sábado, 26 de dezembro de 2020

G. K. Chesterton, O Homem Que Era Quinta-Feira

Publicado em 1908, quinze anos antes da conversão de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) ao catolicismo, O Homem Que era Quinta-Feira pode ser lido como um momento dessa caminhada que levará o autor ao seu destino, um tempo de interrogação sobre o mundo, o modo como os homens o interpretam e a própria arte. Uma pequena e desconcertante narrativa esconde uma complexidade tal que a obra dificilmente se pode classificar num dos géneros habituais do romance. Um thriller metafísico, uma novela policial, um romance surrealista, uma distopia? Será mais fácil dizer o que ele não é. Não é um romance realista ou naturalista, muito menos uma obra de um romantismo fora de estação. A partir daí, a sua classificação torna-se disputada e, muito provavelmente, inútil. É um exercício prodigioso de imaginação e de uso do paradoxo, uma discussão sobre arte, política, identidade e metafísica, caso esta seja entendida como uma preocupação com a distinção entre a realidade e a aparência. Mais do que tudo isso é a ficção de uma ficção. O título original – não os da generalidade das traduções, que omitem uma parte essencial – dá uma pista. The Man Who Was Thursday: A Nightmare. O carácter onírico da obra é fundamental para a sua compreensão, pois o desfecho é como um acordar, uma revelação da realidade que não será tão negra quanto o pesadelo se propunha sublinhar.

A narrativa começa num subúrbio de Londres, na era Eduardina, com uma bizarra discussão sobre a natureza da poesia e, por extensão, da arte em geral. Dois homens, Lucien Gregory e Gabriel Syme, divergem sobre o assunto. Essa divergência não é meramente estética, mas o resultado de uma visão do mundo e de personalidades distintas. O que está em jogo é a velha distinção mítica entre caos e ordem. Para Gregory a arte é a abolição de todas as convenções, a destruição da ordem e de todas as hierarquias e poderes do mundo. Para Syme a arte é beleza, ordem, organização. Para um, a obra de arte reside na revolta e toda a revolta, onde se incluem os ataques terroristas, é uma obra de arte. Para outro, a arte é a busca da harmonia, o contrário da revolta. Esta discussão sobre a natureza da obra de arte é o prelúdio para entrar no mundo obscuro da política. Lucien Gregory é um anarquista, daqueles que contestam qualquer tipo de poder, não pelo mal efectivo que possa fazer, mas por ser um poder e um princípio de ordem. Pelo contrário, Gabriel Syme é um adepto da ordem que se tornou polícia para combater a ameaça que o anarquismo representa. Estrategicamente, Syme diz não acreditar que um poeta seja um anarquista e que Gregory na verdade diz-se anarquista, mas não o é. Este decide então mostrar que o que diz ser corresponde ao que efectivamente é e convida o interlocutor para uma importante reunião de uma organização anarquista internacional, onde iria ser eleito um membro para o lugar vago do comité central dessa organização, cuja finalidade seria a de espalhar o terror e combater a ordem. Gregory sonha ser o vencedor da eleição.

A partir do momento em que a narrativa se centra na reunião a discussão sobre a arte desaparece e o papel de Lucien Gregory praticamente se apaga. Syme faz perante o auditório de militantes um discurso com um pendor anarquista muito mais convincente do que Gregory e acaba por ser ele, o polícia secreto disfarçado, que se torna membro do comité central, com o nome de Quinta-Feira. Todos os membros desse comité possuem como nome clandestino o de um dia da semana, sendo Domingo o chefe do grupo anarquista. Em Paris, a organização prepara-se para levar a cabo um atentado para matar o Czar da Rússia e o Presidente da República de França. Daqui em diante, o romance torna-se num jogo de equívocos e paradoxos, em que tudo o que parece uma coisa revela ser outra completamente diferente e, por norma, de sinal oposto. Syme descobre que, ao lutar contra os seus camaradas do comité central, está a lutar contra polícias infiltrados. Todo o comité central da organização anarquista é composto por polícias que foram infiltrados para combater o anarquismo, o terror e a desordem que ameaça os estados. Na verdade, as aparências escondem a verdadeira realidade. A única personagem que resiste a esse desvelamento é Domingo, o qual na verdade não é conhecido por nenhum dos outros membros e que aparente ter poderes terríveis, como se ele fosse uma simbolização do Deus irado do Antigo Testamento e do Deus amoroso do Novo Testamento. As identidades são todas falsas ou incompreensíveis. Apenas o infeliz poeta anarquista é aquilo que diz ser.

A natureza intrincada do romance e a lógica que paulatinamente vai deslizando para a alogicidade onírica conduzem a interpretações antagónicas da obra. Há quem nela veja uma metáfora do triunfo do bem sobre o mal, apesar do peso deste no mundo, o que seria uma leitura já cristã da realidade, há quem a veja como um romance precursor das obras de Kafka, do labirinto que estas desenham e por onde se perde, por falta do fio de Ariadne, a razão humana, e de onde não há qualquer saída optimista. Essas leituras, todavia, podem não ser incompatíveis. O anarquismo, por outro lado, surge como uma metáfora política para o fenómeno da desagregação mítica da ordem, da sua transformação em caos, mas ao mesmo tempo o facto de serem os próprios agentes da polícia que ocupam as cadeiras dirigentes da organização terrorista e da personagem de Domingo se aproximar de uma imagem de Deus, permite a leitura de que o caos nasce por dentro da ordem, segundo uma vontade que a razão não tem capacidade para compreender, mas que se acabará por estabelecer uma nova ordem, como se a realidade acordasse de um pesadelo. Seja qual for a leitura que se prefira, O Homem Que Era Quinta-Feira é um dos romances incontornáveis do século XX, o qual está cheio de grandes e incontornáveis romances.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Ernst Jünger, Sobre as Falésias de Mármore

Publicado em 1939, Sobre as Falésias de Mármore é o romance mais conhecido de Ernst Jünger. A sua natureza enigmática e marcadamente simbólica permite ver nele uma alegoria sobre a emergência dos totalitarismos. Há quem o veja como uma denúncia do nazismo em clara ascensão e já no poder há vários anos – apesar do romance nunca ter sido proibido pelo regime nazi e ser bastante lido por agentes desse regime – e há quem o veja como uma referência ao estalinismo. O autor nunca foi muito claro, dizendo apenas que existiriam vários referentes possíveis para a figura do Couteiro-Mor. No entanto, e apesar dos acontecimentos da Noite de Cristal terem sido um motivo desencadeador da obra, talvez seja mais indicado ler o romance como o resultado de um cruzamento entre as experiências existenciais do autor e as suas obsessões espirituais, em vez de o entender apenas como uma desconstrução dos regimes totalitários que nasceram na primeira metade do século XX.

Tanto o espaço como o tempo do romance são simbólicos. A obra não se enraíza nem na Geografia política nem na História dos homens, mas num espaço imaginário e num tempo que parece resultar de uma síntese de várias épocas históricas. Não seria descabido ver, na atopia e na acronia, a criação de um laboratório onde são feitas experiências de pensamento sobre a natureza dos homens e das sociedades, da sua degradação e da ascensão do terror. A personagem central e o seu irmão Otão vivem ambos num ermitério. Ex-combatentes de uma guerra anterior ao tempo da narrativa, a guerra de Alta Plana, dedicam-se agora à botânica. Estudam a flora da região onde habitam, contemplando-a, registando-a, entregando-se assim a uma vida de contemplação e de estudo. Estas figuras combinam, na atitude e modos de vida, os arquétipos medievais do aristocrata guerreira e do monge contemplativo. Foram homens de acção e são, agora, contemplativos. É esta dupla natureza que lhes permite ver a emergência do mal no país aprazível onde se acolheram para se dedicarem aos seus estudos.

Para além de Alta Plana, situada no outro lado do mar, o espaço geopolítico é composto pela Marina, onde vivem os irmãos, terra de grandes vinhas e de civilização refinada, a Campana, zona de pastores, mais rude, e a Mauritânia, uma potência obscura e poderosa, fomentadora da guerra e da desordem. O que a Mauritânia, na verdade, ameaça é a civilização e o requinte, a vida pacífica fundada na convivência entre os homens, no respeito que entretêm pela diversidade. O que preocupa o autor é a fragilidade da civilização perante a subida ao poder da barbárie. Os mauritanos representam claramente esse mundo bárbaro em ascensão na primeira metade do século XX, as forças mais negras e odiosas que habitam o homem. Sobre as Falésias de Mármore fala da impotência da civilização perante a força despótica de homens despidos de qualquer piedade, para os quais apenas a dominação violenta faz sentido.

O Couteiro-Mor, personagem enigmática que nunca é avistada no romance, é o chefe das hordas bárbaras. Não há descrições físicas dele, subsistindo apenas algumas referências ao carácter impiedoso e violento, embora não destituído de racionalidade instrumental e estratégica. O Couteiro-Mor é, pela sua ausência constante, uma verdadeira omnipresença. Este jogo narrativo de uma omnipresença ausente tem o condão de sublinhar não só o carácter enigmático do chefe bárbaro, mas também de o configurar como uma ameaça ao mesmo tempo bem real e imponderável. É construída como se tivesse atributos divinos – ou diabólicos – pois sendo invisível, é sentida em toda a parte a sua presença ameaçadora. Esta máscara feita de traços tão pouco humanos transforma o Couteiro-Mor num arquétipo, o arquétipo de uma nova forma de poder que ameaça a ordem racional do mundo. Não é que antes do século XX não tenham existido tiranos e déspotas, não é que a violência não fosse um elemento central na vida política, não é que a ameaça de invasão e destruição não tenha sido uma experiência viva do passado. No entanto, o Couteiro-Mor encarna um poder mais profundo, mais baixo e mais diabólica. Ele simboliza a emergência do poder das trevas na Terra.

