quarta-feira, 17 de junho de 2020

Javier Marías, Os Enamoramentos


O romance de Javier Marías é, ante de mais, uma reflexão prática sobre o que é a literatura, em especial o género romanesco. Há no romance, como há muito foi salientado por Milan Kundera, uma contraposição com a filosofia. Se em Descartes, no início da era moderna, se procura a certeza fundada no que é claro e distinto, se múltiplas tradições filosóficas até aos nossos dias se instalaram nesse registo de busca de uma verdade, o romance, pelo contrário, vive da incerteza, da obscuridade e da indiferenciação. É este registo que deliberadamente Javier Marías explora em Os Enamoramentos, um romance de 2011. A primeira frase da obra torna de imediato claro esse registo. A narradora, Maria Dolz, começa a narrativa dizendo A última vez que vi Miguel Desvern ou Daverne foi também a última vez que a mulher, Luísa, o viu. A imprecisão do nome de Miguel é a chave para o leitor entrar no texto.

Aparentemente, a trama gira em torno do assassinato de Desvern ou Davern, um esfaqueamento perpetrado por um sem-abrigo, meio louco, e tomado pela polícia como um acaso, um azar da vítima estar naquele lugar àquela hora. É quando vê a notícia no jornal que Maria descobre o nome dele, embora o conhecesse e à mulher há muito, espiando-os da mesa do café onde todos iam. O estado de enamoramento que o casal apresentava tinha chamado a sua atenção e dedicara-se durante todo esse tempo a um discreto embora persistente e fantasioso voyeurismo. Este enamoramento modelar, que funciona para Maria Dolz como um arquétipo, é construído por ela não por uma investigação objectiva, não por quaisquer provas consistentes, mas pela apreensão visual de um comportamento no espaço público, embora circunscrito, de um café e das adições fantasiosas que uma imaginação produz em resposta a um desejo erótico que a realidade teima em não satisfazer.

O desejo de se aproximar de Luísa, essa personagem sombra que, como tal, assombra todo o romance, fá-la encontrar Javier Díaz-Varela, o melhor amigo do assassinado e agora protector da viúva. Este, enamorado de Luísa, espera a hora em que ela feche a porta por onde entra a memória fantasmática do marido e a abra para o seu desejo. É neste encontro que nasce um novo enamoramento, o de Maria por Javier, embora sem esperança de passar para além de uma aventura com destino marcado. Esta aventura permite, porém, à narradora perceber que o assassinato acidental Miguel talvez não o tivesse sido, mas decorresse antes de um plano cuidadosamente meditado por Javier. O pior, porém, é que mesmo sendo esse o caso, ela não sabe as verdadeiras razões que o terão movido, se um pacto com o amigo, se o desejo pela mulher deste.

O que torna o romance de Marías particularmente interessante é o facto dele pegar em dois subgéneros romanescos – um trivial romance de amor e um vulgar thriller policial – e conduzir uma meditação sobre a natureza da arte do romance e da sua relação com a verdade e a certeza do que se passa nas vidas humanas. Se nas ciências da natureza ainda será possível aspirar a um conhecimento objectivo, embora revisível, da realidade, nos assuntos humanos, a única coisa que existe são subjectividades que interpretam os acontecimentos a partir do ponto de vista onde se encontram, nunca sendo claras nem as motivações que movem os actores nem, tão pouco, os actos que estes executam. Pode-se ler este romance, sem o violentar, como um exercício de desconstrução das narrativas jurídicas, do valor dos procedimentos que articulam o processo jurídico, da probidade das provas e da pretensão de condenar alguém baseado na verdade dos factos.

O caso de nunca se descobrir a verdade sobre a morte daquele cujo nome era incerto não se deverá, deste modo, à incapacidade de investigação ou mesmo a um truque literário para deixar ao leitor a possibilidade de continuar a obra, completando-a e esclarecendo na sua imaginação recriadora o que se teria passado, mas à própria inexistência de uma verdade. Aliás, isso é reforçado pelo próprio Javier que, na sua ligação fortuita com Maria, fala da novela de Balzac, O Coronel Chabert, um herói das guerras napoleónicas que, como D. João de Portugal, no Frei Luís de Sousa, é dado como morto. Esse equívoco permitiu à suposta viúva refazer a vida e quando ele volta, descobre que está a mais, que não devia ter voltado do lugar da morte. Esta obsessão pela obra de Balzac torna ainda mais obscuro o enredo, porque o leitor não deixará de se interrogar se na verdade o marido de Luísa terá efectivamente morrido. É apenas uma leve suspeita, mas no intrincado das relações humanas não há estatuto epistémico mais elevado que o da suspeita.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini


O Jardim dos Finzi-Contini, o mais importante romance do italiano Giorgio Bassani, originário da comunidade judaica de Ferrara, é uma dupla incursão no tempo. Como uma rememoração tardia de algo que se passou há duas ou três décadas é um confronto com o calendário, com uma duração que se estrutura em passado, presente e futuro, o tempo cronológico, o qual se convencionou que ordenaria a vida dos homens, nem que fosse para lhe determinar a duração e assinalar o tempo de trabalho, de festa e de ócio. No entanto, essa rememoração, esse mergulho no passado, tem por objecto uma confrontação com uma outra forma de compreender o tempo a que os gregos deram o nome de Kairós, o tempo oportuno, esse momento em que se dá uma abertura na realidade para que algo aconteça.

A rememoração do passado a que o narrador se entrega dá-se no final dos anos cinquenta do século passado, enquanto os acontecimentos objecto da anamnese decorrem antes do início da segunda guerra mundial e passam-se no interior da comunidade judaica de Ferrara, que até à chegada das leis raciais promulgadas pelo governo fascista de Benito Mussolini se encontrava completamente integrada, de tal maneira que muitos judeus, como o próprio pai do narrador, estavam inscritos no partido fascista. São as leis raciais, inspiradas pela paranóia nazi, que alteram essa integração das boas famílias judias nos círculos mais distintos de Ferrara, que confinaram alguns jovens judeus, mas não só, no jardim do palácio dos Finzi-Contini, também eles judeus, mas que mantiveram sempre uma distância aristocrática com a comunidade judaica e com as autoridades fascistas.

O romance abre praticamente com a revelação, durante uma visita inopinada em 1957 ao mausoléu dos Finzi-Contini, do destino trágico da família. Alberto, amigo do narrador, morrera cedo com um linfoma, ainda antes da deportação em massa dos judeus para campos de concentração na Alemanha, para onde foram enviados o pai, a mãe e a irmã, Micol. Nenhum sobreviveu. O romance contudo não se centra na crescente ameaça que paira sobre a comunidade judaica, embora esse ameaça esteja omnipresente, como se fora o cenário onde as relações do narrador, cujo nome nunca se chega a saber, com a família Finzi-Contini, em especial com a belíssima Micol, se desenrolam.

A narrativa rememoradora das relações entre o narrador e Micol centra-se, embora de forma sub-reptícia, sobre o Kairós, sobre o momento oportuno. Qual o instante em que o coração de uma mulher se abre para um homem? Falhar esse momento, não entrar pela abertura na hora em que ela se dá, tem como consequência falhar o amor. O narrador ao contar os diversos episódios das relações entre ambos, relações que começam ainda em crianças e que se prolongam até  à idade de jovens universitários, interroga-se se num certo momento não deveria ter beijado Micol, se não teria sido essa a hora em que o coração dela seria a porta que ele atravessaria em direcção ao seu corpo. Perdida a oportunidade, o que se descobre é que esse corpo se torna numa muralha inexpugnável.

Rememorar seja o que for significa coloca-lo à distância, instituir um afastamento, o que no caso das relações entre o narrador e Micol é o selar de um triplo afastamento. O primeiro trazido pela eventual perda do momento oportuno, fruto de um desacerto na relação com o Kairós, o segundo trazido pela história e consumado com a morte de Micol num campo de concentração e o último, o que certifica a realidade definitiva do afastamento através do deambular da memória pelos campos do passado, uma memória que é detonada pelo monumental, embora horrível, jazigo quase vazio dos Finzi-Contini. O facto do corpo de Micol morta não se encontrar ali acaba, porém, por tornar quase irreal a sua existência, bem como tudo aquilo que o narrador viveu nas sua relação com a família dos Finzi-Contini. A rememoração tem um efeito terapêutico, libertando aquele que a ela recorre dos miasmas que lhe poluem a consciência, entregando os mortos à sua morte e limpando o futuro dos vivos das sombras que o passado nele projecta.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Carlos de Oliveira, Casa na Duna


