romance não foge à regra. A anónima protagonista e narradora é intimada, mais uma vez, para se apresentar na sede da polícia política do regime. O romance é composto por duas narrativas paralelas que se encontram não no infinito, mas no próprio acto de narrar (talvez a narrativa seja o infinito mais próprio do homem). Narra-se a viagem de eléctrico de casa à sede da Securitate e, ao mesmo tempo, é narrado o fluxo de consciência da própria narradora, onde flui a sua vida passada e presente, a vida dos que lhe estiveram próximos, o retrato do país. Se a intimação e as contínuas apresentações na polícia política (o motivo liga-se ao envio ao acaso de bilhetes, onde se oferecia em casamento, nos bolsos de calças exportadas para Itália) remetem para o arquétipo do Processo de Franz Kafka, já a viagem - ou a dupla viagem, a de eléctrico e a memorial - tem o seu paradigma na Odisseia, de Homero, a viagem de retorno de Ulisses à pátria.

A viagem de eléctrico é, já por si, uma alegoria da vida na Roménia, alegoria fundada no arbítrio do guarda-freio, na forma despótica como gere o eléctrico, como dispõe da viagem dos passageiros. Mas essa viagem, com o seu equívoco final que conduz a uma subtil revelação que ameaça enlouquecer a protagonista, é o suporte para uma outra no próprio fluxo da consciência. Vale a pena convocar para a leitura a relação do tempo com a consciência, segundo Santo Agostinho. Para este existe um triplo presente. O presente do passado, a memória, o presente do presente, a visão, e o presente do futuro, a expectativa. A viagem de eléctrico entre casa e o edifício da polícia política é o presente do presente, a visão in loco do que ocorre, a presença imediata à consciência de um conjunto de pequenas peripécias que atestam a natureza distópica da própria realidade social. A substância da narrativa, contudo, está ligada ao presente do passado. Ela é uma presentificação desse passado pelo exercício da memória. Através de um sem número de analepses, recordações e de histórias laterais, a memória convoca a vida da protagonista e da própria sociedade romena. Ao torná-la presente, a memória, através da narrativa, oferece uma intuição quase visual da natureza sórdida da vida na Roménia comunista. Sordidez proveniente do imiscuir do Estado na vida privada, mas também sordidez resultante da corrupção do carácter das pessoas trazida pela a acção deletéria do Estado totalitário.

A identidade é uma construção que vamos aprendendo a estabilizar. A estabilidade provém da confiança com que nos relacionamos com a envolvente social. Se ela permanece continuamente equívoca e ameaçadora, não há quem seja capaz de construir uma persona sólida. O facto da protagonista/narradora não apresentar nome é já um indício de uma perturbação da identidade. O título do romance introduz uma maior equivocidade: Hoje preferia não me ter encontrado (Heuter wär ich mir lieber nicht begegnet). O título resume as duas viagens, a do eléctrico e a memorial, como um encontro consigo mesma. Parece estarmos perante a solidificação de uma identidade, a afirmação de uma subjectividade, a da narradora/protagonista, plenamente definida e assumida. No entanto, a referência negativa (preferia não...) ao encontro consigo mesma desfaz essa conquista de uma identidade.

Se Ulisses no fim da viagem encontra os braços de Penélope, se Joseph K, apesar de não saber de que era acusado, foi executado, o que deu uma razão teleológica ao seu processo (os processos não são instaurados porque se fez qualquer coisa que mereça uma pena, mas porque uma pena no fim do processo o justifica a posteriori), a protagonista/narradora anónima não ganha um nome no fim da sua viagem. Pelo contrário, o que o acaso da viagem lhe traz é uma desconcertante revelação, tão subtilmente exposta no texto que muitos leitores não dão por ela, sobre a pessoa em quem ela mais confia (revelação que surge como suspeita da mais crua intervenção do Estado na intimidade). O livro acaba com a frase: "Ah, ah, enlouquecer, não." A sentença final remete-nos para o terceiro presente de Santo Agostinho, o presente do futuro. A única expectativa que se abre a alguém, num regime totalitário onde a acção do Estado tudo controla e tudo corrói, é a de não perder a razão.  Não se trata já de solidificar uma subjectividade, de moldar uma identidade. Trata-se apenas de não enlouquecer. Imaginar, porém, que os regimes totalitários são os únicos que conduzem os homens a tal situação é enganarmo-nos sobre a natureza da literatura. Um regime totalitário num romance ainda é uma metáfora (ou uma alegoria, que não passa de um conjunto de metáforas) que deve ser lida enquanto metáfora, no desconcerto lógico que toda a verdadeira metáfora introduz.

Divida-se o processo metafórico em dois momentos. No primeiro, temos a metáfora expressa, neste caso "regime totalitário". Dar-lhe-emos o nome de metaforizante. No segundo, aquilo que foi substituído pelo metaforizante, o metaforizado. O metaforizado não é nada de definido, não é um termo próprio e adequado, mas um espaço vazio que o metaforizante veio impropriamente ocupar, estabelecendo-se como metáfora, conferindo uma significação inesperada e estranha ao discurso. Se o "regime totalitário" do texto é também uma metáfora, cabe ao leitor preencher o lugar vazio, o metaforizado, onde o metaforizante "regime totalitário" se veio instalar enquanto metáfora. Dito de outro modo: o que é que esta metáfora do "regime totalitário" dá a ver das nossas vidas que não decorrem, segundo a classificação habitual dos regimes políticos, em nenhum regime totalitário? Será isto pertinente? Se o livro foi publicado em 1997 na Alemanha, numa editora alemã, escrito em alemão, podemos suspeitar que a obra, ao tratar da vida na Roménia, esteja a meditar sobre a vida dos homens em geral, nomeadamente nos países ocidentais, talvez mesmo em qualquer lugar.

domingo, 27 de novembro de 2016

Anton Tchékhov, O Duelo


O Duelo, novela de Anton Tchékhov, tem uma natureza polifónica, resultando a intriga da conjugação das diversas perspectivas narrativas que ora se confrontam ora se conciliam, em busca de uma reconciliação final. A obra data de 1891 e coloca em confronto, numa pequena cidade do Cáucaso, um funcionário público com formação superior, Ivan Laévski, símbolo da preguiça e da devassidão, e a sua amante, Nadejda Fiódorovna, uma intelectual volúvel e instável que abandonara o marido por Laévski, com o zoólogo, von Koren, que transporta os valores iluministas próprios do terceiro estado. Este confronto é mediado por um médico militar, Aleksandr Samóilenko, generoso e de origem aristocrática, e por um jovem diácono em início de carreira eclesiástica, representante da fé e do amor crístico.