Se se meditar no estilo narrativo adoptado por Jünger, na claridade da narrativa, na beleza cultivada, no equilíbrio e profundidade das descrições, mesmo na narração dos acontecimentos dramáticos e violentos que conduzem ao desfecho do romance, em tudo isso se encontrará um contraponto à irracionalidade desse poder ameaçador. Esse contraponto não é, no entanto, uma racionalidade ao modo do Iluminismo. É antes uma racionalidade como a que se manifestou na Filosofia grega ou nos grandes pensadores medievais, como se o texto romanesco fosse uma emanação de um logos humano que ainda não tinha usurpado para si o lugar do logos divino. Talvez esteja aqui uma chave para ler o romance. O combate à irracionalidade para ser vitorioso necessita de uma reordenação do logos, recolocando tanto o humano como o divino nos lugares que a Modernidade e o Iluminismo subverteram.

domingo, 6 de dezembro de 2020

Frans Eemil Sillanpää, Santa Miséria

Ao autor finlandês foi atribuído o prémio Nobel da Literatura em 1939, ano em que começou a segunda guerra mundial e também a guerra entre a URSS e a Finlândia. O romance, Santa Miséria, foi publicado em 1919, pouco tempo depois de ter terminado a guerra civil finlandesa ocorrida em 1918. Esta, um reflexo da implosão da Rússia Czarista e da subsequente tomada do poder pelos comunistas, opôs também ela, tal como a guerra civil russa, brancos e vermelhos, conservadores e sociais democratas revolucionários. É nela e na vitória, na Finlândia, dos Brancos que o protagonista encontra a consumação do seu destino. A obra de Sillanpää possui quatro linhas estruturantes. A fluidez da identidade, a configuração complexa das pessoas simples, o paralelismo entre a história do indivíduo e a da comunidade e, por fim, a história do indivíduo como cumprimento de um destino e a submissão à estrita necessidade.

O romance começa com estas palavras: Jussi ou Juhá, ou Janne Toivolá – nome de baptismo, segundo o registo, João Abraão Benjaminpoika – era um pobre diabo de aspecto repugnante. A primeira tensão que atravessa o romance está determinada já. Um pobre diabo, ainda por cima de aspecto repugnante, recebe múltiplas identificações, para além daquelas que recebeu pelo baptismo. Essas identificações não ficam apenas pelo nome própria, o qual, ao longo da narrativa, vai variando entre Jussi, Juhá e Janne (não é clara para quem não conhece a língua se serão variações de um mesmo nome), mas atinge também o que poderíamos chamar o apelido. Não tendo nome de família – Benjaminpoika significa apenas filho de Benjamin, segundo o tradutor – os camponeses recebiam o nome da quinta que habitavam. Também o herói de Santa Miséria vai mudando de nome conforme se vai deslocando pelas várias quintas onde viveu, sendo sucessivamente Nikkila, Tuorila e Toivolá. Estas metamorfoses onomásticas são mais do que meros registos de ocorrências, mas indicações de que na fluidez da identidade se esconde uma maior complexidade do que na referência de pobre diabo de aspecto repugnante. Quando No final da terceira página, o narrador assegura isso mesmo quando, comentando o destino do protagonista dado a conhecer logo no início do romance, que Jussi Toivolá e o oficial são conhecimentos antigos… Outrora, num lugar qualquer deste mundo, aquele, por uma noite límpida e pura, matou Jussi. Fê-lo sem reparar, sem atentar no homem extraordinário que era, no fundo, Jussi.

Se se comparar esta personagem de Silanpää com personagens do romance neo-realista ou do realismo social, nota-se uma diferença acentuada na sua construção. Não se trata nem de uma idealização de um explorado nem um estereotipo de um revoltado. Pelo contrário, o pobre diabo tem uma psicologia complexa, com claros e escuros, que ultrapassa em muita a simplicidade que se costuma atribuir às personagens de origem popular. A pobreza e as dificuldades que teve de enfrentar, os desaires da vida e as partidas do destino não são meros motivos de alienação, mas de engrandecimento da sua personalidade, que se vai transformando durante toda a vida. Quase que se poderia dizer que Santa Miséria é um romance de formação ao longo da vida, pois Jussi Toivolá não deixa, continuamente, de se tornar em algo mais complexo do que era anteriormente. Sillanpää recebe o Nobel devido à profunda compreensão que a sua obras ostenta em relação aos camponeses da Finlândia. Este romance é um claro exemplo dessa justificação do Nobel.

A narrativa romanesca, dividida em seis capítulos, acompanha a vida da personagem desde o seu nascimento até à morte, cerca de sessenta anos depois. O autor, todavia, inscreve essa história individual num pano de fundo muito mais largo, o da história da Finlândia, desde as grandes fomes que a assolaram na época da infância de João Abraão até à guerra civil de 1918. Não se trata, porém, de um romance que se possa enquadrar no género denominado como romance histórico, mas do drama de um indivíduo que vive no seu tempo histórico e que está sujeito às contingências da história da comunidade, as quais surgem à sua consciência não como meras contingências mas, antes, como estrita necessidade da qual não pode escapar. Este enraizamento na história é mediado por um outro enraizamento, o do camponês, que Jussi foi desde o nascimento até à morte, na natureza. Ele não está apenas inserido no tempo, mas também no espaço, naquilo que este espaço tem de misterioso e de sedutor. A relação da vida do indivíduo, do herói da narrativa, com o tempo histórico é sempre compreendida na sua relação com o espaço onde vive e do qual vai recebendo sucessivas denominações, como se cada quinta fosse uma instância onde a natureza se deixa tocar pelas mãos do homem.

A estratégia narrativa transforma o romance numa enorme analepse. Nas primeiras três páginas, é narrada a morte do protagonista, a sua execução sob a ordem de um oficial branco. Esta opção narrativa tem um efeito que por vezes passa despercebido ao leitor. Se o desenlace só é conhecido no fim, cria-se a ilusão de que as personagens possuem livre-arbítrio e que o futuro, apesar das peripécias, estará aberto, até que o desfazer do nó tem o condão de o fechar. A transformação da narrativa numa analepse tem o efeito contrário. O leitor sabe que o destino de Jussi Toivolá está selado. Nada está em aberto. Aquilo que o leitor vai sabendo sobre a vida do herói é os passos que necessariamente o conduziram ao fim já conhecido. Todas as metamorfoses que a personagem sofre são necessárias e não está na mão dela querê-las ou evitá-las. O extraordinário homem que ele era, esse pobre diabo repugnante, deriva então da sua conformação à necessidade que a natureza – essa necessidade imposta pela natureza revela-se logo no início com as grandes fomes – e a história, como se vê no caso da guerra civil, lhe impõem. 

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Knut Hamsun, Pan

Interpretado, por vezes, como um romance de amor, Pan, do norueguês Knut Hamsun (Nobel em 1920), publicado em 1894, encena o conflito entre a vida livre do bom selvagem e a vida civilizada. É, também, uma releitura do mito de Pã, do deus grego dos bosques e das florestas, e da sua paixão pela náiade Sírinx. Nessa releitura não falta sequer o piloto Tamo que anuncia ao mundo a morte do grande Pã. O romance faz parte do conjunto de obras onde o autor contesta radicalmente a vida e os valores burgueses, esse mundo regulado pela burocracia e por regras que aniquilam o instinto vital. Não o faz, todavia, numa perspectiva social que tocou o realismo ou o naturalismo literários e, mais tarde, o neo-realismo, mas do ponto de vista do herói individual, da afirmação do carácter único do indivíduo. Não como uma singularidade que persegue o interesse próprio, tal como o burguês, mas de uma individualidade que emerge do tumulto da natureza e que nele pretende voltar a mergulhar.

O Tenente Thomas Glahn, aos 28 anos, foi para as terras selvagens do norte da Noruega, onde aluga uma cabana de caça, adoptando um modo de vida frugal. Os dias eram passados na floresta, na companhia do seu fiel cão de caça Esopo. A vida selvagem e desordenada eram o ambiente natural onde florescia a vida espiritual do militar. Uma espiritualidade tipicamente pagã, vivida através da divinização da natureza. Aquele era o lugar para um homem meio selvagem. No entanto, a vida civilizada, de uma povoação próxima, cruzava-se com os seus caminhos. Neles atravessou-se Edwarda e uma paixão exaltada nasceu no coração de Glahn.

Essa paixão, aliás correspondida, arrastou-o para contactos com a sociedade organizada do povoado adjacente, onde o pai de Edwarda, Herr Mack, um rico comerciante, tinha um papel central. Estes contactos sociais são, então, ocasiões para que Thomas Glahn ostente um carácter imprevisível, surpreendente e, quase sempre, pronto a quebrar as regras da civilidade. Hamsun explora aqui a tensão entre a espontaneidade do homem bravio e a artificialidade e afectação que as pessoas em sociedade necessitam de ostentar. Está em jogo o confronto entre a autenticidade existencial, por vezes brutal, e a vida falsificada produzida num mundo em que as arestas são limadas para que se evite o espectáculo da dor ou do prazer excessivos. Ora, era essa disrupção que a conduta de Glahn introduzia na vida social que conduziram a um ostensivo afastamento de Edwarda. Acabada a época de caça, esse Verão das terras do Norte, o militar foi-se embora. A sua náiade rejeitara-o.

