sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Jonathan Littell, As Benevolentes


O título do livro de Jonathan Littell, As Benevolentes (Les Bienveillantes, no original francês), coloca a obra sob a égide de Ésquilo e da Oresteia, isto é, da tragédia clássica grega, o que é acentuado pela dimensão musical presente na denominação dos capítulos (Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabanda, Minuete em rondó, Air, Giga). O que nos pode indicar que, em última análise, estaríamos, com a violência desencadeada pelo nazismo, perante a emergência transbordante, no palco do mundo, das forças dionisíacas, com os seus grandes cortejos dançantes de horror e sangue.

Por outro lado, a matéria da narrativa, os acontecimentos da II Guerra Mundial, e a mescla de personagens fictícias e de personagens reais colocam o romance na categoria de romance histórico. A história seria agora contada por um daqueles que perdeu, Maximilien Aue, um oficial das SS, por um dos inúmeros carrascos que levaram a morte a milhões de pessoas em nome de uma ordenação do mundo segundo uma delirante hierarquia rácica. A figura do carrasco não deve ser lida como mera metáfora indiciadora de um comportamento de violência extrema. Deve ser tomado no sentido estrito do funcionário encarregado de executar uma sentença de morte.

Vale a pena recordar a caracterização feita pelo conde Joseph de Maistre, em Les Soirées de Saint-Petersbourg, da figura do carrasco (ler o excerto). É uma figura inexplicável pela lógica humana, evidenciando, na verdade, uma eleição divina, e, ao mesmo tempo, é o horror e o laço que permitem aos homens viverem uns com os outros. Sem ele, “a ordem dá lugar ao caos, os tronos precipitam-se no abismo e a sociedade desaparece”. O carrasco é, pelas características sublinhadas por Maistre, uma figura apolínea, cuja função é assegurar que as sociedades continuem a funcionar, eliminando aqueles que as põem em perigo. Apesar do temor que provoca nos homens e do horror da sua profissão, ele tem prazer na qualidade do trabalho que executa, na sua eficiência e eficácia, no cumprimento estrito do dever.

O que torna o romance de Littell particularmente interessante é o casamento das forças dionisíacas e apolíneas nos nazis alemães. A personagem de Maximilien Aue serve para uma longa meditação narrativa sobre a natureza do carrasco. O oficial SS constitui-se como arquétipo de todos aqueles que acreditaram ser sua missão no mundo eliminar todos os que, por natureza racial ou por convicção ideológica, se opunham à sociedade distópica nascida na mente dos responsáveis políticos nazis. Nele confluem, em tensão, tanto na vida pessoal como na acção político-militar, as pulsões dionisíacas e a inclinação apolínea.

A construção da vida pessoal de Aue, decalcada da Oresteia, tem por fundo o desaparecimento do pai e o ódio que devota à mãe, que acusa de ser responsável pelo abandono a que a família foi votada. Do pai, na verdade, nada se sabe, mas Maximilien parece estabelecer, pelo menos inconscientemente, uma analogia entre o desaparecimento do pai e a morte de Agamémnon às mãos de Clitemnestra, sua mulher, e de Egisto, o amante desta, na primeira peça da Oresteia. Ele é um Orestes abandonado que possui um ódio nunca disfarçado à mãe. Embora, o romance nunca o esclareça, tudo indica que Maximilien seja o responsável pelo assassinato da mãe e do padrasto, numa reactualização da tragédia de Ésquilo.

Esta dimensão da formação do carácter da personagem principal é completada pela relação incestuosa que mantém com a irmã gémea Una. Esta acabará por ultrapassar a situação e colocar o incesto como uma mera experiência do passado que não pretende repetir. Max, porém, nunca abandona o desejo de união e de fusão com e na irmã. Este desejo frustrado de se perder na fêmea original (Una remete para a ideia de uma unidade primordial, para uma indistinção entre o masculino e feminino) é o outro lado da sua sexualidade marcada pela homossexualidade, na qual ele, ao entregar-se passivamente a outros homens, acaba por se reencontrar como sendo a sua própria irmã gémea.

Toda esta dimensão trágica, marcadamente dionisíaca, tem contudo uma contrapartida apolínea. Esta dimensão residirá menos no Max Aue que escapa, no pós-guerra, à Alemanha e à punição, casando em França, constituindo família e dirigindo os seus negócios, do que na sua formação. A formação em direito e o interesse na área da filosofia – para além de uma cultura alargada no campo da literatura e da música – dão ao narrador e protagonista da obra uma dimensão de racionalidade adequada à pulsão apolínea. No entanto, esta pulsão apolínea não se manifesta na ordem moral ou política severa, mas na dimensão técnica, na eficiência com que se entrega às suas funções de oficial das SS, sejam essas as de matar ou as de calcular como tornar os campos de concentração mais eficientes para o esforço de guerra nazi.