Tchékhov explora o papel do ódio e da traição no processo de reconhecimento de si e de conversão aos valores socialmente aceites, os valores da família e do trabalho. A conduta de Laévski e de Fiódorovna não atrai apenas a má-língua dos meios sociais onde se movem, mas o ódio e o desprezo explícito do cientista perante a falsidade daquele tipo de existência. O que é uma vida autêntica? Esta é a interrogação que funda a intriga. O rigor do homem que busca a verdade, von Koren, a sua exigência de autenticidade, são desafiados pela falsidade existencial do casal desviante. Que o paladino da autenticidade e veracidade existenciais humanas seja um zoólogo, isso não significa apenas cobrir essas exigências com o prestígio da verdade, ideal regulador da praxis científica. Essa transposição da verdade, presente na construção das taxonomias zoológicas, para o comportamento humano significa ainda uma subtil ironia acerca da condição humana e da sua própria verdade.

Esta estratégia irónica de relativização da posição de von Koren é corroborada por uma confrontação lateral ao conflito central da novela. A intransigência do cientista perante Laévski surge em confronto com a bonomia e condescendência de Samóilenko e a caridade, em pleno duelo, do diácono perante o mesmo Laévski. Esta pluralização de atitudes tem a função de fazer ressaltar mais claramente a natureza do zoólogo, ao mesmo tempo que sublinha os limites desse novo mundo que começa a emergir na Rússia, e que triunfara há um século atrás em França.

A conversão de Laévsky aos ideais do trabalho e da família é mediado por dois momentos onde a verdade surge como alétheia (ἀλήθεια), isto é, como desvelamento ou desocultação, para retomar a interpretação do termo grego feita por Martin Heidegger. No primeiro momento, Laévsky constata o ódio e o desprezo do zoólogo, o que conduz directamente ao momento agónico da narrativa, o duelo entre os dois. Essa primeira revelação prepara a segunda, onde descobre - não por uma informação de terceiros mas porque terceiros o levam a presenciá-la em acto - a traição da sua amante. Ele que se preparava para a abandonar, cansado dela, acaba por ter, naquele instante e perante a verdade da volubilidade dela, uma epifania do seu amor por Nadejda Fiódorovna.

O duelo surge como um momento de morte e de ressurreição para Laévski. Von Koren não o mata devido à inopinada e caridosa intervenção do diácono, mas o facto de Laévsky se ter entregado à morte com coragem acaba por ser o momento decisivo da sua ressurreição, a qual assenta no reconhecimento de si, na auto-reconciliação e na reconciliação com os valores socialmente aceites. Há uma estrutura dialéctica, quase à maneira de Hegel, neste processo. Ela manifesta-se no papel do negativo - o ódio, a traição e a morte - na ressurreição de Laévski, através do reconhecimento e da reconciliação. Manifesta-se ainda no processo de relativização de todos os pontos de vista em jogo. O próprio rigor moral kantiano - uma moral absoluta e incondicional - de von Koren é relativizado pelo reconhecimento que este faz do valor de Laévski e da reconciliação final entre ambos.  A moral burguesa que parece sair vitoriosa é, por seu turno, relativizada pelo sublinhar do ar lastimável, apesar de reconciliado com o seu destino, que agora Laévski apresenta. 

O duelo é a metáfora da dialéctica existencial, onde nenhuma das posições é verdadeira, fazendo todas elas parte de uma verdade que se desvela, para o leitor e não para as personagens, na articulação e no confronto entre as partes. A vida autêntica não era a do primeiro Laévski, nem a do Laévski reconciliado com o destino, nem a do zoólogo. As vidas privadas são vidas privadas de verdade, a sua autenticidade é a de serem inautênticas. "Ninguém conhece a verdade verdadeira", pensava Laévski. De facto, esta não reside em ninguém mas na vida tumultuosa que, como o turbilhão infinito de átomos que se entrechocam ao acaso, segundo os antigos atomistas, lança uns contra os outros, ora em confronto ora em apaziguamento. A polifonia narrativa foi a estratégia estilística encontrada por Tchékhov para figurar e configurar esta vida exuberante e a sua dialéctica existencial. Melhor, a polifonia narrativa foi a estratégia usada por Tchékov para transformar o caos das paixões humanas numa figuração que pode ser lida como dialéctica.

domingo, 20 de novembro de 2016

Knut Hamsun, Os Frutos da Terra


O sucesso internacional de Os Frutos da Terra (Markens Grøde, no original norueguês), publicado em1917, é apontado como uma das causas decisivas para a atribuição a Knut Hamsum do Prémio Nobel da Literatura, em 1920. O romance é, na verdade, uma espécie de epopeia centrada na glorificação da vida na terra e do valor da persistência do indivíduo perante os problemas que a natureza e a sociedade lhe colocam. No centro da narrativa está um herói inesperado, o colonizador de terras pantanosas da Noruega, Isak de Sellanraa. Esta epopeia, apesar da poeticidade inerente ao apelo da Terra e ao carácter ferozmente individualista do herói, inscreve-se claramente no combate que Knut Hamsun – ele que foi um dos grandes modernistas na literatura – trava contra a modernidade, em nome de uma relação mais profunda do homem com a natureza.

Apesar da importância no desenrolar da intriga  de figuras femininas como Inger, a mulher de Isak, Oline, parente de Inger e personagem perigosa pelo seu oportunismo e tendência para a coscuvilhice, e de alguns vizinhos, a obra funda o seu sentido em quatro protagonistas masculinos. O herói Isak, os seus filhos varões Eleseus e Sivert e o meirinho da aldeia próxima da quinta de Isak, Geissler, o qual foi destituído do seu posto ainda numa fase inicial da narrativa. Isak representa o ideal do homem em contacto com a natureza. Duro, persistente, trabalhador, mas marcado pelo grande amor à terra e à família. É a personificação do ideal do homem do campo, aquele que está em contacto com o que há de mais essencial na vida. Um individualista que, apesar desse individualismo, se liga à grande tradição dos homens que transformam, pelo trabalho, a terra num jardim. Tudo nele o afasta da modernidade, enquanto projecto ideológico contaminado pelo liberalismo económico e pela visão burocrática e desencantada do mundo. Curiosamente, Isak o inconsciente herói anti-moderno não desdenha as conquistas tecnológicas trazidas pela modernidade.

