tag:blogger.com,1999:blog-87749332320840836142024-02-19T01:31:10.018+00:00Metáforas e NarrativasArquivo de leituras publicadas no blogue Kyrie Eleison sobre poesia e narrativa.Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.comBlogger112125tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-37459919304990817112024-01-18T15:17:00.003+00:002024-01-18T15:17:52.534+00:00Julien Gracq, A Costa das Sirtes<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi0WuzNLKzGLtelf-Jfu2ugTj3b4ijVzeOfNs1WnnmREkbYTC2EFQ3rmw1v4dueHUl5JpP26UrzLxb8hENXEUBMEBzd6EyIwxjsIYwLOoSCy27Yq7CvLxGBjDIhiSrpVkBVWKqSW9GvL6FjsaE0KCA7gLq31qWGOs5CLixfMLQ65h-qBr7ZsT5r9a2amBo" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-size: large;"><img alt="" data-original-height="799" data-original-width="493" height="506" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi0WuzNLKzGLtelf-Jfu2ugTj3b4ijVzeOfNs1WnnmREkbYTC2EFQ3rmw1v4dueHUl5JpP26UrzLxb8hENXEUBMEBzd6EyIwxjsIYwLOoSCy27Yq7CvLxGBjDIhiSrpVkBVWKqSW9GvL6FjsaE0KCA7gLq31qWGOs5CLixfMLQ65h-qBr7ZsT5r9a2amBo=w313-h506" width="313" /></span></a><br /></p><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Publicado em
1951, <i>A Costa das Sirtes</i> (<i>Le Rivages des Syrtes</i>) é o mais
conhecido romance do francês Julien Gracq (pseudónimo literário de Louis
Poirier). Foi traduzido para português por Pedro Tamen e publicado pela Vega. A
primeira edição portuguesa, sem data, está esgotada, mas ainda será possível
encontrar a reedição de 1988. O romance valeu ao autor o prémio Goncourt, aliás
recusado. O romance escrito numa linguagem que o aproxima da prosa poética é
resultado de uma trama onde o destino do indivíduo se entretece com o da
comunidade a que pertence. Não estamos perante um herói burguês voltado para a
acção triunfal, mas de um aristocrata que encarna o espírito de uma comunidade,
cujo desejo inquietante se manifesta no coração de Aldo, o herói e narrador.
Num mundo imaginário, dois países – Orsenna, a cidade-estado aristocrática a
que pertence Aldo, e Farghestan, a potência bárbara e desconhecido, separados
pelo mar das Sirtes – entretêm uma inimizade ancestral, estando em guerra há
séculos, mas desde há trezentos anos que não há uma batalha. A guerra parece
sempre o destino que espera Orsenna, mas um destino que não se consuma.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Deste destino
que não se consuma nasce uma expectativa na própria comunidade. Há todo um
comportamento ritual para evitar a deflagração de um conflito com o inimigo de
sempre, com os bárbaros do outro lado do mar. A existência de um estado de
guerra adormecido, mas continuamente presente, torna-se uma estranha inquietação.
No segredo dos corações, há um desejo de afrontar e tornar presente esse
destino sempre anunciado e sempre adiado. É neste ambiente que Aldo, cansado do
tédio da sua existência na capital, pede para ser incorporado no serviço
militar. É enviado como observador, um cargo de acordo com a sua posição social
de aristocrata, para as Sirtes, para o Almirantado, onde estão as tropas de
Orsenna que têm por missão vigiar o mar e evitar que alguém ultrapasse a linha
imaginária que sustenta a paz reinante. A ultrapassagem dessa linha porá fim ao
torpor da história. Tanto o edifício do Almirantado como a região vivem numa
grande degradação, como se aquela região nos confins de Orsenna tivesse sido
abandonada pelo centro, esquecida pelos poderes públicos. É nesse ambiente de
desolação que Aldo sente uma atracção pelos mapas da região, o que inquieta o
comando do forte, que vê nesse interesse uma ameaça ao <i>status quo</i>.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O tédio de Aldo
condu-lo à necessidade de se aventurar para além da linha imaginária que pode
conduzir à guerra. Contudo, não é apenas o seu estado de espírito que o move. O
encontro com a jovem princesa Vanessa Aldobrandi, cuja família tem um palácio
em Maremma, uma espécie de Veneza das Sirtes, uma Veneza degradada, tem um
papel fundamental na conduta de Aldo. Ela é uma Eva que tenta aquele Adão, já
de si desejoso de ser tentado. A família de Vanessa é vista como tendo, em
tempos, estado conluiada com os inimigos de Orsenna, talvez seduzida pela
natureza estranha do inimigo. Vanessa traz no sangue essa propensão para o que
será uma traição. Também ela não suporta a expectativa, a paz que nunca é uma
verdadeira paz alicerçada numa amizade entre ambos os países, mas uma ausência
da guerra, que a qualquer momento poderá eclodir. A sedução de Aldo por Vanessa
é um elemento central da narrativa de Gracq, embora não seja claro que sem essa
sedução Aldo tivesse evitado a aventura que o lea à transgressão da linha
imaginária.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">É plausível
pensar que aquilo que move os dois jovens é diferente. Vanessa age por
fidelidade a uma tradição de traição, de aliança, ainda que meramente subjectiva,
com o inimigo. Aldo encontra na aventura que desencadeará a guerra que
destruirá Orsenna uma forma de dar sentido à sua existência, de o raptar do
tédio de uma vida perdida entre prazeres e sem objectivos que não sejam estar
vivo e manter a situação tal como está há séculos. A transgressão é uma forma
de combater o tédio e dar um sentido à existência do jovem aristocrata.