O romance é composto por duas partes. A primeira, com cerca de 150 páginas, tem por título ‘Segundo os papéis do Tenente Thomas Glahn’. É narrada na primeira pessoa, uma espécie de rememoração do próprio Tenente. Começa assim: Ultimamente tenho pensado e repensado no Verão do Nordland e nos seus dias intermináveis. Estou aqui sentado a pensar nisso, mas também numa cabana onde vivi, e no bosque atrás dessa cabana, e vou anotando essas coisas para passar o tempo; para me entreter, nada mais. A rememoração nunca é inocente. Ela refere-se a algo que passou e que deixou de fazer parte do leque de possibilidades disponíveis para uma existência, mas que continua a afectar aquele que viveu esses acontecimentos, de tal maneira que tem necessidade não apenas de os rememorar como de os anotar. Essa vida selvagem e esse delírio erótico pertencem a um mundo acabado. Tudo o que é substancial na relação entre Glahn e Edwarda encontra-se nesses papéis deixados pelo Tenente.

A segunda parte, com pouco mais de 20 páginas, tem por título ‘A morte de Glahn – Um documento de 1861’. Está também ela narrada na primeira pessoa, mas agora essa primeira pessoa não é o protagonista do romance. Inicia-se do seguinte modo: A família de Glahn pode perfeitamente continuar a anunciar o desaparecimento do Tenente Thomas Glahn durante o tempo que quiser, mas ele nunca mais regressará. Está morto e, além disso, eu sei como morreu. Como o piloto de navios Tamo anunciou a morte do deus Pã, também este narrador anuncia a morte dessa sua encarnação, que era o Tenente Glahn. No entanto, contrariamente a Tamo que apenas obedece a uma ordem e não faz ideia como morreu o deus, este narrador sabe como morreu Glahn e sabe aquilo que no coração de Thomas Glahn o abriu para a morte. O que ele não sabe, pois essa não é a sabedoria de um narrador, mas do autor, é que a morte de Glahn significa o fim de um mundo e de uma tradição e a vitória da ordem burguesa, burocrática e feita de artifícios, onde impera o culto da inautenticidade. Essa morte encontra a sua simbolização plena no carácter póstumo da publicação dos papéis do Tenente Glahn.

 

domingo, 8 de novembro de 2020

Faure da Rosa, Nós e os outros

Publicado em 1979, Nós e os outros, de Faure da Rosa, passa-se num curto espaço de tempo, quatro dias de uma semana de Maio de 1973. Bernardo, o narrador, conta, num tempo já bem posterior e demarcado no calendário político do país, a sua vida quotidiana nesses dias em que a ditadura entrara em pleno, embora não visível, estertor. A obra é cruzada pela tensão entre duas linhas narrativas. Por um lado, a preocupação com a análise de um certo tipo de família burguesa. Por outro, a questão do compromisso político, de um compromisso com o único partido que, apesar da sua ideologia materialista e ateia, tem qualquer coisa de efectivamente religioso. Aliás, essa ligação devocional ao partido surge várias vezes na narrativa, sugerindo-se, por vezes, quase uma ligação a um corpo místico. A tensão desenha-se, deste modo, entre o cosmos da vida privada, uma vida real e efectiva, e o da vida pública, mais sonhada e desejada do que autêntica.

Em busca de um filho na noite lisboeta, o narrador, de 64 anos, acaba por encontrar Carol, uma jovem, na casa dos 20 anos, sexualmente caridosa com velhos e rejeitados, que o provoca. Acabam por se envolver eroticamente. É a partir desta deriva extraconjugal, que as relações familiares vão sendo exploradas. Uma vida inteira ao lado de Luci, dois filhos, e, de súbito, a figura da mulher surge a uma outra luz. Torna-se enigmática, obscura. Esta obscuridade provém, contudo, da própria mentira que esconde a infidelidade. Na verdade, há em Bernardo uma ânsia em ser descoberto, um desejo de ver a situação revelada, uma necessidade de confissão, como se isso pusesse um ponto final ao desvario. É o facto de Luci não se dar conta da situação, ou de não deixar transparecer que a pressente, que a torna obscura aos olhos do marido, como se ele supusesse o casamento, depois de uma vida inteira lado a lado, um lugar da mais pura transparência. O que preocupa, todavia, Luci não é o marido e os eventuais desvarios eróticos, mas o filho mais novo que desapareceu. Tendo-se radicalizado politicamente, participado em acções de natureza terrorista contra o regime, acaba por sair do país.

O romance não espreita apenas para dentro desta família. Olha as relações entre Antonieta, irmã do narrador, e César, um professor universitário que, na juventude, militou na oposição, mas que, com o passar dos anos e da carreira, se foi tornando complacente com o regime, se não mesmo defensor. É a figura negra do romance, aquele que tanto Bernardo como os filhos – Nuno, o fugitivo, e Paulo – não suportam, embora ele tenha diligenciado, no âmbito da vida profissional e pessoal destes, várias vezes em favor do cunhado e dos sobrinhos. É uma personagem quase estereotipada, o vilão da história, aquele que Bernardo se revê como um negativo e perante o qual se sente múltiplas vezes derrotado. A tensão dentro desse casal cresce motivada pela própria política, pela fidelidade de Antonieta aos ideais comunistas de Bernardo e dos outros irmãos já mortos e pelo desprezo de César por esse mundo. Também o casal Paulo e Gabi é observado e questionado pelo narrador. Paulo é o filho perfeito, o homem que, apesar de ter uma carreira profissional, se comprometeu com o partido e a luta contra a o regime. Todavia, é estéril. Bernardo teme que a nora acabe por ceder a uma forte inclinação amorosa pelo outro filho, pelo carácter aventureiro e radical deste.

Estes pequenos dramas familiares, de famílias tipicamente burguesas, de uma certa classe média lisboeta e oposicionista, são contrastados pelo seu, de Bernardo, compromisso político com o Partido Comunista. Um compromisso relativamente distante. A sua ligação à família, a sua preocupação com os filhos e a educação destes, a relação com a mulher pouco interessada nos ideais do marido, impedem Bernardo de se entregar a um compromisso radical com a organização que encarna os seus ideias de justiça social desde a juventude, de entrar no corpo místico que é o partido. Contenta-se em ser um homem da segunda linha, um devoto, alguém que não tem estatuto para se tornar o herói revolucionário que um dia terá sonhado ser. Aos 64 anos, essa figura do herói suscita-lhe a nostalgia do passado e também a melancolia que a realidade vivida lhe trouxe, a qual é agora, por um curto espaço de tempo, substituída pela aventura erótica. O tempo do adultério é um exercício compensatório para a sua impotência de revolucionário. A fusão erótica está no lugar da fusão no corpo místico do partido e através dele no povo.

A estratégia narrativa assenta no contínuo cruzamento entre o tempo curto, o daqueles quatro dias, e o tempo longo de uma vida. O tempo curto é aquele em que o narrador conta a sua vida banal. A procura do filho por injunção da mulher, o encontro com uma futura e breve amante, um jantar de família, os sonhos que lhe povoam a noite, as cenas da vida profissional, as frustrações existenciais. Este tempo da banalidade quotidiana, mesmo que atravessado pela fuga do filho e a conquista de uma jovem amante, é posto em tensão, através de um constante exercício mnésico, com o tempo longo da sua vida, um tempo que vai do passado ao futuro. O narrador entrega-se a contínuas analepses e prolepses, que lhe dão uma densidade temporal, lhe conferem uma identidade e uma história. Permitem compreender o percurso que o leva àqueles quatro dias e o caminho que esses quatros dias abriram até depois de 25 de Abril de 1974, até ao momento que em 1978 escreve a história, um romance que pretende ser também a confissão de um adultério. Nós e os outros é a história de um homem da classe média a entrar na parte final da vida. De um homem que um dia sonhou ser revolucionário e ficou preso dentro desse sonho, impotente para o realizar, como o faz o filho, e impotente para sair dele, como o fez o cunhado. O ano de 74, permitiu-lhe, todavia, mergulhar na militância comunista, embora sem o encanto mítico do herói da resistência, sem a experiência sobrenatural de comunhão com um corpo que é sentido, pelos que dele fazem parte, como sendo mais do que humano.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

José Régio, A Velha Casa – (II) As Raízes do Futuro

O segundo romance do ciclo A Velha Casa, As Raízes do Futuro (1947), medeia entre o retorno de Lelito (Manuel Trigueiros, o segundo de quatro filhos do casal Maria Teresa e Martinho Trigueiros) e a morte de madrinha Libânia, a matriarca da família e a proprietária efectiva da casa. Se Uma Gota de Sangue não dava qualquer pista que permitisse compreender a época em que decorria a acção romanesca, o segundo informa que se estava em 1920. Esta indicação não é despicienda para a compreensão da trama narrativa. Está-se no início dos chamados loucos anos 20. Não é que numa aldeia rural, Azurara, do concelho de Vila do Conde haja referência existencial ao modo de vida que a expressão consagra, mas de uma maneira ou de outra o Zeitgeist haveria de encontrar maneira de ali se reflectir, ainda que de forma imperceptível para os próprios habitantes.

A casa não é propriamente o edificado, mas antes a teia de relações sociais, familiares e afectivas que nela se entretecem. Não é que partes da casa não tenham, por si mesmas, um valor próprio na narrativa. O sótão ou o quarto da madrinha Libânia, mas não é o aspecto arquitectónico que é central. A situação é curiosamente ambígua. Uma casa, entendida do ponto de vista social e na época em que a narrativa decorre, tem por referência o nome e a pessoa de um homem. A velha casa, todavia, centra-se na figura de Libânia, uma solteirona, tia de Martinho e tia-avó dos filhos deste. Ela é o centro da casa, é para ela que se voltam os olhares e as expectativas, embora seja Martinho o gestor das propriedades da tia, assim como das suas. A família de Martinho é a presuntiva herdeira, embora a relação de veneração que todos, naquela casa, têm pela matriarca esteja muito para além do mero interesse. Martinho é um gestor rigoroso, um homem dos antigos, o representante de uma tradição de honradez e de fidelidade piedosa para com os valores do passado, onde se incluem os valores da religião em que todos foram criados.