O meirinho Geissler é a personagem mais misteriosa do romance. Ele próprio se designa como sendo nevoeiro. Vê o que é certo, mas não tem o poder para o realizar, segundo afirma. Tudo nele é nebuloso. É nebulosa a história que o leva a perder o lugar de meirinho, como é nebulosa a sua vida posterior e os poderes que possui, entre eles a sua capacidade económica e a de influenciar a justiça. Desde o início que se constituiu como uma espécie de anjo protector de Isak de Sellanraa e da sua família. Ajuda Isak a adquirir os terrenos da sua quinta ao Estado, ajuda Inger, devido a um caso de infanticídio, perante a justiça, proporciona alguns negócios lucrativos à família. Tudo isto em troca de nada. No último capítulo, Geissler pergunta a Sivert quantas quintas há naquela zona. Este responde que são dez. Geissler diz então: Dez propriedades? Bem estou satisfeito. O país precisa de 32 mil homens como o teu pai, digo-te eu, que o calculei. Geissler é o anjo da ideologia, uma espécie de deus ex machina que resolve certos problemas e dá uma orientação e um sentido: Escuta, Sivert: alegra-te! Têm (os de Sellenraa) tudo porque viver, tudo com que viver, tudo em que acreditar, nascem e dão à luz, e são essenciais à terra. Nem todos o são, mas vocês sim: essenciais à terra. Sustentam a vida. Persistem de geração em geração e sentem-se completos ao simplesmente procriar; quando morrem, os filhos tomam o vosso lugar. É este o significado da vida eterna.

Sivert é importante na narrativa não apenas porque escutou a anunciação do anjo da ideologia, mas porque é o continuador da saga iniciada por Isak. Sivert é o segundo filho varão mas será ele que tomará em mãos a tradição sagrada do homem da terra. Não é a sua acção no tempo da narrativa que lhe dá importância, mas o facto de ele assegurar que a epopeia terá seguimento e que a terra continuará a ser trabalhada por gente vista como essencial. Eleseus é o elemento contrastante da família. Esteve, ainda jovem, num grande centro, onde adquiriu hábitos adversos à vida na terra. É a presença do mundo moderno no seio da família de Sellenraa. Um burocrata pouco vigoroso, talvez pouco masculino, demasiado preocupado com a aparência e incapaz para o confronto com a natureza. Mais do que os empresários e engenheiros ligados a uma mina de cobre adjacente à quinta de Isak, Eleseus é o representante do mundo moderno e liberal. Inquieto, consegue com a ajuda fraternal de Sivert algum dinheiro e parte, com promessa de voltar, para a América, o lugar do mundo moderno por excelência. Nunca voltou.

O que significa o facto de Eleseus nunca ter voltado? Significa que dali, onde a modernidade se instala, não há retorno possível a um lugar onde a vida seja autêntica. A América não é meramente um país, mas o território da modernidade liberal, o lugar daqueles que vivem rapidamente – que são relâmpagos, como assinala Geissler – e que confundem os meios com os fins. O lugar da confusão. Não se fica a saber nada do destino de Eleseus, apenas que não voltou. Este silêncio, na economia da narrativa e da ideologia do autor, não é inocente. Seja o que for o que lhe tenha acontecido, o fracasso ou o triunfo, isso é irrelevante, porque a vida no mundo moderno é destituída de significação autêntica. A autenticidade reside no solo pátrio, na luta individual do herói com a natureza, até domesticar esta. Este silêncio é revelador de uma opção ideológica do narrador e do próprio autor. Por muito que simpatizemos com Isak e Sivert, por muito atraente que seja a epopeia narrada, por genial que seja a técnica de Hamsun – o uso da corrente de consciência e do monólogo interior, por exemplo –, o livro não deixa de ser inquietante e ajuda a perceber muito bem a atracção do autor pelo nazismo germânico, onde encontramos muito desta ideologia. Seja como for, uma grande obra a ler com toda a atenção.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Lev Tolstói, A Morte de Ivan Illitch


Podemos ler um livro de múltiplas maneiras. Uma delas é mobilizar aquilo que se sabe da psicologia e dos traços ideológicos do autor para dar um sentido à leitura, para legitimar essa leitura, dando-lhe uma certa tonalidade verídica. Entre os múltiplos pecados que cobrem a minha alma está o de nunca me interessar pela biografia dos autores. Quando leio as suas obras leio apenas as suas obras e não quero saber da sua vida. Sou um leitor egoísta, pois procuro numa obra aquilo que ela me faz pensar e não a projecção mimética de quem a escreveu, até porque não acredito que a arte seja projecção mimética seja do que e de quem for. Eu não quero encontrar o autor, quero descobrir-me a mim através da provocação que uma obra me lança. Descobrir-me significa não tanto construir a minha pretensa identidade – coisa que duvido que tenha – mas destruir as construções ilusórios que faço dela.

Vladimir Nabukov, alguém com uma autoridade literária infinitamente maior que a minha, diz que a A Morte de Ivan Illitch trata "não da Morte de Ivan mas da Vida de Ivan." E este dizer está escorado naquilo que Nabukov sabe ser o pensamento de Tolstói, a preocupação deste com o destino do homem espiritual. Diz Nabukov:  «De acordo com  Tolstói , o homem mortal, o homem pessoal, o homem individual, o homem físico, vai pelo seu caminho físico para o caixote do lixo da natureza; de acordo com Tolstói, o homem espiritual regressa à região sem nuvens do amor divino universal, um lugar de felicidade neutra tão caro aos místicos orientais.» Será assim, mas nada disso me ajuda a compreender a novela em causa.

Qual o papel da morte em A Morte de Ivan Illitch? Obviamente que a morte, através da sua delegada a doença, tem a função de ir destruindo o corpo físico de Ivan Illitch. A minha leitura, porém, situa-se numa outra perspectiva. A morte tem, na novela, a dupla função de separação e de individuação. Quando ela surge no horizonte da existência de Ivan Illitch gera um processo de separação com a realidade habitual, com a vida familiar, as relações de amizade e os compromissos de trabalho. Esta separação que, num processo relativamente longo e marcado pela agonia final, a morte opera não significa uma etapa de indiferenciação e de dissolução dos limites do indivíduo.

Pelo contrário, Tolstói, ao separar da vida habitual a morte (deveria escrever a Morte), vai constituir Ivan Illitch num indivíduo. A morte é aquilo a que os filósofos medievais – não se referindo a ela – chamam princípio de individuação. O que se assiste, a partir do momento em que Ivan Illitch suspeita que está condenado, é à operação da sua verdadeira singularização. O texto é muito curioso a este respeito. Narra como Ivan Illitch, transferido para S. Petersburgo, está entusiasmado com a decoração que ele próprio faz da sua casa, como ele a acha singular. Mas esta percepção da personagem não é corroborada pelo narrador, que evidencia que aquele tipo de decoração é idêntico ao de todas as casas das pessoas da mesma classe social. Na verdade, Ivan Illitch é como todos os Procuradores, é mais um na massa do estrato social a que pertence, com gostos e idiossincrasias idênticos.