O romance de Littell permite deste modo encontrar uma explicação para o mistério da função do carrasco, mistério esse sublinhado por Joseph de Maistre. De um ponto de vista abstracto, poder-se-á dizer que o carrasco resulta de uma combinação das pulsões dionisíacas com as apolíneas, mas onde as primeiras, com todo o seu desejo de destruição das formas e das diferenças, não são contidas pelas segundas, as quais abandonam a sua preocupação com a ordem moral e política do mundo, como acontecia na antiguidade clássica, para se concentrarem nos aspectos técnicos da acção no mundo.

O carrasco é, na verdade, uma figura metafísica tal como a intuíra Joseph de Maistre, mas não por ter sido o resultado de uma escolha divina. O carrasco é o resultado de um desequilíbrio entre as forças destruidoras e caóticas do dionisismo e das forças racionalizantes e ordenadoras da dimensão apolínea. Este desequilíbrio, na idade moderna, manifesta-se pela sujeição da razão à técnica. A razão não serve agora para suster as pulsões destrutivas mas para as tornar eficazes, trazendo uma ordem à produção do caos. O carrasco é o resultado de uma falência das forças formadoras do indivíduo. Num tempo em que a quantidade se sobrepôs à qualidade, o nazismo significou a multiplicação dos carrascos, transformando milhões de seres humanos aparentemente normais nessa figura sinistra, da qual todos se afastam.

A formação do carácter de Maximilien Aue é apenas uma parte do romance. A outra é a da sua acção. O leitor acompanha o percurso do oficial nazi na frente Este. Da Ucrânia a Estalinegrado, Jonathan Littell dá a ver a organização meticulosa do exercício da função punitiva que cabe aos carrascos. No caos da guerra, na grande dança báquica que é todo o conflito militar, Aue e os outros oficiais alemães emergem como um princípio de racionalidade. Ora esta racionalidade técnica – a procura de eficácia no combate, no genocídio e na prática de outros crimes de guerra, bem como na organização dos campos de concentração – está ancorada em duas ideias centrais. Em primeiro lugar, a convicção de que os alemães são não um povo eleito mas o povo eleito. Esta eleição permite-lhes tudo para ordenar o mundo segundo essa crença. Tamanha fé, como toda e qualquer grande fé, traz com ela um dever ser, um imperativo ou mandamento que ordena agir em conformidade com aquilo em que se crê.

Os crimes não são, desse modo, para os nazis e para o próprio Aue, apesar da sua sofisticação intelectual, crimes mas o mero cumprimento do dever. O que poderá haver de repugnante na prática de certo tipo de acções – fisiologicamente repugnante, sublinhe-se – com a continuidade torna-se um hábito, e um hábito, como ensinou Aristóteles, é uma segunda natureza. Esta conjugação da crença na eleição do povo alemão, com a concomitante desqualificação dos não alemães à condição de sub-humanos, e do dever que a razão deduz dessa crença conduz-nos a uma consciência não atormentada pelo mal praticado. E este é o ponto central. A acção de um carrasco só é possível porque, na sua consciência, se legitimou o direito a torturar, violentar e executar todos aqueles que a ordem política nomeia como objectos do seu trabalho. É essa consciência que permite a Maximilien Aue dizer, logo no início do romance, que  desde “o fim da guerra mantive-me um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns meus ex-colegas, de escrever as minhas Memórias com intuitos de justificação, porque nada tenho a justificar”.

O que Jonathan Littell nos dá a ver é a formação e o funcionamento, num singular cruzamentos de pulsões dionisíacas e de inclinações apolíneas, da consciência do carrasco. O mal que este pratica não lhe afecta a consciência e, por isso, não sente quaisquer remorsos ou necessidade de justificação ou de prestação de contas. E não o sente porque as suas acções dimanam de uma ordem supra-pessoal, provêm do poder político, ao qual os agentes se limitam a obedecer, pois esse é o seu dever. Como diz Aue: “Não me arrependo de nada; fiz o meu trabalho, e foi tudo”. Em última análise, através da figura de um carrasco, daquele que pratica o mal por dever, somos colocados perante o enigma do poder político, o qual assenta no carrasco e, por isso, o legitima.

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