segunda-feira, 22 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Julien Gracq, A Costa das Sirtes

 

Publicado em 1951, A Costa das Sirtes (Le Rivages des Syrtes) é o mais conhecido romance do francês Julien Gracq (pseudónimo literário de Louis Poirier). Foi traduzido para português por Pedro Tamen e publicado pela Vega. A primeira edição portuguesa, sem data, está esgotada, mas ainda será possível encontrar a reedição de 1988. O romance valeu ao autor o prémio Goncourt, aliás recusado. O romance escrito numa linguagem que o aproxima da prosa poética é resultado de uma trama onde o destino do indivíduo se entretece com o da comunidade a que pertence. Não estamos perante um herói burguês voltado para a acção triunfal, mas de um aristocrata que encarna o espírito de uma comunidade, cujo desejo inquietante se manifesta no coração de Aldo, o herói e narrador. Num mundo imaginário, dois países – Orsenna, a cidade-estado aristocrática a que pertence Aldo, e Farghestan, a potência bárbara e desconhecido, separados pelo mar das Sirtes – entretêm uma inimizade ancestral, estando em guerra há séculos, mas desde há trezentos anos que não há uma batalha. A guerra parece sempre o destino que espera Orsenna, mas um destino que não se consuma.

Deste destino que não se consuma nasce uma expectativa na própria comunidade. Há todo um comportamento ritual para evitar a deflagração de um conflito com o inimigo de sempre, com os bárbaros do outro lado do mar. A existência de um estado de guerra adormecido, mas continuamente presente, torna-se uma estranha inquietação. No segredo dos corações, há um desejo de afrontar e tornar presente esse destino sempre anunciado e sempre adiado. É neste ambiente que Aldo, cansado do tédio da sua existência na capital, pede para ser incorporado no serviço militar. É enviado como observador, um cargo de acordo com a sua posição social de aristocrata, para as Sirtes, para o Almirantado, onde estão as tropas de Orsenna que têm por missão vigiar o mar e evitar que alguém ultrapasse a linha imaginária que sustenta a paz reinante. A ultrapassagem dessa linha porá fim ao torpor da história. Tanto o edifício do Almirantado como a região vivem numa grande degradação, como se aquela região nos confins de Orsenna tivesse sido abandonada pelo centro, esquecida pelos poderes públicos. É nesse ambiente de desolação que Aldo sente uma atracção pelos mapas da região, o que inquieta o comando do forte, que vê nesse interesse uma ameaça ao status quo.

O tédio de Aldo condu-lo à necessidade de se aventurar para além da linha imaginária que pode conduzir à guerra. Contudo, não é apenas o seu estado de espírito que o move. O encontro com a jovem princesa Vanessa Aldobrandi, cuja família tem um palácio em Maremma, uma espécie de Veneza das Sirtes, uma Veneza degradada, tem um papel fundamental na conduta de Aldo. Ela é uma Eva que tenta aquele Adão, já de si desejoso de ser tentado. A família de Vanessa é vista como tendo, em tempos, estado conluiada com os inimigos de Orsenna, talvez seduzida pela natureza estranha do inimigo. Vanessa traz no sangue essa propensão para o que será uma traição. Também ela não suporta a expectativa, a paz que nunca é uma verdadeira paz alicerçada numa amizade entre ambos os países, mas uma ausência da guerra, que a qualquer momento poderá eclodir. A sedução de Aldo por Vanessa é um elemento central da narrativa de Gracq, embora não seja claro que sem essa sedução Aldo tivesse evitado a aventura que o lea à transgressão da linha imaginária.

É plausível pensar que aquilo que move os dois jovens é diferente. Vanessa age por fidelidade a uma tradição de traição, de aliança, ainda que meramente subjectiva, com o inimigo. Aldo encontra na aventura que desencadeará a guerra que destruirá Orsenna uma forma de dar sentido à sua existência, de o raptar do tédio de uma vida perdida entre prazeres e sem objectivos que não sejam estar vivo e manter a situação tal como está há séculos. A transgressão é uma forma de combater o tédio e dar um sentido à existência do jovem aristocrata. Contudo, a transgressão de Aldo ultrapassa-o, pois ela responde a um silencioso e inquietante desejo de transgressão dos habitantes de Orsenna. A transgressão resulta da incapacidade de viver continuamente numa tensão entre o que existe e aquilo que ameaça vir a existir, mas que adia constantemente a hora da sua manifestação. Na verdade, não é o tédio de Aldo que arrasta Orsenna para a guerra, mas o desejo secreto de guerra existente no coração de Orsenna que se manifesta no tédio e na transgressão de Aldo. Há um desejo de suicídio colectivo. Já ninguém suporta a expectativa, pois o desejo de enfrentar aquilo que está destinado a acontecer tomou conta dos espíritos. O acontecimento apocalíptico que se deseja secretamente é a outra face da revelação do próprio destino da comunidade e dos indivíduos que a compõem.

Julien Gracq refere que o seu objectivo em A Costa das Sirtes não foi contar uma história intemporal, mas destilar aquilo a que chama o “espírito da história”. A estratégia usada para esse destilar do “espírito da história” vive numa tensão tempo e intemporalidade. A linguagem descritiva da paisagem das Sirtes, acentuadamente poética, dá a ver um mundo marcado pelo tempo, um mundo onde as ruínas parecem omnipresentes, mas fá-lo de uma forma tal que esse mundo parece ter sido elevado à condição da imutabilidade. A imutabilidade, a ausência de mudança, é um sintoma da intemporalidade. É nessa aparente intemporalidade que se manifesta o “espírito da história”. A história, sublinha-o Gracq, possui um feitiço oculto, o qual possui a virtude, isto é, o poder de intoxicar. É esta intoxicação que toca os habitantes de Orsenna e anima Aldo na luta contra o tédio. É ela que precipita o inevitável e põe o motor da história a trabalhar. E sempre que se ouve o motor da história rodopiar há uma consumação do destino. Por norma, essa consumação é um desastre, o desastre que de alguma forma se esperava e, no fundo, se desejava.

O romance, publicado como se referiu em 1951, pode ser uma densa meditação a posteriori sobre o destino de uma Europa marcada por duas grandes guerras, É provável que, na época em que surgiu nas livrarias, assim fosse lido. O mais curioso, todavia, é que a sua leitura nesta hora revela uma outra faceta da obra. O que capta o espírito do leitor não é tanto a meditação sobre o passado da Europa, mas o retrato do tempo presente, como se nós, os europeus, fôssemos os habitantes de Orsenna e perante nós se erguesse a imagem de um destino que se teme e ao mesmo tempo se deseja. Também nós temos o nosso Farghestan, com o qual estamos em guerra, apesar da paz aparente em que vivemos. Esperamos apenas o Aldo que encarne o nosso desejo de destino e precipite aquilo que, no fundo, todos sentem como inevitável. A Costa das Sirtes, apesar de escrita há quase 75 anos, parece-nos dirigida. Resta saber se o romance de Gracq nos é dirigido como um aviso ou como uma profecia.