São o sofrimento físico provocado pela dor e o sofrimento moral motivado pela impotência perante a morte que o confrontam com a sua singularidade e o mostram não como um mero elemento da espécie ou da casta social mas como ser singular e irrepetível. O texto narra longamente como a morte se vai insinuando no horizonte da existência de Ivan Illitch e como ela o leva a questionar a própria vida que, com tanto êxito, tinha levado até ali. Este questionamento das antigas assunções, as quais estavam de acordo com aquilo que era socialmente correcto, faz parte de processo de singularização e de individuação da personagem, o qual não teria sido possível sem o papel operador da morte.

O que o texto revela – a mim leitor que não quer saber do pensamento do autor – é o papel da morte como operador da nossa individualidade. A vida é um puro magma indiferenciado. É a morte que, ao operar sobre ela, ao trabalhá-la, ao exercer o seu papel de negação, vai extraindo desse magma indiferenciado um indivíduo, um ser singular e irrepetível. Não me torno indivíduo pela forma como vivo a vida, mas pela forma como a morte opera sobre mim, questionando-me, limitando-me e separando-me dessa pura indiferenciação a que chamamos vida.

domingo, 30 de outubro de 2016

Witold Gombrowicz, Pornografia


Um dos comentários mais correntes sobre o romance de Gombrowicz refere a inexistência de cenas pornográficas em toda a obra. “No sexual reality. Everything remains in acondition of sexual potential. It is exactly this that Gombrowicz calls pornography.” Esta leitura coloca, numa perspectiva muito aristotélica, a tensão romanesca entre o sexo em acto e o sexo em potência, dado por um clima erótico que nunca se concretiza. A pornografia seria, segundo esta perspectiva, esse estado potencial da sexualidade que não se realiza, que suspende a sua consumação e evita tornar-se efectiva. Uma leitura legítima. No entanto, vale a pena pensar mais demoradamente sobre o vocábulo que dá título ao romance.

Pornografia significa “representação de elementos de cariz sexual explícito, sobre tudo quando considerados obscenos…” (dicionário Porto Editora). Se se descer à etimologia da palavra encontramos porno- (do grego porné, prostituta) “elemento de formação de palavras que traduz a ideia de prostituição” (dicionário Porto Editora) e grafia que nos envia para a escrita, para a representação de algo através da escrita. Isto significa a existência de, pelo menos, duas camadas de sentido. 

O nível mais superficial do vocábulo remete para representação obscena, que fere a decência e o pudor, de uma sexualidade explícita. O nível mais fundamental vê a pornografia como uma representação do comércio sexual, da venda de favores sexuais. Estamos no domínio da troca, mas de uma troca específica. Toda a relação sexual está fundada na troca, mas numa troca que pressupõe uma certa reciprocidade nas coisas trocadas (prazer, afecto, amor, etc.). O que prostitui a relação sexual é a introdução de um elemento estranho à reciprocidade. Pode ser o dinheiro, mas também qualquer outro bem. Assim aquilo que a origem etimológica da palavra sublinha como pornográfico não é a prostituição, mas a representação dela, a sua grafia, o escrever sobre ela. Pornográfico é escrever ou representar trocas sexuais ou de prazer, mesmo que potenciais, assimétricas e sem reciprocidade.

O romance de Gombrowicz é pornográfico neste sentido último. É-o de duas maneiras. A primeira do ponto de vista da narrativa propriamente dita. A segunda, a partir da consideração sobre a natureza das obras de arte em geral. De forma bastante sub-reptícia, o romancista deixa transparecer, na história que narra, uma consideração sobre a própria arte enquanto atitude pornográfica, não precisando de dizer uma única palavra sobre o assunto. Limita-se a escrever o seu romance.

A história passa-se numa propriedade rural, na Polónia, aquando da ocupação alemã. Para lá dirigiram-se, vindos de Varsóvia, dois amigos de meia idade, um escritor e um encenador. Não se pense contudo que esse horizonte político tem um relevo decisivo na construção da narrativa. Na verdade, os parcos acontecimentos que têm a ver com a luta política – a perda de coragem de um dos chefes da resistência e a necessidade de ser executado – são mobilizados pela encenação e pela configuração da intriga pelos dois amigos, mas com fins ligados aos seus desígnios pornográficos. O que está em jogo é a tensão erótica entre os dois homens de meia idade e um par – Henia e Carol – de jovens de 16 anos. Estes nada têm a ver, do ponto de vista amoroso, um com outro. Henia está noiva de um advogado, Waclaw, e ambos sentem-se quase como irmãos. Mas Witold e Fryderyk, os dois amigos, descobrem, cada um por seu lado e através de indícios que eles próprios imaginam, que os jovens são feitos um para o outro. O hipotético amor entre ambos é uma criação literária de Witold (o nome próprio de Gombrowicz) e uma encenação de Fryderyk, o encenador. O que está em jogo, pelo menos numa primeira abordagem, é o modo como a arte – a do escritor e a do encenador – pegam nos elementos que a vida fornece e configura uma nova realidade de acordo com os desejos do artista.

O jogo de Witold e de Fryderyk está longe de ser inocente. Excluídos, pela idade, do prazer que a beleza juvenil fornece, encontram na sua “produção” o gozo erótico que a realidade lhes nega. Todas as manobras – na verdade, verdadeiros exercícios artísticos – que visam a aproximação amorosa de Henia e de Karol são representações de um erotismo que lhes foge. Como se percebe, há uma assimetria instalada entre os fruidores e os objectos da fruição. Os vários acontecimentos em que o candidato a marido de Henia se vê confrontado com a traição desta são verdadeiras encenações, exercícios de pura representação. E são de tal maneira representações cenográficas que Waclaw sente a completa artificialidade das cenas, a sua falsidade, e ao mesmo tempo pressente a traição de Henia, não no facto de haver uma relação sexual entre ela e Karol, mas no jogo representacional a que se entregam, como se os jogos – em aparência insólitos – transportassem uma carga erótica desmesurada, que a idade dos participantes não poderia alguma vez sustentar. A traição não está no acto, nem na sua possibilidade, mas na representação artificiosa desse mesmo acto.

Em nenhum momento do romance, Gombrowicz descreve uma cena sexual. A pornografia não está nos actos. Tão pouco está no clima potencial que, a cada momento, pode dar lugar ao exercício da sexualidade. Pornográfico é o jogo de representações que os amigos, através de uma subtil manipulação dos acontecimentos, produzem, explorando a assimetria entre os gozadores e os objectos do gozo. Não há qualquer reciprocidade entre Witold e Frederyk e Henia e Karol. A pornografia está toda na extracção de prazer através de uma representação a priori desse prazer e da manipulação da realidade de forma a que ela coincida com essa representação. Na manipulação dos acontecimentos por parte dos dois amigos encontra-se a assimetria que há entre o cliente e a pessoa prostituída. Assim como pornografia significa literalmente a escrita, a grafia, de uma assimetria na troca de prazeres eróticos, o que o romance encena é uma representação de uma assimetria entre os dois homens de meia idade e os jovens objectos de desejo, representação essa que se funda na invenção (mais uma representação) de um desejo, o dos jovens um pelo outro, que não existia. Estamos sempre no domínio das grafias, isto é, das representações e das ficcionalizações. Na verdade, existe aqui uma revelação. Não há prazer que não seja ficção e encenação, pura fabricação. 