Contudo, a transgressão de Aldo ultrapassa-o, pois ela responde a um silencioso
e inquietante desejo de transgressão dos habitantes de Orsenna. A transgressão
resulta da incapacidade de viver continuamente numa tensão entre o que existe e
aquilo que ameaça vir a existir, mas que adia constantemente a hora da sua
manifestação. Na verdade, não é o tédio de Aldo que arrasta Orsenna para a
guerra, mas o desejo secreto de guerra existente no coração de Orsenna que se
manifesta no tédio e na transgressão de Aldo. Há um desejo de suicídio
colectivo. Já ninguém suporta a expectativa, pois o desejo de enfrentar aquilo
que está destinado a acontecer tomou conta dos espíritos. O acontecimento
apocalíptico que se deseja secretamente é a outra face da revelação do próprio
destino da comunidade e dos indivíduos que a compõem.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Julien Gracq
refere que o seu objectivo em <i>A Costa das Sirtes</i> não foi contar uma
história intemporal, mas destilar aquilo a que chama o “espírito da história”. A
estratégia usada para esse destilar do “espírito da história” vive numa tensão
tempo e intemporalidade. A linguagem descritiva da paisagem das Sirtes,
acentuadamente poética, dá a ver um mundo marcado pelo tempo, um mundo onde as
ruínas parecem omnipresentes, mas fá-lo de uma forma tal que esse mundo parece
ter sido elevado à condição da imutabilidade. A imutabilidade, a ausência de
mudança, é um sintoma da intemporalidade. É nessa aparente intemporalidade que
se manifesta o “espírito da história”. A história, sublinha-o Gracq, possui um
feitiço oculto, o qual possui a virtude, isto é, o poder de intoxicar. É esta
intoxicação que toca os habitantes de Orsenna e anima Aldo na luta contra o
tédio. É ela que precipita o inevitável e põe o motor da história a trabalhar.
E sempre que se ouve o motor da história rodopiar há uma consumação do destino.
Por norma, essa consumação é um desastre, o desastre que de alguma forma se
esperava e, no fundo, se desejava.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O romance,
publicado como se referiu em 1951, pode ser uma densa meditação <i>a posteriori
</i>sobre o destino de uma Europa marcada por duas grandes guerras, É provável
que, na época em que surgiu nas livrarias, assim fosse lido. O mais curioso,
todavia, é que a sua leitura nesta hora revela uma outra faceta da obra. O que
capta o espírito do leitor não é tanto a meditação sobre o passado da Europa,
mas o retrato do tempo presente, como se nós, os europeus, fôssemos os habitantes
de Orsenna e perante nós se erguesse a imagem de um destino que se teme e ao
mesmo tempo se deseja. Também nós temos o nosso Farghestan, com o qual estamos
em guerra, apesar da paz aparente em que vivemos. Esperamos apenas o Aldo que
encarne o nosso desejo de destino e precipite aquilo que, no fundo, todos
sentem como inevitável. <i>A Costa das Sirtes</i>, apesar de escrita há quase
75 anos, parece-nos dirigida. Resta saber se o romance de Gracq nos é dirigido
como um aviso ou como uma profecia.</span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-88590159752148993112023-12-30T22:36:00.001+00:002023-12-30T22:36:17.013+00:00Max Frisch, Não Sou Stiller<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEglG6AOWeQkN4-MCig_PZA_Qg-F1yzRybJFFfoNrtiUN-XsroU-nLEmE1p-M9fe-zqUVsZZscz2Frg4sYcmR1uMgWKOxf3a92_vN3x0MATGxFJI2k6MWsX2Jkq51fih5bijKez8wZQ13lbZrkJqXlvhnNasOjIC9cMTDjtk2bQx8WUXMYKCMaOITZj2yq0" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="858" data-original-width="514" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEglG6AOWeQkN4-MCig_PZA_Qg-F1yzRybJFFfoNrtiUN-XsroU-nLEmE1p-M9fe-zqUVsZZscz2Frg4sYcmR1uMgWKOxf3a92_vN3x0MATGxFJI2k6MWsX2Jkq51fih5bijKez8wZQ13lbZrkJqXlvhnNasOjIC9cMTDjtk2bQx8WUXMYKCMaOITZj2yq0=w240-h400" width="300" /></a><br /><br /></p><p style="text-align: justify;"></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Publicado originalmente em 1954, o romance <i>Não Sou </i>Stiller, do