A fortuna de Libânia resultou de uma herança de um irmão que, perante a pobreza e a dificuldade dos tempos, emigrou para o Brasil. De certa maneira, o romance de Régio ainda é um reflexo da saga dos brasileiros, isto é, dos portugueses que foram para o Brasil em busca de aventura e fortuna. Esse brasileiro enriqueceu, mas não tinha descendentes. Entre os inúmeros irmãos escolheu Libânia como herdeira e, de certa forma, tutora discreta das famílias dos outros irmãos, que tinham perante ela a necessidade de estabelecer relações cordiais e, por isso, de disfarçar a inveja e o azedume causados pela protecção ao sobrinho Martinho. Se Libânia é o centro vivo da família, o brasileiro é o espiritual. Também neste aspecto Régio não deixa de criar uma ambiguidade. Em cada aniversário da morte do emigrante, são rezadas três missas, cada uma por um padre da família. No entanto, o leitor percebe que o brasileiro talvez não fosse muito católico e que o seu compromisso seria com a Maçonaria, a qual surge como uma sombra ténue na obra.

Este segundo romance acompanha a doença e recuperação de Lelito, mas também esboça o que poderá ser o futuro da família. Há uma grande tensão entre a tradição e as novas gerações. Não apenas Lelito desobedece aos imperativos paternos com a sua fuga do colégio no Porto, como o irmão mais velho, já engenheiro, se afastou de casa, pretextando a continuação da formação no estrangeiro, encontrando desculpas para adiar continuamente o seu retorno. O ramo masculino procura o seu próprio caminho. Lelito preparando-se para a Universidade, incendiado por interesses estéticos e filosóficos que estão muito para além daquilo que lhe poderá proporcionar a tradição familiar. João ter-se-á afastado decisivamente dos valores da casa, apesar da relação afectiva que mantém com os que dela fazem parte. Enquanto estudante em Lisboa, não deixou de levantar, na aldeia, suspeitas de interesse pela Maçonaria e por todo uma cultura que estava longe de se coadunar com o velho catolicismo do mundo rural. Estava-se em plena primeira República. Mais tarde, o narrador deixa a suspeita de que será o anarquismo e o combate social em nome dos desfavorecidos que movem João e o afastam de casa. Também as raparigas, mais novas que os rapazes, trazem nelas um enorme potencial para fazer explodir o apego à tradição e à venerabilidade dos velhos valores. A mais nova, Angelina, parece tocada por um fervor místico, o qual é intensificado pela descoberto de um caderno de uma tia que morreu louca, ou assim é contado, caderno esse que sugere uma intensa vida espiritual, marcada por experiências que ultrapassam em muito a mera devoção beata e convencional. Por fim, Maria Clara, que começa a tornar-se mulher tomou-se de amores por um desigual. Seja qual for a perspectiva, os valores da tradição que animavam a alma da velha casa encontram-se perante um desafio trazido pela nova geração. Seja como for, a casa, a velha casa, representa as raízes dessa nova geração. É ela que a segura e a alimenta, que a abre para o futuro.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Invierno

A Sonata de Invierno (1905) termina o ciclo de quatro pequenos romances dedicados às memórias amorosas do marquês de Bradomín, talvez o mais admirável dos Don Juan, pois, segundo uma tia, era feio, católico e sentimental. A personagem de Bradomín permitiu, principalmente neste último romance, a Valle-Inclán fazer uma exploração romanesca sobre o carlismo, movimento político antiliberal, defensor do Antigo Regime e oposto tanto aos republicanos como aos monárquicos constitucionalistas. O movimento organizou-se em torno de Carlos VII. Xavier Bradomín, nesta Sonata, está na cidade de Estella, em Navarra, onde se encontra a corte do pretendente ao trono de Espanha, aquando de mais um conflito entre constitucionalistas e absolutistas.

As Sonatas, no seu conjunto, são um autêntico exercício de desconstrução. A estratégia levada a efeito por Valle-Inclán reside no dissimulado contraste entre aquilo que a personagem do Marquês proclama e o modo como é reconhecido pelas outras personagens, por um lado, e, por outro, o que o desenrolar da acção romanesca nos mostra. A estratégia é subtil por que foge ao modelo da demonstração. Aquilo que é afirmado pelo Marquês e pela envolvência é que estamos perante um Don Juan, um católico e um tradicionalista fiel a Carlos VII. O que acontece é que os seus actos e, muitas vezes, as próprias opiniões em vez de confirmarem a tese, acabam por contradizer tanto a sua natureza donjuanesca, como o seu catolicismo e o seu carlismo. O autor constrói a personagem do marquês a partir da tensão entre um ideal, dado pelas três características referidas, e uma existência que, apesar daquilo que o discurso sublinha e engradece, não tem a potência para realizar esse ideal. O glorioso marquês é, a todos os títulos, um falhado.

As aventuras amorosas, quase todas, são inconsequentes ou, mesmo se chegam à consumação sexual, há nelas mais um rasto de derrota do que a afirmação de um D. Juan coleccionador de vítimas, que abandona e esquece. Na Sonata de Inverno, apesar de uma noite fogosa com uma antiga amante aquando da sua chegada à corte de Carlos VII, os seus dois objectivos eróticos – evitar que essa amante opte pelo marido em detrimento dele ou o consumar da sedução de uma jovem educanda num convento – saldam-se da mesma maneira, com um beijo apenas, na verdade um beijo de despedida. Esta natureza equívoca do grande conquistador desenha-se em todas as outras Sonatas, de forma mais acentuada nas de Primavera e de Outono. O donjuanismo é, na verdade, um elemento ideológico e não uma forma de agir ou um modo de existência. Esta visão de Valle-Inclán da figura de D. Juan é uma das mais interessantes, pois desmonta o mito – reduzindo-o a mera ideologia, no sentido marxiano de imagem invertida da realidade – através de um processo que, um leitor ingénuo, acreditará que o reforça.

Em qualquer das Sonatas o apregoado catolicismo de Bradomín choca com a sua aura erótica, mesmo que frustrada. Apesar de ser uma espécie de D. Juan anti-D. Juan, o marquês não deixa de se envolver numa ambiência sensual, na qual mergulha a generalidade dos contactos com o feminino. Os casos consumados ou não com mulheres casadas conflituam com um dos mandamentos que regem a moralidade católica, o de não cobiçar a mulher do próximo. No entanto, o autor é um modernista e como tal não deixa de ser tentado a desafiar as convenções e as próprias convenções religiosas. Tanto na Sonata de Primavera como na Sonata de Inverno o marquês seduz, embora sem consumação sexual, duas candidatas aos votos religiosos. No caso da irmã Maximina, na Sonata de Inverno, há que juntar um outro ingrediente. Há a suspeita de que ela seria filha bastarda do próprio marquês, feia como ele. Desrespeito pela sacralidade do matrimónio, tentativa de destruição através da sedução de vocações religiosas e indiferença perante a possibilidade de incesto, casos que não geram nele nenhum traço de arrependimento, dão a medida da natureza meramente ideológica do catolicismo de Xavier Bradomín.

Resta o seu tradicionalismo, a sua fidelidade a uma aristocracia medieval e à glória antiga de Espanha. Já na Sonata de Verão, passada no México, a revivescência da glória imperial de Espanha, à qual o carlismo se declarava fiel contra a visão dos liberais, é atravessada por uma funda ironia. Na Sonata de Inverno, toda ela perpassada por acontecimentos da história política de Espanha da época em que decorre a acção romanesca, vemos o marquês próximo da Corte, a sua intimidade com Carlos VII, o risco que corre pela causa e até a perda de um braço num recontro com as forças militares inimigas. É aqui que, ao contrário do que tinha acontecido até aí, o discurso vai desmentir a acção. O que será o carlismo e a causa absolutista para o marquês, ele que combate e dá um braço pela causa de Carlos VII? Oiçamo-lo. “Eu achei sempre mais bela a majestade caída que sentada num trono, e fui defensor da tradição por estética. O carlismo tem para mim o encanto solene das grandes catedrais, e já nos tempos da guerra ter-me-ia contentado que o declarassem monumento nacional. Bem posso dizer, sem jactância, que como eu pensava o Senhor.”

Quase no fim da obra, Valle-Inclán deixa a chave decisiva para compreender a personagem Xavier Bradomín, esse falhado D. Juan, falhado católico e falhado carlista. “Eu não aspiro a ensinar, mas a divertir. Toda a minha doutrina está numa só frase: Viva a bagatela! Para mim, ter aprendido a sorrir, é a maior conquista da Humanidade.” A equivocidade do marquês não o aproxima da personagem de D. Juan, mas de D. Quixote. Bradomín é um Quixote dos tempos modernos, um esteta que se diverte com aquilo que finge ser, que ri das suas crenças e da sua falência existencial. 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

José Régio, A Velha Casa – (I) Uma Gota de Sangue

Na obra ficcional de José Régio (1901-1969), A Velha Casa, um ciclo de cinco romances, publicado entre 1945 e 1966, é o ponto mais elevado, o confronto decisivo do escritor, em plena maturidade, com a narrativa de grandes dimensões. Uma Gota de Sangue (1945), o primeiro romance do ciclo, não explora directamente o espaço da velha casa de família da personagem principal, Manuel Trigueiros, quase sempre referido por Lelito, em Azurara (Vila do Conde). Nesta obra inicial, o espaço da casa é mitificado e idealizado pela distância a que Lelito dela se encontra. Ao espaço mítico da origem, com o seu mundo íntimo, é contraposto o espaço desencantado, profano e opressivo do Colégio Familiar, na cidade do Porto, com as suas regras impessoais e os seus poderes, uns de direito e outros de facto.

