sábado, 30 de julho de 2022

Teixeira de Queirós, Os Noivos


O romance Os Noivos, de Teixeira de Queirós, foi publicado, originalmente, em 1879. A segunda edição, a de 1896, foi, segundo o autor, completamente refundida, sendo definitiva. Hoje em dia, exceptuando os iniciados na história da literatura portuguesa, ninguém conhece o autor. No entanto, desenvolveu uma importante obra literária no último quartel do século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. É um nome marcante do realismo naturalista português, tendo sido considerado por Óscar Lopes e António José Saraiva “o melhor realizador, em Portugal, do romance tal como o concebeu Balzac”. Os Noivos apresenta-se como um romance crítico, considerada a melhor forma literária para exprimir “a complicada vida moderna”. A obra é a primeira de um amplo conjunto de romances – oito ao todo – a que o autor deu o nome, de clara inspiração balzaquiana, de Comédia Burguesa. Tanto na edição de 1879 na de 1896, o romance é apresentado em dois volumes.

Há no título escolhido por Teixeira de Queirós uma aparente inconsistência com o próprio romance que acompanha a vida de casados de Arminda e Gustavo, os principais protagonistas desta Comédia Burguesa. Existe, contudo, nesta decisão uma avaliação dessa instituição social que é o casamento. No prólogo da edição de 1896, referindo-se às suas personagens, o autor escreve: Não eram bons, nem eram maus; mas não cumpriram com o seu dever como elementos sociais. Gozaram um fausto reles, e desuniram-se sem ódio. Nunca chegaram a conceber o que fossem virtudes com que se resistisse à adversidade; não tiveram abnegação, nem paciência, nem heroísmo na pobreza… tudo despreocupação e fatuidade. O romance mais do que uma crítica à instituição casamento é uma análise minuciosa dos motivos que conduzem à sua derrocada. O casamento é um dever social e não um mero direito dos indivíduos. Esse dever exige um conjunto de virtudes que provam a maturidade de mulher e homem que se empenham na sua realização. Um casamento exige capacidade de resistir à adversidade – na língua-de-pau do psicologês que invadiu a sociedade actual, dar-se-lhe-ia o nome de resiliência – exige abnegação, paciência e heroísmo, uma qualidade dos espíritos nobres. Tudo isto faltou na vida de casados de Arminda e Gustavo. Na verdade, nunca chegaram a ser, no pleno sentido da palavra, marido e mulher. Apesar de casados, não eram mais do que noivos incapazes de consumar um casamento, não no plano sexual, entenda-se, mas no plano da instituição social.

Há, em Os Noivos, duas linhas fundamentais que ajudam a compreender essa efectiva não consumação matrimonial. Por um lado, a desadequação de ambos à sua situação social e económica. Provenientes de uma pequena/média burguesia do funcionalismo, sem fortuna, eram tentados por uma vida de fausto que a sua realidade não suportava. Teixeira de Queirós faz um retrato desapiedado desses meios, daquilo que move homens e mulheres, tornando patente como, por exemplo, a inveja desencadeia comportamentos miméticos que levam à perda dos protagonistas. De certa maneira, muito antes de a dissolução do casamento se ter tornado uma banalidade, o autor faz um retrato preciso daquilo que está na base de um casamento destruído. Uma segunda linha de compreensão é a da influência de uma visão do mundo romântica. O amor romântico é agora alvo não de uma recepção apoteótica, mas objecto de uma crítica rigorosa. Isso torna-se patente durante a lua-de-mel do casal, passada em Sintra. Não apenas o romantismo do lugar é um sinal, como as sessões de leitura a que os noivos se entregavam e lhes enchiam a alma. Liam, melhor, Gustavo lia para Arminda o romance de Alphonse de Lamartine, Graziela, um dos expoentes do romantismo francês. A modelação dos sentimentos encontrava nesse romance a sua ideia reguladora. O facto de não ter contribuído, pelo contrário, para fortalecer a união dos dois é o sinal de que o autor considerava esse romantismo uma forma ideológica incapaz de produzir nos noivos a atitude virtuosa que lhes permitiria a levar a bom termo o compromisso que o casamento representaria à época.