escritor suíço Max Frisch, foi traduzido, em 1958, por Fernanda Botelho, para a
Editora Arcádia. É o terceiro romance do autor, também dramaturgo e arquitecto,
e o primeiro de três obras romanescas em torno da temática moderna da
identidade. O segundo, de 1957, é <i>Os Homens Não São Máquinas</i>, uma
tradução do título excessivamente interpretativa para o original alemão, <i>Homo
Faber. Ein Bericht</i>. O terceiro é <i>Chamem-me Gantenbein</i>, de 1964. Também
publicados em Portugal pela Editora Arcádia. <i>Não Sou Stiller</i> combina duas
temáticas. A da identidade e a da conjugalidade, o ser-se si mesmo e o ser-se
com e para o outro. Um aspecto interessante, embora lateral, é o facto de Max
Frisch ser, enquanto dramaturgo, um brechtiano, mas o romance não possuir
qualquer intencionalidade política, aliás, em contracorrente com a literatura
mais influente da época.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Por estranhos que possam parecer, um ao outro, o romance moderno e a
filosofia cartesiana, por diferentes que sejam os jogos de linguagem a que cada
um pertence, com as suas finalidades e regras claramente diferenciadas, só muito
dificilmente se pode imaginar que esse romance nascido na Europa moderna, com a
publicação de Dom Quixote, se pode desligar da posterior odisseia do <i>cogito </i>cartesiano.
A afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento teve um preço que
Descartes tratou narrativamente. Esse preço foi a sua redução a um eu pontual
em risco<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>de cair no solipsismo e marcado
pela descoincidência consigo mesmo, aquilo a que se chama vulgarmente o
dualismo ontológico entre a mente (alma) e o corpo. O que Descartes tematiza é
essa descoincidência de si consigo mesmo, de um <i>self</i> que mesmo na
evidência precisa da certificação dada por Deus, um <i>Deus ex machina</i>, para
enfrentar a ameaça de a própria mente descoincidir consigo mesma. O ponto de
partida do romance é a afirmação peremptória, feita por Stiller: <i>Não sou
Stiller…</i> O romance começa com a afirmação de uma descoincidência consigo
mesmo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">A obra divide-se em duas partes. Na primeira, são reproduzidos os sete
cadernos de anotações escritos por Stiller na prisão. A segunda,
substancialmente mais curta, é designada como “Epílogo do Procurador”. Existem,
deste modo, dois narradores. A história começa quando, num avião, um passageiro,
com passaporte americano, de nome James Larkin White é tomado por Anatol Ludwig
Stiller, um escultor suíço relativamente famoso, desaparecido há seis anos sem
deixar endereço. Ninguém sabe para onde foi. Nem a mulher, nem o irmão, nem os
amigos, nem os clientes. A polícia suíça interessa-se por ele devido ao desaparecimento
coincidir com um caso de espionagem a favor da União Soviética. Quer tirar a
limpo se Stiller estava ou não relacionado com o caso. Daí a prisão preventiva
de White, a panóplia de técnicas de identificação e a enorme pressão que tanto
o advogado de defesa como o promotor de justiça fazem para que ele confesse a sua
identidade. Embora a exigência de confissão se inscreva num processo de âmbito
judicial, ela emerge como uma possibilidade da restauração da coincidência
consigo mesmo. A confissão tem, na verdade, uma dimensão ontológica.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O romance não apresenta qualquer causa para essa descoincidência do
protagonista consigo mesmo, mas manifesta três sintomas que a tornam evidente.
Stiller oferecera-se para combater na guerra civil espanhola, nas Brigadas
Internacionais. Numa missão que lhe fora confiada, a de vigiar um barco no Tejo
e evitar que fosse usado pelos franquistas, foi incapaz de disparar sobre eles.