Por outro lado, Pornografia pode ser lido como uma alegoria sobre a própria arte. Entre o artista e o consumidor de arte (o leitor de romances, o espectador de uma peça teatral, para nos fixarmos em dois exemplos da própria obra, os quais são extensíveis a todas as áreas artísticas) existe uma relação assimétrica. A pornografia nasce do facto do artista estar consciente dessa assimetria, de a representar e de querer que a realidade corresponda a essa assimetria. Uma troca não assimétrica residiria no facto de a cada narrativa recebida o leitor construir a sua narrativa e oferecê-la ao escritor, a cada encenação assistida o espectador em vez de pagar o bilhete produzir a sua própria encenação. Ora o mundo artístico implica a diferenciação e a assimetria. Implica que uns sejam activos, produtores de obras de arte, e outros receptores passivos. Sem esta assimetria a arte não poderia existir. Pornográfico, no entanto, não é a mera assimetria, a falta de reciprocidade entre autor e receptor, mas a representação que o artista faz dessa situação e o prazer que daí retira. Pornografia é a consciência de que se proporciona um dado prazer através de uma fabricação – a obra e arte – que requer e mantém a diferença absoluta entre o criador e aqueles que recebem – ou pagam – os artefactos criados.


Witold Gombrowicz (2012). Pornografia. Alfragide: D. Quixote. Tradução do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Thomas Mann, Os Buddenbrook


O romance permite, muitas vezes, associar o prazer estético da obra com uma certa aprendizagem sobre a dimensão social da vida humana. Não que o romance vise apreender e explicar o social, mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite que o leitor compreenda certas realidades de uma forma mais viva que aquela que lhe é dada pelo estudo de um documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da tradição burguesa da Europa central e do norte, de cariz protestante. O ethos burguês, uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio da cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a intriga nuclear da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não deixa de ter um ar estranho e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda reticência com que a Alemanha da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais curioso, aquilo que hoje se ouve acerca dos europeus meridionais era a voz corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros, seus irmãos do sul da Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É como se houvesse, impregnada na mente da espécie humana, uma espécie de racismo geográfico, onde o Sul surge sempre como inferior ao Norte.

No apogeu do sucesso empresarial, político e pessoal, Thomas Buddenbrook sente um deslassar interior como se os acontecimentos, que até aí dominara, começassem a fugir ao seu controlo. Não era nada de visível, apenas uma sensação interior. Os gregos diriam que a Tyche (a deusa Fortuna para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período helenístico, a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela concedesse os seus favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém, associa essa perda de domínio sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a realidade aos seus projectos, não ao abandono da deusa mas a um excesso seu. A sua nova casa, a troca da rica casa, onde se instalara ao casar, por outra maior e mais esplendorosa. Este excesso, esta ultrapassagem da justa medida, é aquilo a que os gregos do período clássico chamavam hybris. Embora Thomas Mann não fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo. Thomas Buddenbrook sente o delíquio interior como uma punição do seu excesso. Aqui, de forma talvez surpreendente, percebe-se a conexão entre o mundo burguês do século XIX e os gregos da antiguidade clássica. A ordem dos negócios, para os burgueses modernos, ou a ordem pessoal e cívica, para os antigos gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no auto-conhecimento, o qual nos diz que limites não devemos ultrapassar.

Havia, na época clássica dos gregos, a esperança de que uma conduta sensata evitasse os desvarios da fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna está sempre ligada a um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar. De certa maneira, Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa que a situação social lhe impõe. Deste ponto de vista, Os Buddenbrook escondem sob o modelo romanesco uma intencionalidade trágica. Mas aquilo que talvez seja mais interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época a que corresponde o romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é possível fazer uma conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi reduzido ao puro jogo (o jogo dos mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche, está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos aventureiros. Como no período helenístico, a Tyche tornou-se arbitrária e cega. Ora o período helenístico marca o começo do fim do esplendor dos gregos, o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só espantará quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.

Os Buddenbrook são um reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que dentro das famílias não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.

domingo, 2 de outubro de 2016

Carson McCullers, A Balada do Café Triste


As metamorfoses do Self (Si-mesmo), talvez toda a literatura não trate de outra questão, talvez a única coisa que esteja em jogo nas narrativas seja a tentativa de capturar uma identidade. Foi Milan Kundera, salvo erro, que fez o curto-circuito que mostrou, no âmbito da cultura europeia, a existência de dois projectos, praticamente contemporâneos, de processamento da identidade. Por um lado, aquele que se estriba no cogito cartesiano, onde a subjectividade se mostra como fundamento de todo o conhecimento, mas uma subjectividade puramente racional, de carácter pontual e vazia. O sujeito cartesiano, na ânsia da evidência racional, despe-se de toda a biografia e resume-se a uma razão pura. Por outro, o D. Quixote, de Miguel de Cervantes, onde o Self (no caso, o de D. Quixote) se entrega a todos os desvarios e equívocos, mas são estes que permitem preencher uma identidade, uma identidade que se transforma ao longo da narrativa.

A Balada do Café Triste, da escritora norte-americana Carson McCullers (1917-1967), é mais um episódio, como o de qualquer narrativa literária do Ocidente moderno, dessa longa tradição escorada, em última análise e apesar das múltiplas formas que tem tomado, no Quixote. A narrativa pode resumir-se como uma investigação sobre o modo como o amor e a traição desencadeiam as metamorfoses do Self da personagem principal do texto, Miss Amelia Evans. Metamorfoses estas que são acompanhadas e observadas pelos habitantes da pequena povoação do Sul dos EUA, onde decorre a acção. A população funciona praticamente como o coro da tragédia grega, pautando a acção e comentando o desenrolar dos acontecimentos.