Lelito fora ali parar como semi-interno. Residia no colégio, mas frequentava o liceu. Estaria a preparar o último ciclo dos liceus para entrar na Universidade. Desde o primeiro momento que a sua atitude contemplativa e de inclinação intelectual entra em confronto não apenas com muitos dos colegas, mas também com alguns dos adultos, entre eles um prefeito poderoso e ameaçador e o próprio director da instituição. A personagem é confrontada com um espaço e um tempo racionalizados, distribuídos segundo regras explícitas, cuja violação poderia acarretar sanções tanto da autoridade colegial como dos próprios colegas. Os espaços dos recreios, divididos escrupulosamente segundo níveis etários, bem como os das salas de estudo, do refeitório e do dormitório obedeciam uma ordem quase militar, que os despia de qualquer encanto para alguém que trazia consigo o peso da imagem idealizada do lugar de origem.

É neste sítio ominoso que Lelito se vai descobrir no confronto com os colegas e mesmo com os prefeitos. Naquela sociedade fechada, as relações organizam-se em torno de grupos, com os seus cabecilhas, e as rivalidades habituais entre bandos juvenis. Está longe de ser o melhor sítio para personagens singulares, meditantes, pouco interessadas nas brincadeiras mais ou menos inocentes a que a massa dos alunos, mesmo os mais velhos, se entregavam. Este é um dos traços mais marcantes do romance, o confronto entre um self em busca de si mesmo, da sua singularidade e a massa indiferenciada do nós comandada por pequenos chefes, aprendizes de tiranetes. Todo o romance é atravessado por este conflito entre o eu e o nós, entre a singularização do espírito e a massa anónima dos corpos, com a alarvidade dos seus desejos.

Neste espaço concentracionário, onde apenas existem membros do sexo masculino, a libido não se entrega a um prolongado sono. Régio não deixa de enfrentar romanescamente a suspeita da existência de uma homossexualidade mais ou menos difusa neste tipo de organização escolar. É com ela também que Lelito, sendo-lhe estranha, se confronta, num jogo violento e que, de forma enviesada, acabará por determinar não apenas o seu estatuto perante os colegas, os prefeitos e o próprio director, como acabará por decidir a sua relação com o colégio, a cujas regras implícitas, com o seu cortejo de servidões e derrotas, nunca se adequará. É também desse episódio de violência desencadeado por uma tentativa de sedução que ele descobre os limites do que é possível falar ou não com o pai.

Se o romance Uma Gota de Sangue é marcado pelo conflito entre dois espaços, não o é menos pela questão da família. Não por acaso, a instituição escolar onde Lelito se encontra tem o nome de Colégio Familiar. Isto permite ao autor esboçar uma contraposição entre a família, com os seus laços de solidariedade e regras de autoridade mediadas pelo afecto e a partilha de interesses comuns, e esses sucedâneos da família que, nas grandes cidades, acolhem os jovens que pretendem estudar. O Colégio Familiar era destituído de tudo aquilo que é essencial numa família. As suas regras, como aconteceu durante décadas em Portugal até à explosão do ensino público, aproximam-nos das instituições penitenciárias e disciplinares ou, num outro âmbito, das organizações militares. Nelas não há lugar para o emergir e florescer da singularidade do self.

Uma Gota de Sangue é, deste modo, um romance de formação, onde se acompanha, numa certa fase da vida, o processo de desenvolvimento moral, psicológico, intelectual e estético do protagonista. Contrariamente a certos romances realistas e neo-realistas, José Régio dá grande atenção à complexidade das personagens. Nenhuma das que tem importância na economia narrativa se deixa capturar por um arquétipo definido a priori. Todas elas possuem elementos mais luminosos e outros mais sombrios, embora esse doseamento não seja igual em todos. Há personagens mais tenebrosas e outros mais cintilantes. É neste jogo de luz e trevas que Manuel Trigueiros inicia a sua efectiva formação, é nele que se descobre e vai descobrindo aquilo que lhe é próprio e aquilo que não fará parte do seu acervo existencial.

domingo, 27 de setembro de 2020

Carlos de Oliveira, Alcateia

Publicado em 1944, o romance Alcateia, de Carlos de Oliveira, teve uma segunda edição revista em1945, não existindo qualquer outra posterior, ao contrário dos restantes quatro romances do autor. Se Casa na Duna, de 1943, se centrava numa família específica de proprietários, para a qual o escritor, de acordo com a tradição rural portuguesa, usou a metáfora da casa, neste romance, apesar do problema da casa, enquanto continuidade familiar, não estar ausente, a metáfora da alcateia coloca o leitor de imediato perante um universo social mais amplo e complexo, mas por certo não menos fechado. O romance é um retrato da oclusão das micro-sociedades da província portuguesa, neste caso do universo da Gândara. Um mundo fechado sobre si, impenetrável, alimentado por relações onde o cerramento aproxima as pessoas e as diferenças sociais introduzem distanciamentos inultrapassáveis.

A penúria da terra gandaresa açoitada pelas secas gera no grupo social uma divisão extremada, uma ruptura na alcateia. De um lado, um conjunto de homens que formam um bando de assaltantes e que lançam o terror por toda a Gândara. No outro lado, aquilo a que se poderia chamar as elites locais que disputam, em torno dos interesses – grandes ali, embora miseráveis se olhados de fora –, os pequenos poderes, gerem as intrigas, as pequenas aversões e os grandes ódios. O problema desta divisão social é que ela acaba por ser estereotipada. Apesar de no bando de assaltantes também existir disputa e rivalidade, a forma como são construídas personagens mostra-os pessoas dotadas de uma bondada natural, que a sociedade, a vida e a sorte acaba por empurrar para o crime, numa formulação do mito do bom selvagem de Rousseau. Apesar de tudo, há neles vínculos que ultrapassam os limites conjunturais dos interesses e são esses laços que, ao serem traídos, geram uma violência insuportável. No outro lado, na outra alcateia, não há vínculos, apenas interesses e conflitos em torno dos interesses, antagonismos, dissimulação, cálculo, cinismo. A escassez, ao tocar também as elites locais, torna-as impiedosas e em conflito permanente entre si. No entanto, as personagens surgem como meros estereótipos, sem complexidade, sem dúvidas sobre o caminho a tomar, sem profundidade subjectiva. Traços de complexidade subjectiva emergem em alguns assaltantes e também numa personagem secundária, o filho do administrador da vila. Não estamos perante um épico da luta de classes, mas de uma leitura social que se esforça por enquadrar as personagens em arquétipos existentes a priori.

Para além da pobreza e da mesquinhez, a sensação de oclusão é dada por dois sinais. Por um lado, a ausência quase total de qualquer referência ao mundo fora da Gândara. O livro é publicado durante a segunda grande guerra, mas os acontecimentos da política internacional não são sequer aflorados, como se o espaço e o tem romanescos fossem não o fruto de uma História, mas o resultado de um destino que não é tocado pelas grandes tragédias que afligem a humanidade. Ali, naquele mundo autárquico, bastam os pequenos dramas. Um segundo sinal dessa oclusão é dado pela reacção do administrador e da mulher perante um amor de praia do filho. O problema é que ela era uma rapariga da cidade, e uma rapariga da cidade é demasiado senhora do seu nariz, tem iniciativa excessiva. A cidade permanece sempre por identificar, mas o facto dela vir da cidade causaria uma perturbação excessiva que o pequeno mundo da Gândara não conseguiria acomodar. O rapaz é coagido pelos pais a terminar o namoro e, incapaz de os enfrentar, cede ao seu desejo. Pode haver dois níveis de leitura desta oclusão do universo romanesco. Uma benévola dirá que estamos perante uma alegoria sobre a situação de Portugal. A clausura do ambiente social da Gândara não é outra coisa senão uma imagem concentrada de um país fechado sobre si mesmo. Uma leitura menos benévola sublinhará a natureza paroquial do romance, o seu pendor regionalista.

Um dos traços mais interessantes da obra, embora não constitua o seu objecto central, surge da relação entre Fernando e o pai, o administrador da vila, o representante dos poderes locais. A disputa em torno do namoro com a rapariga da cidade vai levar a um afastamento entre pai e filho. O sentido da vida do pai era o de transmitir uma posição e uma casa sólida ao filho, este, todavia, parece afastar-se decisivamente dele e do seu universo, aniquilando o sentido da sua existência. Em Coimbra, onde Fernando estuda, as companhias parecem levá-lo para outro mundo, dando-lhe outra visão da realidade, das relações sociais e da própria vida. Essa é a única fresta –pequena na economia do romance – para um além da Gândara e do mundo paroquial onde decorre a acção romanesca.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Leo Perutz, O Cavaleiro Sueco


O romance O Cavaleiro Sueco (1936), do escritor austríaco, de origem sefardita, Leo Perutz (1882-1957), é uma reflexão sobre a identidade e o destino. Melhor, é uma reflexão sobre a fragilidade e o equívoco das identidades e a força do destino. Se se quiser eleger duas questões que o romance trabalha elas são quem é aquele que se cruza connosco? e o que cabe a cada um fazer e desempenhar na existência? O romance é a resposta a um enigma que afligiu, durante parte substancial da sua vida, a bela Maria Christine, nascida von Tornefeld, enviuvada von Rantzau, tornando-se von Blohme por um segundo matrimónio. O enigma nasce quando, ainda criança, o pai diz em casa que tem o dever, enquanto sueco, de ir combater na guerra que os suecos, no início do século XVIII, travavam contra os seus vizinhos. Foi-lhe dito, todavia, que apesar de o pai ir para muito longe, o seu veloz cavalo permitia-lhe vir secretamente vê-la. A verdade é que essa promessa impossível de ser cumprida foi cumprida. O pai visitava-a pela calada da noite, para logo desaparecer. No entanto, a certa altura chega um emissário do exército sueco com a notícia da derrota dos suecos e a morte do heróico cavaleiro von Tornefeld, tendo este sido enterrado já há três semanas. Maria Christine não acredita no mensageiro, pois ainda há dois ou três dias o pai a visitara de noite. Seria impossível ele estar morto. Haveria de voltar. Nunca voltou. As visitas secretas cessaram para sempre.