Não havia nele qualquer chama revolucionária ou de combatente. Também o seu
casamento com a bailarina Julika Stiller-Tschudy é uma prova dessa
descoincidência. Aquilo que ela era não coincidia com aquilo que ele esperava,
nem o amor que ele lhe dava coincidia com o amor que julgava ter de lhe dar.
Também a sua escultura estava longe de se acordar com aquilo que ele entendia que
deveria ser a arte. Nestes sintomas manifesta-se sempre uma distância entre a
realidade de si mesmo e a expectativa que se tem de si na vida, seja esta a
guerra, o amor ou a arte. Não é qualquer envolvimento em casos de espionagem
que levam Stiller a desaparecer, mas a impossibilidade de suportar a distância
entre as suas expectativas e a sua realidade. O que o conduz à fuga é a
impotência para se aceitar tal como é. Na verdade, é um acto de rebelião contra
a ordem, seja esta a ordem divina ou a ordem da natureza.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Nos sete cadernos de notas de prisão de Stiller, descobrimos uma teia de
relações amorosas anteriores à fuga. A sua relação com a mulher, Julika, a relação
daquele que é agora o procurador no caso contra Stiller, Rolf, e da sua mulher,
Sybille, e o caso entre Stiller e Sybille, ambos já casados. Há, no romance, um
óbvio questionamento do papel da fidelidade no casamento. O adultério não é
visto como merecedor de apedrejamento, como Cristo já não o vira, segundo a
narrativa evangélica, nem tão pouco de censura moral, o que terá parecido, na
época, muito ousado. Sobrepõe-se o valor moral da liberdade individual ao da
propriedade. Contudo, o problema da fidelidade é secundário no âmbito do
tratamento da conjugalidade. Aquilo que o autor interroga é a possibilidade de
dois eus se conjugarem numa vida comum e dotada de sentido. Se se olhar o casal
Rolf e Sybille, o convencionalismo burguês, integrando a infidelidade na
natureza das coisas, é solda suficiente para seres cujo questionamento
existencial é de baixa intensidade. O caso paradigmático é o do casamento entre
Stiller e Julika, onde ambos parecem sofrer de um efectivo problema de
identidade e, de formas diferenciadas, estão sob forte questionamento
existencial pelas respectivas consciências. O que fica claro é que o casamento
está longe de ser a solda ideal para que cada um se una consigo mesmo e encontre
a sua identidade. Não passa de um longo equívoco, em que os cônjuges não se
conjugam entre si, pois não estão conjugados entre o que são e o que imaginam
ou desejam ser.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O século XVII continua a assombrar-nos. É o século de Descartes, mas
também de <i>D. Quixote</i>, de Cervantes, o primeiro romance moderno, ainda
anterior à aventura do <i>cogito</i>. A afirmação da individualidade a partir
do Renascimento conduz à descoincidência cartesiana e à de D. Quixote, cindido
entre a idealidade imaginária e a dura realidade. Stiller, na sua negação e
procura de si, é um herói romanesco que vive entre a necessidade cartesiana de
uma garantia e o irrisório quixotesco da sua existência real. Rolf, de cuja
mulher Stiller fora amante, tornou-se, durante o processo, seu amigo. Tentou
comunicar-lhe que essa garantia da soldadura de si residia em Deus, mas Stiller
ficou sempre subjugado à dimensão quixotesca da existência. Ora, essa dimensão
quixotesca não é outra coisa senão uma fuga. Não da vida, mas daquilo que se é.
A identidade torna-se problemática nesse momento em que aquilo que se é se
mostra aos próprios olhos como insuportável. Talvez a questão da identidade não
passe, de um ponto de vista filosófico, de um longo equívoco, mas enquanto a
sua sombra se projectar sobre os homens, o romance não poderá, na realidade,
ter outro tema.</span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-3868798875665902752023-12-25T10:28:00.003+00:002023-12-25T10:28:33.330+00:00Natália Correia, A Madona<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjf6rlKQBElSwfdItquNcYchFFkvuxmVPYle9WWNdl3V5RMm93Xspj9K2nmg6rK9-qBppTcWyeXTvd05lC0gfKnq3JPaKJpVOfL1ehxJRK4lXqFnHBwI5IrbBwfkGUrqgnESJVscM_UUn5lV3HsXi5eSd0rzFRKpixxfQ0SvoWFABnVs2H7r2CtZDHEouk" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="646" data-original-width="415" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjf6rlKQBElSwfdItquNcYchFFkvuxmVPYle9WWNdl3V5RMm93Xspj9K2nmg6rK9-qBppTcWyeXTvd05lC0gfKnq3JPaKJpVOfL1ehxJRK4lXqFnHBwI5IrbBwfkGUrqgnESJVscM_UUn5lV3HsXi5eSd0rzFRKpixxfQ0SvoWFABnVs2H7r2CtZDHEouk=w257-h400" width="321,25" /></a><br /></p><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Publicado em
1968, <i>A Madona</i> é um romance da escritora açoriana Natália Correia. O
tempo da narrativa apresenta-se cindido, dependendo dos espaços da acção, ora
uma aldeia arcaica de Portugal, Briandos, onde o tempo pertencia, na verdade, a
uma era já desaparecida da Europa, ora Paris, e também Londres, o apogeu da
contemporaneidade. A obra é cruzada por diversas tensões que lhe conferem
densidade e permitem diversas dialécticas que compõem a sua complexa dimensão
semântica. A primeira tensão é entre o arcaico e o contemporâneo, onde se
inscreve a oposição entre um Portugal rural e o mundo cosmopolita representado pelas
grandes capitais europeias. Uma segunda tensão é a que opõe senhores e servos.