O carácter solitário, rude, avarento e belicoso de Miss Amelia, a mulher mais rica da zona, é subitamente adoçado pela chegada de um nebuloso primo - parentesco nunca verdadeiramente confirmado -, o primo Lymon, um corcunda frágil, pequeno e insinuante, de espírito empreendedor. Para espanto da população, Miss Amelia não só não contestou as pretensões de parentesco de Lymon, como o recebeu em sua casa. A partir desse momento, a sua disposição de espírito torna-se mais suave e alegre, como se a chegada daquele corcunda tivesse o efeito de revelar a Miss Amelia uma parte de si que até aí todos desconheciam, inclusive ela própria. O resultado dessa metamorfose, provocada pelo amor, é a abertura do Café, um estabelecimento animado pela presença de Lymon e onde a população encontrou, ao contrário do que diz o título do conto, um lugar de alegria na desolação que era a vida de todos.

A súbita e inesperada chegada do rufia Marvin Macy, antigo marido de Miss Amelia, que ela suportou apenas por dez dias, veio alterar a situação que parecia estabelizada há vários anos já. Tendo estado preso durante muito tempo numa penitenciária de Atalanta, mal chegou exerceu sobre o primo Lymon um nefasto fascínio. Esse fascínio conduziu, primeiramente, a um equívoco triângulo amoroso, onde Miss Amelia e Marvin Macy disputam a atenção, ou o amor, do corcunda. Por fim, ambos se confrontam numa luta de boxe, no café, assistida pela povoação em peso. A vitória de Marvin Macy só se tornou possível pela intervenção do corcunda. A humilhação de Miss Amelia fica completa pelo desaparecimento do ex-marido acompanhado pelo primo Lymon.

A traição de Lymon desencadeou uma derradeira metamorfose identitária em Miss Amelia, onde o antigo vigor e doçura desapareceram, como se a identidade se dissolvesse e se preparasse para se extinguir, para se tornar um resíduo pontual que lembra, como se fosse um negativo fotográfico, a identidade pontual e vazia da filosofia cartesiana, como se toda a biografia não fosse mais que o prelúdio da sua própria extinção, uma extinção lenta, triste e dolorosa, sob os olhos do coro trágico da população daquele nenhures do sul dos Estados Unidos.

domingo, 25 de setembro de 2016

Ivan Turguénev, O Primeiro Amor


O Primeiro Amor (1869) é uma das últimas obras do escritor russo Ivan Turguénev. Fará ainda sentido ler uma obra cujo ambiente social e modo de vida nada têm a ver com os nossos? Esta pergunta não se dirige ao carácter clássico da obra (vale a pena ainda ler os clássicos?), mas ao tema sobre o qual ela é construída, o primeiro amor. Serão ainda analogáveis as experiências dos primeiros amores actuais com aquela que é descrita no conto de Turguénev?

De certa maneira, a experiência do primeiro amor, no livro de Turguénev, é, ao mesmo tempo, a do último, um exercício de destruição da vocação romântica do coração. Nesta obra há uma leve reminiscência do Banquete de Platão, onde os vários convivas decidem fazer um discurso em honra do deus Eros. No caso do livro do escritor russo, depois de uma festa (supõe-se), ficam apenas três convivas. O anfitrião propõe que cada um faça a narrativa do seu primeiro amor. Chegam à conclusão que só Vladímir Petróvitch tem uma experiência que vale a pena ser contada. Ele, porém, recusa-se a narrá-la oralmente. Propõe-se escrevê-la e, posteriormente, lê-la aos amigos. A narrativa, também uma confissão, que o leitor tem à sua disposição é então o escrito onde Vladímir Petrovítch narra o seu primeiro amor.

Na casa de campo que a família ocupava, Vladímir, então com 16 anos, descobriu por vizinha Zinaída Kassékin, uma jovem princesa, cuja família estava empobrecida. Zinaída possuía, como a Penélope da Odisseia de Homero, uma corte de pretendentes, homens mais velhos e instalados na vida. A esta corte juntou-se o jovem Vladímir. Zinaída, inconstante, coquette, irreverente, entretinha-se no exercício de uma certa malevolência relativamente aos pretendentes, manipulando-os e mostrando-os no seu ridículo. A Vladímir, que se foi apaixonando intensamente por ela, tratava com condescendência inerente à diferença de idades. Há um momento, porém, em que todos os pretendentes percebem que o coração de Zinaída está tomado por alguém fora do grupo de pretendentes. 

A meio da narrativa, Vladímir conta duas conversas que simbolizam o núcleo central da intriga, são duas revelações do carácter das personagens envolvidas. Numa delas, o pai diz a Vladímir: "Apanha o que puderes da vida, mas não te deixes aprisionar; pertencer a si próprio - é essa toda a graça da vida". E quando o filho lhe falou em liberdade, o pai perguntou-lhe: "Mas sabes o que pode dar liberdade ao homem?", e, perante a pergunta do filho, respondeu: "A sua própria vontade, que também lhe dará o poder; o poder que é melhor do que a liberdade. Aprende a desejar e serás livre, e mandarás." Esta apologia, tão antikantiana, de uma vontade inclinada pelo desejo, marca já a presença de Schopenhauer e anuncia, de certa forma, Nietzsche. O importante, porém, é notar este desejo de domínio, este ser livre de prisões, esta independência muito diferente da autonomia da vontade, uma independência que vive da realização impassível do desejo e da vontade de poder e não da abstenção racional dos prazeres do mundo.

Por outro lado, uma  das confissões que Zinaída faz ao jovem Vladímir é fulcral para perceber o que está em jogo no amor: "Não, não posso gostar de alguém para quem olhe de cima para baixo. Preciso de alguém que me leve de vencida... Mas não hei-de encontrar ninguém assim, Deus é misericordioso! Não cairei nas mãos de ninguém, nunca!" O amor é sentido como uma fatalidade, como uma imperiosa e desejada submissão da mulher ao homem, mas não a qualquer homem. Só àquele que souber olhá-la de cima para baixo. O amor exige a mais pura desigualdade, e não é senão a realização de uma fatalidade.

O desenrolar da intriga conduz a um final psicanalítico avant la lettre. Vladímir descobre, depois do grupo de pretendentes ter constatado que a jovem princesa estava apaixonada, que o seu rival efectivo é o próprio pai. Foi a ele que Zinaída se submeteu e se entregou. Entregou-se a quem tinha por lema ser livre de todo o compromisso, aquele cuja vontade era mais forte que qualquer resistência. Na parte final da narrativa, o jovem Vladímir tem, sem que seja visto, a lição definitiva sobre o amor: "Zinaída endireitou as costas e estendeu a mão... Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma chicotada brusca no braço nu de Zinaída. Foi a custo que me contive, que não soltei um grito; Zinaída estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e, levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote deixara. O meu pai arremessou o chicote para o lado e, subindo apressadamente os degraus, irrompeu dentro de casa. Zinaída virou-se e, com os braços estendidos e a cabeça dobrada para trás, afastou-se da janela..."