Influenciado por Honoré de Balzac, Teixeira de Queirós empreende, com Os Noivos, um conjunto de estudos fisiológicos e sociais – A Comédia Burguesa – da classe actualmente dominante. Ele observa-a nas suas diversas manifestações. Desde o duro homem de negócios, passando por militares, por funcionários bem colocados e por pessoas que sendo burguesas pela sua condição de classe, não o são, como Gustavo e Arminda, pela fortuna, herdada ou adquirida. Em torno do drama conjugal, o autor mostra em acção essa gente que está já em fase adiantada de relegar a velha aristocracia – ainda reverenciada – para o lugar onde se coleccionam relíquias históricas. Não deixa de ser sintomático, porém, que o ciclo seja iniciado por um caso claro de fracasso, um fracasso de burgueses em consumarem não apenas o seu casamento, mas a sua própria condição social. Não será inútil, para uma interpretação do romance – e, porventura, de todo o ciclo – a distinção feita por Aristóteles entre tragédia e comédia. A tragédia imita a acção dos homens superiores, dos heróis; a comédia, a dos homens inferiores. Contudo, o filósofo acrescenta relativamente aos homens inferiores imitados na comédia: (imitação) não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. Gustavo e Arminda não eram bons nem maus. Não eram heróis e seres nobres. Eram apenas ridículos no modo como se relacionavam com a sua própria realidade.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Liudmila Ulitskaya, Sonechka

O pequeno romance Sonechka, da escritora russa Liudmila Ulitskaya, foi publicado originalmente em 1992, na revista Novyi Mir (Novo Mundo). Como todas as boas obras de arte, esta abre-se a uma pluralidade de interpretações, que realçarão este ou aquele aspecto, organizando, a partir daí, uma estratégia hermenêutica para apropriação da obra. Aquela que se propõe aqui sublinha, como ponto fulcral do romance, a relação entre a vida e a literatura. Qual o lugar desta e como se relaciona com aquela? A ligação da protagonista – Sonechka (diminutivo russo de Sónia) – com a literatura – mais especificamente, a literatura russa – é o ponto fulcral deste primeiro romance de Ulitskaya.

Poder-se-á ler a narrativa a partir de uma perspectiva política, como uma denúncia do regime soviético. Poder-se-á sublinhar o questionamento do papel da mulher na sociedade russa. Poder-se-á, ainda, partir do confronto entre o espírito individualista do artista – o marido de Sonechka é um artista, um pintor – e a concepção soviética de arte subjugada ao estado, de arte ao serviço de uma causa que ocupou o poder político e se tornou uma perspectiva totalizante. Contudo, estes pontos – ainda que presentes no romance – são meramente instrumentais e não essenciais.

Liudmila Ulitskaya preocupa-se em contar uma história, melhor, em contar várias histórias que se entrelaçam, criando o enredo que conduz do ponto de partida, a situação em que se encontrava, no princípio, Sonechka e aquele aonde chegou, quando o romance acaba. A autora conta a história de Sonechka, mas também do seu marido, Robert Viktorovich, Tânia, a filha de ambos, e de Jasia, uma jovem polaca que acaba por se tornar amante de Robert e, ao mesmo tempo, protegida como uma filha por Sónia, que sentiu a vinda de Jasia como uma dádiva generosa do destino para a velhice do seu amado Robert.

Apesar de ser claramente uma autora pós-soviética, não foge, na concepção do romance, a uma estruturação dialéctica, talvez uma reminiscência de uma concepção do mundo proveniente da educação a que a juventude da URSS foi, durante décadas, submetida. Esta dialéctica da narrativa tem como primeiro momento a intensa relação da protagonista principal com a literatura russa. O segundo momento, o da negação do primeiro, acontece quando Sónia conhece, numa biblioteca onde trabalhava, Robert e casa com ele, constituindo uma família. O terceiro momento da dialéctica dá-se com a morte do marido, o que constitui a negação dessa negação e um retorno do primeiro momento, mas de modo completamente transformado.

A jovem Sonechka – movida por uma relação difícil com o corpo e a realidade envolvente – entrega-se a uma paixão devoradora pelos livros e pela literatura russa. As personagens dos grandes autores russos são, para ela, tão ou mais reais do que as pessoas com quem contacta. Para ela (Sonechka), o sofrimento de Natasha Rostova (personagem de Guerra e Paz, de Tolstói) à cabeceira do moribundo conde Andrei (idem) era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido. Esta afirmação de si como grande leitora é feita por uma espécie de alienação, um estranhamento ao curso da realidade, uma imersão num universo simbólico e onírico, uma forma ligeira de loucura (reminiscência, por certo, desse leitor compulsivo de novelas de cavalaria conhecido como D. Quixote). É a partir desse lastro que consegue encontrar uma justificação e um sentido para a sua existência. O seu self constituiu-se pela absorção desse mundo de papel. Ali, ganhou elasticidade e capacidade de perceber a vida muito para além daquilo que poderia aspirar caso a paixão pela leitura não existisse.