Publicado em 1943, o romance Casa na Duna terá tido a sua versão final na edição de 1980, pouco antes da morte do autor, Carlos Oliveira. Muitas das abordagens da obra do romancista nascido no Brasil salientam a sua fidelidade ao neo-realismo e a preocupação com temáticas de índole social e política. Isso não é falso neste primeiro romance, pois o retrato social da Gândara, o lugar geográfico no qual é situada a aldeia de Corrocorvo, onde se desenrola a narrativa, está muito presente e a política aflora aqui e ali, transportada por um médico, uma personagem secundária na trama narrativa. Não deixa de ser significativa esta natureza secundária da presença da política na obra, pois parece ser uma clara opção por motivos estéticos e literários e não tanto por questões políticas, como o medo da censura. Reler o livro quase oitenta anos após a sua publicação, desligado já do contexto social e político em que ele apareceu, e cuja sombra se projectou por décadas, dá ao leitor oportunidade para olhar para outros aspectos de natureza metafísica e não tanto social ou política, porventura mais estruturantes e fundamentais na economia da obra.

A fragilidade do mundo humano e o efeito corrosivo do tempo emergem como as temáticas centrais. Essa fragilidade do mundo dos homens é dada de imediato, como se fosse uma síntese das preocupações do romance, no título. Construir uma casa na duna coloca-nos de imediato perante uma construção na areia. O fundamento onde o mundo se constrói é movediço, vacilante, infirme. Tudo o que nele se constrói cairá, será dissolvido pelo tempo, que trará novas possibilidades e outras areias, onde outras casas se construirão. A esta fragilidade ontológica do mundo corresponde uma outra, a dos homens, tanto enquanto indivíduos presos na sua singularidade como enquanto linhagens. O destino de Mariano Paulo no fim da vida ou o do filho Hilário, desde o início marcado pela morte da mãe na altura do seu nascimento, mostram a fragilidade dos indivíduos, por fortes que tenham sido, como é o caso do pai. No entanto, se há coisa que o romance tematiza claramente é o da ilusão da linhagem. Desde o fundador da riqueza do clã dos Paulos, Silvério Coxo, até ao desabamento em Hilário, o que se torna patente é que as virtudes – por pouco virtuosas que elas sejam – que presidem às hierarquias humanas não são transmissíveis. Elas emergem da noite obscura do tempo para, passadas algumas gerações, desaparecerem nessa mesma obscuridade.

Se o título da obra é um indicador não desprezível da sua orientação, a morte da mãe de Hilário e mulher de Mariano tem uma força simbólica e premonitória que ultrapassa o puro facto da morte. Ela é a grande personagem ausente e, ao mesmo tempo, a anunciação de um fim. Vinda de fora do clã dos Paulos deveria ter por função reforçar e renovar a linhagem. A sua morte, porém, emerge como uma sombra sobre a casa e um prenúncio do destino. O herdeiro nunca soube como lidar com aquela ausência. E quanto maior era a sua ausência, maior era a incapacidade de Hilário se relacionar com os outros e a realidade. Ela é, dessa forma, a personagem mais forte de todo o romance, não por alguma peculiaridade de carácter que se tenha revelado ainda em vida, mas por ser pura ausência, uma pólo atractor da realidade, um buraco negro onde desaparece a luz.

Outra personagem central na trama narrativa é o próprio tempo. Durante parte considerável da narrativa ele está oculto, parece não passar. As relações sociais mantêm-se imutáveis, Mariano Paulo resiste à mecanização da propriedade, à intromissão do tempo nos negócios humanos. Depois, a abertura de uma estrada, a comunicação da aldeia com o mundo envolvente, revela o tempo, a sua passagem, e tudo se torna anacrónico, perante o que vem de fora. Esta metáfora é interpretada muitas vezes como uma referência indirecta à situação política do país. Não será falsa essa interpretação, mas falhará o essencial. O que se revela ali é a condição humana, a situação em que todos vivemos no tempo sem dele ter consciência para, por uma súbita revelação, o descobrirmos e descobrirmos os seus efeitos sobre nós. A duna onde se instalou a casa mais do que de areia era feita de tempo. Durante muito tempo persistiu a ilusão de que era um chão sólido, pois ninguém percebia a passagem do tempo. Quando um acontecimento banal como a abertura de uma estrada o revela, torna-se manifesto que cairá toda a casa construída no tempo, na areia da temporalidade, e é isso que Casa na Duna deixa ver.