O primeiro amor de Vladímir não foi o seu amor por Zinaída, mas o amor do seu pai por ela, foi a lição de que o amor não passa de um jogo de poder e submissão, de uma vontade de poder e de um desejo de ser vencida, foi a revelação de uma moral em contradição com o espírito dominante do cristianismo, bem como dos movimentos emancipatórios da época e posteriores. Quarentão, aquando da escrita da narrativa, Vladímir Petróvitch continuava um solteirão. Esta é uma lição de amor para todos os tempos, mas não para todos os homens e mulheres. Destina-se apenas àqueles para quem o amor se pode interpretar literalmente como amor fati. E hoje em dia, numa época de igualdade e de ciência iluminada, quem crê num amor destinado?

Ivan Turguénev (2008). O Primeiro Amor. Lisboa: Relógio d'Água.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Nikolai Gógol, O Capote


Desde a sua publicação, em 1842, que O Capote sugeriu imensas e desencontradas leituras. Muitos dos grandes escritores russos dizem-se devedores de Gógol e deste conto. A introdução de Filipe Guerra dá uma breve panorâmica da influência do texto. Mais uma leitura, apesar de ser uma leitura de um não especialista, não fará grande mal ao conto nem ao mundo, e os grandes textos servem para isso mesmo, para serem lidos e interpretados de maneira plural e contraditória. Uma das leituras que encontrei na internet dizia que Gógol era um escritor sem preocupações filosóficas, tentando retratar a gente simples e a sua vida. Mas será assim? Será O Capote o retrato ingénuo, não filosófico, de um pobre burocrata russo perdido na imensidão de São Petersburgo?

O episódio da escolha do nome do protagonista, Akáki (Akáki Akákievitch, isto é, Acácio filho de Acácio), revela de imediato que se está perante um problema de identidade. O narrador diz mesmo que "houve circunstâncias que, por si sós, tornaram impossível que lhe fosse dado outro nome que não este". Essas circunstâncias são o facto de a mãe, já viúva na altura do parto, não ter gostado de nenhum dos nomes sugeridos, optando por esta duplicação em relação ao nome do pai. Aquilo que é apresentado como uma necessidade - o facto de ele não poder receber outro nome - não passa de uma decisão arbitrária da mãe. Esta subtil apresentação  da identificação do protagonista serve para traçar uma conexão com a sua personalidade. Não apenas o seu nome é uma cópia do nome do pai, como o centro da sua vida, enquanto funcionário público e como simples ser humano, é a de se entregar à cópia de documentos. Quando um dia, alguém tomado pela comiseração, lhe propõe um trabalho ligeiramente menos repetitivo, Akáki perde-se e tomado pelo pânico implora o retorno à sua função de copista.

A iteração, a repetição ritual de gestos, mostra-se, através desta estratégia narrativa, como um dos pontos centrais da identidade. Toda a identidade surge como uma arbitrariedade que começa por ser mostrada como uma necessidade, para depois se consolidar no exercício sistemático da sua repetição. O conselheiro titular Akáki Akákievitch não é o símbolo da pobre burocracia russa, mas a imagem de qualquer homem no esforço para perseverar na sua identidade. Apesar das circunstâncias que o rodeavam lhe serem desfavoráveis - o caso de ser alvo da troça de todos os seus colegas - o exercício da repetição assegurava-lhe - assegura a cada um de nós - a estabilidade de um eu.

O capote, que dá título à novela, surge na narrativa como o elemento que desencadeia uma revelação complementar sobre a identidade. O novo capote de Akáki Akákievitch gera, entre os seus colegas, um momento de espanto e de admiração, de tal maneira que o convidam para uma festa nocturna. Contrariamente às suas rotinas, aceita. Quando volta da festa é assaltado e o seu novo capote é roubado. Nas diligências para mover a burocracia policial a encontrá-lo, o pobre conselheiro adoece e morre. A morte não é o fim da história. Morto, Akáki Akákievitvh transforma-se em fantasma. Um fantasma que assalta os transeuntes e lhes rouba o capote. Esta transição de uma narrativa realista para o registo fantástico permite a Gógol iluminar uma outra faceta da identidade, o seu carácter fantasmático.

Toda a identidade é uma projecção de si no além, um excesso que ultrapassa a circunstância física e faz continuamente renascer o eu muito para lá das enunciações em que ele toma a palavra e diz eu. A ironia de Gógol é uma estratégia que permite escalpelizar a construção da identidade, revelar-lhe as características, mostrando que ela é gerada arbitrariamente, embora nos parece ser fruto de uma necessidade inequívoca, que se mantém pelo exercício ritual da repetição, essa cópia que se copia indefinidamente, e que se prolonga de si para os outros de forma fantasmática. Dos outros, apenas temos o seu fantasma e para eles também não passamos disso, mesmo que estejamos convencidos da solidez do nosso eu e do eu dos outros. O Capote é um irónico exercício de desconstrução da ficção identitária que produzimos como condição de estar e suportar o mundo.

Inopinadamente, o texto sobre uma pessoa comum revela-se como uma meditação sobre o eu e a identidade, meditação essa que deve ser recolocada no âmbito de uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a filosofia moderna sobre essa enigmática coisa a que designamos através do pronome pessoal da primeira pessoa, eu ou ego, ou por intermédio dos seus rebatimentos na terceira pessoa, o si ou o ipse ou o self.

Nikolai Gógol (2011). O Capote. Lisboa: Assírio e Alvim. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Introdução de Filipe Guerra.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude


1. Universos totalitários – sexo, dor, dominação e totalidade

Justine ou les Malheurs de la Vertu era uma das obras do Marquês de Sade que, devido à incultura geral que por vezes me acomete, nunca tinha lido. O texto merece meditação, tanto por aquilo que ele reflecte como por aquilo que anuncia. Este texto é escrito como se nada se soubesse do seu autor nem das outras obras que escreveu, incluindo a terceira versão de Justine denominada La Nouvelle Justine, ou Les Malheurs de la Vertu. Considera-se apenas esta obra em si mesma e os mundos que ela propõe ou revela.

Genericamente, as pretensas experiências sexuais a que, contra-vontade, a virtuosa Justine é exposta são, na sua essência, experiências de universos totalitários. Nos vários episódios que lhe acontecem, o que se depara ao leitor são mundos fechados onde um exercício despótico de poder se manifesta em toda a sua amplitude, a qual vai até ao poder sobre a vida das vítimas. O horizonte das experiências sexuais narradas, em que se inclui o prazer sexual proveniente da violência sobre o outro, é um universo ocluso onde a única liberdade pertence aos libertinos que o comandam.