O segundo momento dialéctico é o da vida real, com um inesperado amor, um casamento, uma filha e tudo o que isso supõe na Rússia da segunda guerra mundial e dos tempos que se lhe seguem. Este é um momento de negação daquela ligeira loucura que a levava a confundir a vida real e a ficcional. Esta negação, porém, não é uma aniquilação do self anteriormente construído no contacto com os livros, mas a oportunidade de o pôr à prova, de lhe dar carne no dia-a-dia. Sem esse self construído no mundo da ficção nunca teria casado com Robert Viktorovich, um artista plástico bem mais velho, que tivera grande êxito em Paris, mas que regressado à Rússia, acabou num campo de concentração. Esta negação dialéctica é uma reapropriação de si e um mergulho na torrente da existência, que a prepara para as peripécias que essa vida de casada lhe trará.

Quando o marido morre, dá-se a segunda negação, a negação dessa vida quotidiana e uma reafirmação do interesse pela literatura. Ela recusa sair da sua casa para se juntar, na Suíça, à sua filha Tânia, ou ir para Paris, para junto de Jasia, que para ela era como uma segunda filha. À noite, colocando uns óculos suíços no nariz em forma de pêra, ela mergulha nas profundezas doces, nas alamedas escuras, nas águas primaveris… Deste modo, Ulitskaya afirma a literatura como forma de dar um sentido final à existência. Não nega a vida, mas nega que esta tenha sentido fora da arte, que é esta, em última análise, que integra o heteróclito das vivências numa unidade da qual se pode contar uma história e, desse modo, retirá-la do sepulcro do esquecimento.

 

terça-feira, 12 de julho de 2022

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores


Concluído em 1957 e publicado em 1959, o romance A Cidade das Flores é a primeira obra de Augusto Abelaira. A trama – melhor, as diversas tramas que compõem o discurso romanesco – desenrola-se em Florença, num período em que o regime fascista de Benito Mussolini estava consolidado e a Itália preparava-se para entrar na segunda guerra mundial. As personagens – jovens – pertencem à classe média de Florença e vivem o drama de uma consciência dilacerada perante a situação que o país vive, os seus valores morais e a sua impotência para agir. O autor terá deslocado o espaço romanesco para um lugar fora do território nacional para iludir a censura, naquilo que seria, também, um questionamento da situação portuguesa, do regime autoritário de Oliveira Salazar, e de uma geração de portugueses oposicionistas ao regime, provenientes da classe média, mas com um pathos muito diferente daquele que habita os protagonistas do romance neo-realista em voga desde a década de quarenta.

O que ocupa o espírito daqueles jovens não será tanto os problemas da igualdade e da justiça social, mas o da liberdade que lhes era negada. Esta questão orienta o romance para o problema das subjectividades, da sua construção e do confronto dessas subjectividades com o peso da realidade. São subjectividades questionadoras mais, muito mais, do que subjectividades actuantes ou militantes. Questionam-se sobre o sentido da vida, sobre o amor, sobre a acção política, sobre a moralidade e o dever fazer. Não têm certezas, mas dúvidas. Esta natureza das personagens conduz a uma situação paradoxal que está no centro do romance. Todos os protagonistas provêem de famílias burguesas, com conhecimento da arte, da literatura, da música erudita. Ora, o que marca a burguesia europeia – o terceiro estado – é o seu dinamismo, a iniciativa, o facto de terem elegido a acção para se afirmarem contra a aristocracia e, posteriormente, ocuparem o poder no mundo. Para compreender o romance não basta sublinhar a inércia dos resistentes, é necessário considerar o paradoxo central que atravessa os jovens burgueses. A tensão entre a acção (a não acção) e as preocupações morais e filosóficas que essas personagens encarnam. Essa tensão traz para o centro do romance o velho conflito entre a acção e a contemplação, entre a praxis e a theoria.