Para resolver o enigma que atormentou a existência de Maria Christine, o autor conta uma história de equívocos e trocas de identidade entre um ladrão perseguido pela justiça e um jovem aristocrata desertor do exército sueco. Esta troca de identidades, ocorrida num moinho e mediada por uma estranha personagem denominada o moleiro morto, entre seres pertencentes a estratos sociais tão diferenciados vai permitir que se perceba que as funções sociais constitutivas da identidade pessoal são facilmente reversíveis. Sem excessiva dificuldade o ladrão assume de forma convincente, perante terceiros, as funções e a vida de um aristocrata e, ao mesmo, tempo um aristocrata encontra um rumo para a sua existência ao assumir o destino de um ladrão. Nas circunstâncias onde decorre a sua nova vida, ambos passam muito bem por aquilo que não são. Desempenham os papéis sociais que os seus novos estatutos exigem sem que isso levante qualquer suspeita. O ladrão vivia entre a aristocracia como se de um aristocrata se tratasse, o aristocrata trabalhava nas fundições de um terrível bispo, que explorava os condenados que se refugiavam no seu território, sem que alguma vez fosse visto como outra coisa senão como um miserável condenado. O romance mostra que a identidade de cada um pouco tem que ver com o estatuto social. Este e facilmente reversível, pois não passa de mera representação teatral, papel que se assume e se representa mas que não se deve confundir com a identidade de cada um. À pergunta quem é aquele que se cruza connosco? a única resposta aceitável é a confissão da nossa ignorância. Conhecemos os papéis representados, não os actores que os representam.

O romance de Leo Perutz é uma espécie de fábula e como todas as fábulas esta também terá os seus ensinamentos. Devido a um conjunto de peripécias, os dois envolvidos na troca de identidades tornam-se a encontrar, encontro mais uma vez mediado pelo moleiro morto, personagem que representa a presença no romance do mundo encantado do mito e da superstição pré-iluminista, numa época em que a realidade, devido ao avanço da modernidade, começava a desencantar-se. Este encontro serve, na economia da narrativa, para uma nova troca de identidades. O ladrão volta à sua condição de ladrão e homem condenado e o aristocrata retorna à sua condição de cavaleiro sueco que procura juntar-se aos exércitos do rei da Suécia. As peripécias da fortuna, o jogo de acasos e de enganos, acaba por devolver cada um à sua anterior condição. Não se trata, porém, de uma mera reposição do estatuto social, mas do sublinhar de que ninguém tem o poder de fugir à sua condição ontológica, à sua natureza essencial, pois esta não é uma mera determinação social, mas algo muito mais fundo e anterior à condição social em que cada homem vive. Aquilo que cabe a cada um desempenhar na existência não deriva nem de si mesmo nem da sociedade, as ideias reguladoras das ideologias do século XIX e XX. Ninguém pode fugir à sua natureza ou ao seu destino. As peripécias da vida, os equívocos e os enganos servem apenas para fazer que cada um se acorde com o destino que lhe foi – seja pela divindade ou pela natureza – destinado. Por mais que dele fuja, é para ele que, através dessa fuga, se dirige. A resposta ao enigma que atormentou a vida de Maria Christine nascida von Tornefeld, aparentando por vezes ser uma comédia de enganos, não é outra coisa senão uma reflexão sobre a condição humana na Terra. Uma pequena (pouco mais de 200 páginas, na edição portuguesa) obra-prima.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Primavera


O terceiro romance do ciclo Sonatas é a Sonata de Primavera (1904). Do ponto de vista da história da personagem, o marquês de Bradomín, esta obra é a narrativa de uma aventura amorosa mais antiga, ocorrida ainda na juventude, quando o aristocrata é enviado pelo Papa à cidade ficcional de Liguria para entregar uma mensagem a monsenhor Gaetani. Ao chegar ao palácio dos Gaetani, encontra o prelado moribundo. Tendo sido reconhecido pela princesa Gaetani, que o embalara quando criança, é convidado a permanecer no palácio. Aí conhece as cinco filhas da princesa e apaixona-se por Maria del Rosario, a mais velha. O problema é que esta estava para dar entrada num convento. Todo o romance gira então à volta das tentativas do marquês para seduzir a futura monja e da resistência que esta lhe opõe.

Como nas anteriores Sonatas o poder descritivo e evocativo de Valle-Inclán é notável. Transporta o leitor para dentro do palácio. Combina a descrição da dimensão física e arquitectónica do edifício com a sua ambiência social e devocional, fundindo arte e vida como se fossem uma única coisa. É nessa paisagem que o autor inscreve as deambulações de Eros, o jogo de sedução do marquês visando a jovem filha da princesa e a resistência desta, a qual é, ao mesmo tempo, o acordar para a realidade do amor humano, a qual estava adormecida dentro de si. Este D. Juan feio, sentimental e católico – como em velho se catalogou – emerge como a figura do tentador que vai acender, no fundo do coração de Maria del Rosario, a tensão entre o amor por um homem e o amor por Deus.  

Este transe em que um coração se sente confrontado com a necessidade de ter de escolher entre o amor humano e o divino é acompanhado por um outro, já presente nas anteriores Sonatas. Trata-se da relação muito próxima entre amor e morte. Não se trata, neste caso, tanto da morte dos amantes ou de um deles, embora Xavier Bradomín, por causa do seu interesse pela jovem, tenha sofrido uma tentativa de homicídio, certamente ordenada pela princesa. Esta colocava um grande empenho na vocação religiosa da sua filha e na entrada desta para o convento. A forma como o autor consegue estabelecer esse laço entre Eros e Tanatos, no final da obra, é completamente inesperada, afastando-se de modelos já explorados por autores como Shakespeare.

Com uma tonalidade decadentista, a trama narrativa mobiliza elementos que tendem a pôr em questão tanto uma visão do mundo iluminista e racionalista como uma outra de cariz católico e tradicional. O marquês, apesar de se apresentar como um tradicionalista (um carlista) e como católico, nunca deixa de ser uma personagem subversiva nesse mundo do catolicismo conservador, de que ele se apresenta como advogado e agente. Na Sonata da Primavera ele é alguém que está ao serviço do Papa, um enviado deste. No entanto, a sua conduta é muito pouco católica. É tentado pela beleza da jovem, mas também se percebe que a possibilidade desta se tornar uma virgem consagrada à divindade constitui para ele um motivo de intensificação libidinal. Este cruzamento entre sexo e religiosidade é ele mesmo ambíguo. Por um lado, parece inscrever-se no topos provocatório – o recorrente épater le bourgeois do decadentismo – que a literatura modernista desenvolve perante as tradições religiosas. Por outro, todavia, não deixa de ser uma forma, ainda que indirecta ou invertida, de sublinhar aquilo que há de sagrado e misterioso no desejo erótico.

Bradomín assume, no palácio dos Gaetani, a figura do grande tentador. A princesa recebeu-o como um enviado de Deus – isto é, do seu representante na Terra – e, quando se apercebe do interesse erótico na sua filha, vê-o como o enviado do diabo. O que é corroborado por episódios onde intervém uma bruxa, a qual permite a Bradomín evitar as armadilhas que contra a sua vida são tecidas. No entanto, também aqui a arte de Valle-Inclán tem o poder de deixar o leitor na incerteza. Em todo o romance, é-se confrontado com situações ambíguas. O marquês ama Maria del Rosario ou apenas a vê como um mero objecto sexual, uma presa, ainda por cima uma virgem a ser consagrada, para satisfazer o seu instinto de caçador? Será um homem de Deus, como ele próprio se identifica, ou uma figuração humana do grande tentador? Será um D. Juan ou mascara-se apenas de D. Juan como uma estratégia de compensação? Será, num outro âmbito, um aristocrata tradicionalista da velha cepa ou alguém que se assumindo assim não deixa de ser, através da ironia, um desconstrutor da imagem da velha aristocracia, completamente decadente. O que torna estes pequenos romances notáveis é a combinação dos seus diálogos e descrições de ambiências de grande esplendor literário com a ambiguidade com que a figura do marquês é construída, é a capacidade de, ao mesmo tempo, apresentar uma personagem que parece ser uma coisa e, através de uma subtil ironia, mostrar-se com sendo uma outra. Como as outras, a Sonata de Primavera é um exercício refinado de ambiguidade, uma obra de arte na composição de uma personagem complexa sob a aparência de uma simplicidade e transparência que raiam a ingenuidade.

domingo, 6 de setembro de 2020

Tomás de Noronha, Volúpia que Salva


Um dos mais inusitados e inesperados romances que poderia encontrar é este Volúpia que Salva, publicado em 1926, mesmo a identificação do autor é relativamente problemática. O livro está assinado por T. Noronha e alguns catálogos de bibliotecas municipais atribuem-no a Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias denominadas De Capa e Batina (1929), que versam sobre a boémia coimbrã. Ambos os livros são publicados pelo mesmo editor, J. Rodrigues & Cª, sediado na Rua do Ouro, em Lisboa. A entrada referente a D. Tomás Maria de Noronha na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira refere o texto sobre os tempos de Coimbra e outras pequenas obras sem relevo, mas não o romance. Este terá sido bastante lido na época, pois foram feitas pelo menos três edições sucessivas de mil exemplares cada. O que terá apagado este romance da memória literária nacional e até da referência enciclopédica ao seu eventual autor?