Justine começou por ser um conto denominado Os Infortúnios da Virtude, escrito por Sade em 1778, na prisão da Bastilha, cerca de dois anos antes do início da Revolução Francesa. O conto evoluiu para o romance que comentamos, publicado em 1791, cerca de dois anos depois do início da Revolução. Poder-se-ia, não sem propriedade, ver nesta obra de Sade o anúncio profético do período do Terror (entre finais de Maio de 1793 e finais de Julho de 1794). Nele, os jacobinos, sob égide de Robespierre e da facção da Montanha, suspenderam todas as liberdades e garantias dos cidadãos, perseguiram e assassinaram a seu bel-prazer os adversários bem como os próprios jacobinos sobre os quais recaísse suspeita de falta de zelo revolucionário.

Os universos descritos por Sade, que aparentemente são apenas universos sexuais e não políticos, anunciam já uma realidade bem mais tenebrosa do que o tenebroso período do Terror da Revolução Francesa. Anunciam os universos totalitários que tomaram conta da Europa na primeira metade do século XX, universos que se prolongaram pelo mundo fora, como o mostra a terrível experiência do Cambodja. Não se está apenas perante tiranias. As relações que algozes e vítimas estabelecem na narrativa de Sade prefiguram os regimes políticos totalitários, onde todas as esferas da vida social estão submetidos ao Estado, e àqueles que exercem o poder dentro desse Estado. A dominação paranóica que as grandes figuras dos regimes totalitários, de esquerda e de direita, exercitaram não é diferente daquela que encontramos exercidas pelos libertinos nos diversos mundos pelos quais passa a infeliz Justine. O próprio prazer que esses libertinos extraíam da dominação e da submissão absoluta das vítimas, bem como da violência que sobre elas exerciam, pode estender-se ao prazer que os mais destacados elementos dos regimes totalitários do século XX encontraram no exercício do poder. A própria organização burocrática de certos “mundos” descritos por Sade (por exemplo, o do mosteiro ou o da casa do médico/mestre-escola) prenuncia já o princípio organizacional que presidiu à Shoah nos campos de concentração nazis ou aos gulags soviéticos.

Não devemos, porém, ficar siderados pela terrível experiência dos regimes totalitários. Se olharmos para os universos de muitas empresas na era da globalização, a sua semelhança com o narrado por Sade é completa. Que o resultado de muitas das hipermodernas técnicas de gestão seja a doença psiquiátrica e o suicídio dos funcionários deve permitir compreender a conexão entre esses mundo e aqueles que Sade descreve. De Sade a certas empresas globais, com as suas impiedosas técnicas de gestão de recursos humanos, passando pelos regimes totalitários, há um fio condutor, o do desejo que pode. E por poder, esse desejo aniquila os outros desejos, aqueles que habitam os outros, os que não podem, começando por exigir submissão, passando pela subversão do desejo desse outro, acabando na sua morte

Sade não é importante apenas pela revelação literária do sadismo. É importante também porque é uma das figuras centrais da modernidade ao desenhar os universos oclusos e totalitários onde a praxis sádica pode ocorrer. Não há sadismo consentido. Toda a dor para causar prazer, neste universo sádico, tem de provir daqueles que a sofrem contra-vontade. Daí a necessidade do espaço concentracionário de natureza totalitária, daí a inquietante actualidade do divino Marquês.

2. A lei da natureza e a virtude infeliz

Sublinhou-se a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e referiu-se a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde Justine se vê envolvida, tanto as vítimas como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos, submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos, à violência do desejo.

Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente. Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais, com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certas concepções sofísticas contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Esta concepção da lei da natureza permite perceber como os universos totalitários se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude – mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil, o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.

3. Libertinagem e conversão

Para concluir a leitura retomo, aplicando-a a um discurso complexo como um romance, a teoria dos speech acts de J. L. Austin, depois prolongada por John Searle. Esta teoria distingue entre actos locucionários, actos ilocucionários e actos perlocucionários. Muito resumidamente, actos locucionários são os actos de enunciação. Neste caso, por analogia, corresponde ao texto produzido por Sade. Os ilocucionários referem-se ao que fazemos quando dizemos alguma coisa. Posso prometer, avisar, constatar uma certa realidade ou facto, narrar um conjunto de peripécias. Do ponto de vista ilocucionário, a Justine é a narrativa de um conjunto de peripécias em torno da personagem. De certa forma, a dimensão ilocucionária foi já analisada.

Falta a dimensão perlocucionária. Esta refere-se àquilo que o auditório de uma comunicação é levado a fazer pela conjugação das acções locucionária e ilocucionária. Dito de outra maneira, o que pode ser levado a fazer aquele que lê este texto? Aqui retomo uma ideia inicial. Ler o texto como se não soubéssemos mais nada dele a não ser aquilo que ele diz, como se não soubéssemos nem quem foi o seu autor nem qual o desenvolvimento das suas ideias. O texto supostamente libertino que temos à frente pode gerar dois tipos de reacções. Aqueles que se identificam com a lei do mais forte e podem considerá-lo como um manual escolar de instrução para a via libertina. Estes serão uma minoria, pois o ser humano, na sua globalidade, é uma mistura de animal e de ser racional e moral. A consciência moral, aquele que Kant supunha presente em todos os homens, sente, porém, diante da narrativa de Sade um asco crescente pelas praxis libertinas.

O carácter totalitário, o despotismo, o homicídio, o estrupo, o aviltamento do mais fraco, tudo isso presente nos quadros que Justine narra, acabam por constituir um choque para a consciência moral e ter um efeito contrário à ideologia libertina, uma espécie de vacina. Ler a Justine pode ter mesmo um efeito religioso. O universo irreligioso narrado é tão repugnante que conduz espontaneamente à atitude contrária, como efeito perlocucionário. Se não se soubesse quem era o autor e o desenvolvimentos posterior da sua obra, desconfiaríamos que se estava perante um livro apolegético do cristianismo. O próprio Sade, no texto, prevê isso, pois a irmã de Justine, uma libertina soft, ao ouvir a narrativa das peripécias pelas quais passa a irmã, e após a morte desta fulminada por um raio, converte-se e entra para um mosteiro. Mesmo que este final possa ter sido estratégico, no sentido de fazer passar um mundo libertino sob a capa de um caminho de conversão, a verdade é que o texto de Sade, mesmo sem esse fim, tem um potencial de conversão religiosa e moral que não é aquele a que habitualmente ligamos as obras do aristocrata francês.

Com a experiência de S. Paulo na estrada de Damasco apreendemos a conversão como uma súbita e radical mudança de ponto de vista induzida por uma revelação. É este modelo que é explorado por Sade na conversão da irmã de Justine. Em Paulo de Tarso é a revelação divina que o conduz à conversão. No texto de Sade, é a revelação da negatividade libertina que produz idêntico efeito.