A solução que o romance de Abelaira oferece parece ser aquela que não agrada a ninguém, nem aos homens práticos, nem aos contemplativos. Naquele grupo de jovens, apenas um se engaja no combate político, vive na clandestinidade. O problema é que a sua acção é marcada por um terrível equívoco. Ao perpetrar um atentado contra um comboio, confunde aquele que transportava pessoas com o que transportava combustível para fornecer o exército nazi. Este facto não é uma mera peripécia na narrativa, mas um juízo cruel sobre o poder da acção na transformação do mundo, aproximando de forma perigosa um acto político e um acto meramente criminal. Por outro lado, os jovens contemplativos conduzem as suas existências a becos sem saída, como se tivessem absorvido um pathos ético que vem do spleen de Baudelaire, até à náusea de Sartre, passando pelo absurdo de Camus. Na economia romanesca, nenhum destes partidos – o da acção e o da contemplação – sai vitorioso.

Mais do que um libelo antifascista – ou anti-salazarista – o romance de Abelaira explora a situação extrema posta por um regime autoritário para testar a humanidade, os seus valores morais, a força das suas convicções e o poder das suas ilusões. Não toda a humanidade, mas aquela que se filia na tradição da subjectividade, da consciência de si, na afirmação do indivíduo. No fundo, é um questionamento daquilo a que se pode chamar a tradição liberal. Como é que os indivíduos que lhe pertencem podem lidar com situações de extrema opressão, como podem conjugar os seus valores morais e a realidade que lhes é adversa? Giovanni Fazio, a personagem principal do romance, tem uma solução. Escrever um romance utópico, precisamente A Cidade das Flores. Esta ideia nunca concretizada, apenas esboçada, permite, todavia, compreender uma outra questão, a denominada reterritorialização presente no romance.

Lisboa dos anos cinquenta, com o seu ambiente oposicionista, terá sido reterritorializada em Florença, dos finais dos anos trinta, um ardil para iludir os censores portugueses. Contudo a reterritorialização romanesca é mais do que um estratagema. É um momento de transição para a desterritorialização. Colocar a acção romanesca em Florença – numa Florença já inexistente – é um passo que ganha o seu sentido pleno no desígnio de Fazio de escrever uma utopia. Qualquer utopia é uma desterritorialização, um aniquilamento do espaço real em proveito de um não-espaço, de um não-território. Considera-se, muitas vezes, as utopias como uma abertura dos possíveis mais próprios da humanidade, mas não se atenta que elas são confissões da dificuldade – senão da impossibilidade – de lidar com esse território de que fazemos parte e dos caminhos que nele estão inscritos. O romance de Abelaira, marcado por um apuramento técnico e estético longe dos cânones do neo-realismo, coloca-nos nessa encruzilhada em que a grande tentação é não escolher qualquer caminho possível, mas desejar um território e um caminho que não existem e não poderão existir. Na verdade, é entregar-se a uma visão pessimista da acção e procurar um refúgio que sirva de colírio à alma dilacerada pelo conflito entre o real e o possível.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Italo Svevo, A Consciência de Zeno

Uma autobiografia publicada por vingança. É deste modo que o Doutor S., o psicanalista de Zeno Cosini, numa espécie de prefácio, apresenta o livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, publicado em Bolonha, no ano de 1923. A intervenção prefacial do Doutor S., contudo, faz parte da trama romanesca. Ao paciente, Zeno (filho de um comerciante rico, que se sente inepto e doente, a quem o pai não confia, mesmo depois de morto, os seus negócios), é solicitado, como fazendo parte do método de tratamento, que escreva uma espécie de autobiografia. O ele que faz e entrega ao cuidado do psicanalista. Contudo, quando, segundo este, se aproximava da cura, Zeno abandona o tratamento. Como um amante traído, S. publica o texto do seu paciente. A obra explora a consciência do protagonista e é um dos textos fundamentais da literatura do século XX, com a sua exploração da consciência, com uma utilização rigorosíssima da linguagem comum, sem, no entanto, se deixar envolver pelo senso comum. É um dos grandes romances formalmente inovadores no tratamento da subjectividade, no uso da corrente de consciência, ao lado dos de James Joyce ou de Knut Hamsun.