O romance é bem arquitectado, possui uma trama que conduz a um desenlace final significante, o autor expressa-se bem em português, apesar de não seguir a simplificação ortográfica de 1911, possui uma cultura sólida, constrói personagens que possuem pensamento próprio, uma delas inclusive um pensamento filosófico coerente e fundamentado no espírito de certas correntes filosóficas com boa fortuna na época. Uma das razões terá sido que a obra se organiza em torno de uma relação homoerótica feminina, decorrendo todo ele num universo social de matiz homossexual. O segundo milhar de exemplares acabou de ser impresso a 28 de Maio de 1926, o dia em que um golpe militar pôs fim à primeira República. Se ainda foi possível a impressão de pelo menos um terceiro milhar, os tempos deixaram de ser propícios a estas derivas literárias, as quais, como se verá, possuem uma tonalidade decadentista, relativamente tardia, que será sempre desprezível para o novo ambiente político, marcado pelo puritanismo nos costumes, e também para o movimento literário que, nos finais dos anos trinta do século passado, foi animado por escritores oposicionistas, o neo-realismo.

Do ponto de vista epocal, o romance situa-se nos finais da República e pode ser entendido como um retrato da desagregação da aristocracia e, curiosamente, da própria República. A tensão nasce das pretensões de duas mulheres, Octávia Rodrigues Saavedra e Valéria Prado, que se apaixonam mutuamente, em penetrarem nos círculos sociais mais elevados da capital, em busca de reconhecimento. O problema não estará no caso amoroso entre elas, mas na sua presunção, apesar do dinheiro que uma parece ter e do talento artístico da outra, ao quererem aceder a um Olimpo social muito restrito. Este é um dos pontos onde o romance vinca a sua tonalidade decadentista. Uma crítica acerada ao mundo burguês, com a sua moral do dever, o sublinhar das prerrogativas aristocráticas, reais ou imaginárias, e a apologia da evasão do mundo quotidiano. O leitor depara-se com um mundo fútil, perdido entre prazeres que se pretendem refinados e a mais mesquinha coscuvilhice. Deste ponto de vista, a mera exposição da vida destas camadas sociais torna-se, ipso facto, uma crítica social de natureza irónica. Dentro dessa ironia, pode-se ainda observar a invenção de um país, que desempenha um papel considerável na trama narrativa, a Sapholandia, um país europeu cuja capital é Inversóvia.

Contudo, o toque decadentista mais exacerbado é dado pela personagem José Dardo, pertencente a uma das casas mais importantes da capital portuguesa. Ele é o grande pensador e orquestrador de um mundo onde a homossexualidade é um instrumento central para atingir os fins de que ele, o esteta por excelência, se sente como o grande e derradeiro anunciador. Dardo faz uma leitura das paixões humanas como caminho para a redenção, através do arrependimento. É preciso abandonar as abstinências e o controlo das paixões para que estas se refinem e percam a animalidade, cujo fito é a reprodução da vida. Toda a filosofia e Dardo é um hino ao decadentismo, onde nem falta o consumo de ópio. Uma sensibilidade hiperestilizada, um refinamento aristocrático do gosto, a recusa dos prazeres das plebes presas ao imperativo da procriação. Fundamentalmente, a recusa da sexualidade entre homem e mulher como caminho para o fim da espécie.

O romance é suficientemente bem escrito para deixar o leitor na dúvida se está perante uma apologia da morte e do desaparecimento da humanidade, através da educação dos homens para uma vida esteticamente viciosa, na qual a única sexualidade admissível é a que desvia o prazer da possibilidade da fecundação, ou se o desenvolvimento da trama narrativa acaba por ser uma exposição quase lógica das consequências nefastas dos princípios decadentes. Princípio esses que animam aquelas personagens, todas elas presas a uma necessidade de serem outra coisa do que aquilo que são, de se evadirem da realidade brutal da existência num mundo artificioso, onde a volúpia é o caminho para a morte. Estar-se-á perante uma crítica da sociedade e dos valores do pós-guerra, dos gloriosos anos vinte, ou, pelo contrário, o romance é um exercício literário de defesa dessa modernidade estética individualista e em contradição com o senso-comum?

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Teresa Veiga, Cidade Infecta


De acordo com o que é anunciado Cidade Infecta, de Teresa Veiga, foi escrito durante o tempo de confinamento. É o segundo romance da autora, embora ela possua, enquanto contista, um nome firmado e premiado no mundo literário nacional, desde 1992. Apesar de ter sido escrito no auge da pandemia, apesar dos títulos da obra, com a referência ao infeccioso, e do último capítulo, o “Triunfo da Normalidade”, não se está perante uma narrativa que se centre em acontecimentos provocados pela emergência do vírus que actualmente perturba a vida um pouco por todo o lado. Se bem que o espaço onde se desenrola a generalidade de a acção romanesca – uma cidade de província denominada Oliveira – e o tempo de os acontecimentos serem indeterminados, claramente não são recentes. Passam-se num país que para percorrer de carro os 150 km que separam Oliveira de Lisboa são necessárias três horas, num país em que dez contos é uma pequena fortuna, num país em que ainda é possível ligar o rádio e escutar Cândida Branca Flor.  Deste ponto de vista, o romance é uma escavação arqueológica da vida infecta.

Que infecção é essa que recai sobre a cidade, que não passa de uma referência metonímica ao país? O romance tematiza a amizade entre duas mulheres, as relações familiares, a vida conjugal, a violência sobre as mulheres, as estratégias de sobrevivência, as relações adúlteras, as funções sociais, o crime. Todos estes temas são, porém, modelações de uma desolação que parece afectar não apenas as vidas das duas amigas e protagonistas centrais da trama narrativa, mas todo o tecido social onde elas se movem, uma entre a burguesia fabril e a outra no seio da pequena burguesia, ambas provincianas. É uma realidade desoladora, mesmo se o desafogo material é grande. Esta desolação parece ser o efeito de uma pequenez estrutural que a tudo toca e contamina. A tudo falta qualquer coisa.

As duas mulheres – Raquel e Anabela – são, cada uma a seu modo e no âmbito das suas relações sociais, arrivistas. Graças aos atributos físicos e à forte personalidade, fazem casamentos acima do seu estatuto social, e são ambas vistas de soslaio, se não desprezadas, pelos respectivos sogros. No entanto, o que se torna patente é que fora desse arrivismo não há nada, a não ser a pobreza, a da família de Anabela, ou a situação equívoca da mãe de Raquel. O resto, as famílias ricas ou remediadas de Oliveira, faz parte também ele de um arrivismo, apenas um pouco mais antigo, que não deixa de ser completamente desolador. Se há uma tradição no país, essa é o arrivismo, mas este tem a sua raiz na desolação que infecta toda a cidade.

Essa desolação que infecta a cidade – isto é, a sociedade em geral – tem uma origem muito precisa. As mulheres portuguesas, talvez parte substancial delas, mantêm casamentos desencantados. Entre a mitologia do príncipe encantado e o homem disponível para estabelecer uma família há uma enorme distância. O padrão sonhado e a realidade estão tão afastados que o resultado é a pura desolação, enfrentada com mais ou menos cinismo, com mais ou menos condescendência. A distância entre o desejo e a realidade mina a relação conjugal, que acaba por se tornar o exercício de duas frustrações que correm paralelas, cruzando-se por vezes através da violência verbal ou física. O adultério, no caso o adultério feminino, é, então, uma estratégia de sobrevivência e não, propriamente, o exercício de uma infidelidade.

É esta desolação – fundada na sombria pequenez da relação matrimonial – que se torna uma mancha e, como tal, alastra por toda a sociedade. O romance de Teresa Veiga é não apenas uma arqueologia que escava o terreno para descobrir o que se esconde no fundo das relações humanas, mas ainda uma hermenêutica da vida social, em que o elemento central é a interpretação do casamento. É a disfunção amorosa – mais que a sexual – e a pequenez da vida matrimonial que se espalham por toda a sociedade, seja na repartição onde trabalha o marido de Anabela, seja na escola onde lecciona Raquel, seja no mundo empresarial do marido desta. Em todos os espaços sociais que se visita na leitura de Cidade Infecta sentimos sempre o mesmo exsudar da matéria informe e pegajosa da desolação. Na verdade, uma pandemia e, como acontece em todas as pandemias, acaba-se por voltar à normalidade, isto é, conviver com o vírus, evitando, sempre que possível, o pior. E o pior está simbolizado na morte inexplicável de uma mulher que, desde o início e como uma ameaça, acompanha o destino das protagonistas. Essa aprendizagem do convívio com o desolador e o pior é o máximo a que se pode aspirar. Dito de outra maneira, há que saber ser infeliz e continuar viva.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Thomas Bernhard, Perturbação


Publicado em 1967, Perturbação (Verstörung) é o segundo romance do escritor austríaco Thomas Bernhard. O autor faz parte de uma linhagem notável de escritores austríacos, onde se inscrevem Robert Musil e Hermann Broch. Como nestes autores, também em Bernhard encontramos uma literatura que mais do que contar histórias pretende desvelar a realidade não apenas do mundo humano, mas do próprio mundo que se manifesta através da humanidade. Se o leitor pretender uma boa história, com uma intriga bem urdida e um desenlace de cortar a respiração, então não vale a pena abrir o romance. Se, todavia, achar que a arte, no caso a literatura, é um lugar de aprendizagem e de reflexão sobre aquilo que é essencial e um questionamento sobre o sentido da existência, então terá no escritor austríaco uma proverbial companhia.