O texto de Zeno estrutura-se em torno de seis pontos: 1. A relação com o tabaco; 2. A relação conflitual com o pai; 3. A história do seu casamento (melhor, do seu noivado); 4. A relação com a mulher e com a amante; 5. A relação comercial com um seu cunhado que, por acaso, casou com a mulher que Zeno amava e irmã daquela com quem, na realidade, casou; 6. Psicanálise e cura. Há na cultura ocidental uma longa tradição confessional, cujo ponto decisivo é Agostinho de Hipona e as suas Confissões, que emergiram na sequência da conversão ao cristianismo. Apesar de não haver uma relação directa entre o texto de Santo Agostinho e o de Svevo, pois o primeiro estabelece-se num processo narrativo que se pretende não ficcional, o que não se passa com o segundo, e ainda, no caso de Agostinho, haver uma reflexão filosófica em torno de problemas religiosos e metafísicos, o que não acontece na autobiografia de Zeno, há uma estreita relação entre o problema da conversão e o da cura. Toda a conversão é sentida como uma cura, a cura do modo como o sujeito se relacionava com o mundo, assim como toda a cura é uma conversão – pela persuasão – a um novo modo de ser, a um modo de ser saudável.

O texto apresenta-se como uma rememoração, um trabalho sobre a memória de acontecimentos passados, já longínquos. Quando, em 1915, Zeno empreende o tratamento psicanalítico, é já um homem velho, segundo os padrões da época. Muitos dos acontecimentos narrados passam-se muitos anos antes. O trabalho sobre a memória tem sempre um risco, o da infidelidade. Isso é sublinhado pelo Doutor S. que ao acabar o seu pequeno texto inicial afirma: Se (Zeno) adivinhasse as surpresas que lhe reservava o comentário do monte de verdades e mentiras que acumulou nas páginas seguintes! Esta intervenção da mentira – isto é, da infidelidade da memória aos factos – coloca o romance de Svevo como uma metaficção, a ficção de uma ficção. O leitor, logo à entrada da obra, é avisado que uma parte do que vai ler é falso. Contudo, não sabe o que é verdadeiro e o que é falso. Esta é uma estratégia ousada para reforçar, no próprio leitor, a suspensão da descrença, a qual, como ensina Coleridge, é fundamental para seguir a trama narrativa de uma obra ficcional. A infidelidade memorial alimenta a crença do leitor na verdade da ficção que tem diante de si.

O romance do Svevo não deve ser desligado da aventura da modernidade ocidental. Do ponto de vista literário, podemos vê-la emergir com o Dom Quixote, de Cervantes. Do ponto de vista filosófico, todavia, o momento fundamental é o pensamento cartesiano. Pode estabelecer-se entre esses dois momentos proveitosas relações. Quixote sofria de um problema epistémico grave, confundia o que desejava ver com a realidade, mergulhado num universo de fantasias e ilusões. Descartes, por seu turno, pretendeu encontrar um caminho em que se eliminassem as ilusões, em que a verdade fosse possível. Ora, é este projecto cartesiano que, de um outro modo, a psicanálise recupera. A terapia psicanalítica pretende conduzir o paciente à descoberta das situações traumáticas (a descoberta da verdade que o inconsciente oculta) que dão origem a comportamentos anómalos. Ora, o facto de Zeno recusar terminar o tratamento e considerar-se curado, ao contrário da pretensão do psicanalista, é uma crítica frontal à psicanálise e à crença que ela encerra sobre a possibilidade de se chegar à verdade. Nos seus apontamentos finais, Zeno escreve: Julga ele (o Doutor S.) que vai receber a confissão dum doente, dum fraco. Pois engana-se! Receberá a descrição duma saúde sólida, perfeita – tanto quanto o permite a minha idade. Não só não quero entregar-me à psicanálise como já não tenho necessidade dela. E, se falo da minha saúde, não é só por sentir que sou privilegiado entre tantos mártires. Não é por comparação que digo que estou saudável, é de modo absoluto. Isto significa, também, uma crítica à tradição originada em Descartes e uma afirmação da filiação do romance na tradição romanesca nascida com Cervantes. Zeno estava saudável, porque se persuadiu que estava saudável: Há muito sabia eu que a saúde, para mim, não podia ser outra coisa além da convicção de estar perfeito e que é tolice digna dum sonhador hipnagógico querer «tratar-me» e não persuadir-me. A realidade não é outra coisa senão aquilo que dela fazem os dispositivos retóricos mobilizados para essa tarefa que é a persuasão. Dito de um outro modo, a verdade é aquilo de que me convenço ser a verdade.