O livro parte de uma ideia simples. Um médico da zona dos Alpes austríacos perante a incomunicabilidade crescente entre ele os dois filhos, agravada com a morte da mulher, decide convidar o mais velho, estudante de engenharia de minas e com a pretensão de se tornar cientista, a acompanhá-lo num dia de visitas aos pacientes que tem nas diversas aldeias. A ideia seria lançar uma ponte para estabelecimento de comunicação. O tempo romanesco corresponde assim apenas a um dia, a uma viagem de um dia pelo mundo dos enfermos tratados pelo pai. Se olharmos para a ordem do mundo, faz parte dela a doença. Esta, na verdade, não representa uma perturbação, mas apenas um elemento negativo em tensão com a saúde, tal como a morte se encontra em tensão com a vida, fazendo ambas parte de um mundo organizado e não caótico. O que o jovem candidato a cientista, um representante da racionalidade, e narrador, vai descobrir é uma realidade profundamente perturbada, muito além – ou aquém – da doença. O mundo rural da montanha que descreve Bernhard está longe da imagem idealizada da ruralidade que ainda hoje transportamos. Pelo contrário, é um mundo brutal, violento e profundamente perverso, onde o assassinato, a violação de crianças e o suicídio parecem ser correntes. Se se pensar que o mundo rural é o lugar onde persistem as sagradas normas da moralidade, as descrições de Bernhard são um terrível soco no estômago. Todo aquele mundo sofre, para além da doença física, uma doença moral resultante de uma incomunicabilidade entre os seres humanos, reflexo de uma perturbação radical da ordem do mundo.

Este mundo é descrito na primeira parte do romance, através dos diversos pacientes do pai do narrador. Esta primeira parte da viagem do jovem é uma verdadeira peregrinatio ad loca infecta, uma iniciação à vida tal como ela é. A segunda e última parte, mais de metade do romance, narra a visita ao príncipe Saurau, um grande latifundiário, cuja sombra se estende por toda aquela zona montanhosa. Aquilo que o narrador descreve é o longuíssimo monólogo do príncipe que se estende por cerca de 140 páginas. Tudo aquilo que inquieta, desassossega e perturba o príncipe é objecto do seu monólogo. As relações familiares, as relações com o mundo envolvente, o futuro da sua propriedade. Tudo é passado em revista, tecendo o príncipe comentários contraditórios, produzindo afirmações que se anulam entre si, deduzindo conclusões sustentadas por premissas inverosímeis. A questão central, porém, é a relação com o filho, e herdeiro único, e por causa disso a profunda preocupação com o futuro de Hochgobernitz, a propriedade da família, com os seus interesses económicos diversificados e o grande número de pessoas dependentes dos Saurau.

Se a incomunicabilidade entre o médico e o filho/narrador é grande, este assiste à exposição de uma incomunicabilidade mais radical. Um dos momentos mais extraordinários do monólogo do príncipe é quando este, numa espécie de prolepse profética, descreve minuciosamente a destruição de Hochgobernitz pelo filho, após a sua morte. É uma destruição que é apresentada como se fosse uma luta de alguém que se afastou para Londres e se pretende defender de tudo o que há de perturbante naqueles lugares, na sua própria família, nas gentes que dependem ou vivem na área de influência dos Saurau. O facto de o filho do médico assistir ao discurso do príncipe é o ritual final da cerimónia iniciática ao mundo da vida como desrazão, iniciada na primeira parte, em que foi tomando conhecimento da perturbação do mundo rural. O jovem candidato a cientista toma conhecimento de uma outra realidade onde a razão com os seus imperativos técnicos e morais não funciona.

Existem algumas leituras do romance que defendem que a principal personagem é a morte. É verdade que em diversas passagens a morte se encontra presente, seja num homicídio, seja num cancro em estado avançado, seja no suicídio. Todavia, como se disse acima, a morte faz parte de uma ordem e de um cosmos, não representando aí qualquer perturbação. Não será perda de tempo dar atenção à epígrafe escolhida, por Bernhard, para abrir o romance. Trata-se do célebre fragmento 206 de Pascal: Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie (O silêncio eterno destes espaços infinitos assusta-me). Ora aquilo que, no início dos tempos modernos, descoberto a partir dos trabalhos de Galileu, se apresentou com algo assustador, não deixou de crescer com o passar dos séculos até se tornar uma grande perturbação, uma incapacidade de encontrar uma orientação existencial e, como descobre na sua delirante eloquência o príncipe, para estruturar um futuro. Esta perturbação nasceu no momento em que o homem olhou o céu e nele apenas viu um silêncio eterno de espaços vazios.

sábado, 22 de agosto de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Estío

Depois da Sonata de Outono (1902), o primeiro romance da tetralogia conhecida como Sonatas, Valle-Inclán publica, em 1903, o segundo volume das memórias amorosas do Marquês de Bradomín, com o título, em castelhano, Sonata de Estío. A ordem de publicação dos romances não obedece à ordem cronológica das aventuras galantes deste marquês, um dândi galante, feio, católico e sentimental, tal como ele se define. A tetralogia inicia-se com as aventuras da idade outonal, onde a maturidade se prepara para dar lugar à velhice, seguem-se as aventuras estivais, as de uma primeira maturidade. O terceiro volume, Sonata de Primavera, retrocede aos tempos de juventude do inveterado conquistador e a série conclui-se com a Sonata de Invierno. O Marquês de Bradomín é uma reinterpretação do mito, muito espanhol, de D. Juan. No entanto, esta reinterpretação é profundamente irónica, como se torna patente em Sonata de Estío.

O amável e amoroso marquês decide fazer uma viagem para o México. Um triplo objectivo o guiava. Conhecer os bens de família que por lá herdou, reviver a conquista espanhola daqueles territórios e esquecer uma certa Lilí que o traíra. Estamos assim, ao entrar no romance, perante um D. Juan seduzido e abandonado, que sente necessidade de mudar de lugar para se recompor da falência amorosa. A ironia de Valle-Inclán acentua-se na tensão entre o D. Juan conquistado e abandonado e a necessidade compensatória de reviver a conquista espanhola de novos mundos. Uma das linhas de leitura do romance é então o jogo de compensações que enquadravam a aventura galante deste dândi quixotesco. Tudo isto não deixa de lançar uma sombra sobre a época áurea castelhana. Todo aquele processo de submissão dos povos ameríndios teria sido, também ele, a compensação de que frustração espanhola?

Esta linha de subtil reflexão histórica emerge também numa cena rocambolesca em que o Marquês de Bradomín enfrenta corajosamente um grupo de bandidos para defender a vida de Juan Guzman, um homem com aspecto corajoso e nobre, mas na verdade um bandoleiro como aqueles que o atacavam. Ao tomar conhecimento do tipo de homem que tinha salvo, lamentou-se da decadência dos tempos. Na época da conquista colonial, homens como aquele teriam sido elevados à condição de nobres pelos serviços prestados à coroa, mas hoje em dia, numa antiga colónia agora independente, não passam de criminosos. Aquilo que nos tempos gloriosos da conquista seria motivo de glória é, agora, motivo de castigo. Não é a crítica histórica ou política que dá o conteúdo ao romance. Aparece incidentalmente, sempre envolta na ironia, como acontece quando Bradomín se depara com o mordomo do palácio que herdara no México, um velho soldado que conspira para reconquistar o México e a partir daí colocar na coroa espanhola Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias, naquilo que ficou conhecido como o movimento carlista, de natureza tradicionalista, antiliberal e absolutista, que esteve na origem de três guerras civis em Espanha, durante o século XIX.

A obra gira em torno da nova paixão do marquês, agora por uma crioula, uma mulher de beleza espantosa, a Niña Chole e que, de alguma maneira, lhe recordava a traidora Lilí, um novo jogo compensatório. Esta mulher, porém, é filha e amante de um terrível militar mexicano, o general Bermúdez, que, se descobre que ela se envolve com o marquês, não hesitará em matar ambos. Como já acontecera, de certa forma, no primeiro romance da tetralogia, a Sonata de Otoño, também aqui emergem motivos que se integram numa área que, na altura da publicação dos romances, estava a consolidar-se, a psicanálise, podendo o incesto entre o general e a filha ser lido como uma refiguração do complexo de Electra, para usar uma designação de Carl-Gustav Jung. O conjunto de peripécias amorosas entre Bradomín e Niña Chole é todo ele atravessado por situações equívocas, nas quais a conduta do nobre galego parece desacordar-se com a imagem que dá de si mesmo. Na verdade, não apenas o marquês não passa de um D. Juan pífio, como a coragem e ousadia são dúbias. Valle-Inclán é notável no uso de processos que, numa primeira leitura, parecem dizer uma coisa, mas que, na verdade, não deixam de sugerir o contrário do que afirmam.

Notável é a capacidade do escritor galego em recriar ambientes. As suas descrições do Novo Mundo são extraordinárias, dando-lhes uma vida exuberante, salientando o que naquelas paragens é excessivo e perigoso, mas ao mesmo tempo extremamente atractivo para quem nasceu na Europa, num mundo muito mais contido e cinzento. A descrição da exuberância da paisagem mexicana e dos ambientes sociais é ainda perpassada por uma grande sensualidade, a qual, claro, não emana do marquês, mas da bela crioula. Se se meditar no título da novela, o Estio encontra-se mais na própria paisagem e ambiências do que na idade do marquês. Tudo isto torna um pequeno romance de aparência simples – estruturado em torno dos delíquios de Eros – numa obra complexa, que permite diversas e contraditórias linhas de leitura, tal como sucede com a primeira Sonata.