A terceira liga-se à dialéctica entre norma e desvio. A quarta tem o seu núcleo
dinâmico na relação entre o feminino e o masculino. Todas estas tensões têm
como pano de fundo um mundo em escombros. Os escombros das relações quase
feudais ainda existentes em Portugal e os escombros de uma certa ordem burguesa
e puritana que se desenhava na Europa.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Branca, a
protagonista e narradora, pertence a uma família da aristocracia rural, num
mundo onde a relação entre senhores e servos surge ainda intocada em pleno
século XX. Um mundo que mergulha as suas raízes num passado longínquo, onde
ecoam os cultos báquicos e a tragédia grega, onde a superstição regula a vida
dos aldeões, numa relação primitiva com as forças da terra e do sangue. Em
contraposição estão os ambientes intelectuais de Paris e de Londres, num mundo
em efervescência. Se em Briandos a vida se funda no preconceito, na
contemporaneidade de Paris ou de Londres vive-se em oposição ao preconceito,
numa afirmação do Iluminismo, que acaba, na verdade, por ser pouco luminosa.
Branca une esses dois mundos, parte de um e procura integrar-se no outro. Num,
logo no início do romance, o coro das carpideiras coreografa a dor, para que o
ritual ancestral se cumpra, no outro novos rituais, como despir-se perante
estranhos, ainda que numa festa privada, faz parte da destruição dos
preconceitos.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">De algum modo,
o Portugal representado naquela aldeia chega até aos anos setenta. Estruturas
arcaicas estabelecem fronteiras rígidas entre as classes sociais, as quais
parecem, na verdade, mais castas ou estamentos do que classes. Essas
fronteiras, porém, limitam-se à posição social, ao ordenamento do elemento
humano na comunidade. Os senhores nascem senhores e os servos, servos. O pai de
Branca, contudo, tem o poder, ancestral, de não confinar a sua sexualidade à
mulher e ao meio a que pertence. A dominação exerce-se também na busca dos
prazeres do sexo. A sua morte nos braços da Carriça, a prostituta da aldeia,
sublinha com ironia esse exercício de contaminação de castas introduzido pela
sexualidade. O surpreendente no romance é que a herdeira, Branca, acaba por
reconhecer também ter direito de desfrutar do corpo de um servo, se isso lhe
der prazer, num claro exercício de dominação.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Branca
representa assim um duplo desvio da norma tradicional. Após a morte do pai, sai
de Briandos para Paris, apoiada pela mãe que não quer que a filha tenha a mesma
vida que ela, presa no seu papel de mulher, desprezada pelo marido, trocada
constantemente pelas diversas amantes que ele vai encontrando nos seus domínios,
até morrer na cama da mais desprezível mulher da aldeia. A ida para França
representa uma libertação do papel tradicional da mulher, libertação assente
num desvio à norma reguladora do destino das mulheres, independentemente da
classe social de origem. Mergulha numa cultura onde o desvio se vai tornando a
norma, onde a visão tradicional do catolicismo desapareceu e o prazer parece
ser a regra. Esta emancipação do papel tradicional vai permitir-lhe, num
momento de cansaço e desilusão do mundo moderno, retornar ao ponto de partida e
seduzir um aldeão, uma encarnação, na imaginação de Branca, do Adão original e
usá-lo como instrumento do seu prazer e do seu exercício de dominação. O desvio
assenta aqui na inversão de papéis. A dominação masculina pela sexualidade é
agora substituída pela dominação feminina através da mesma sexualidade.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">As figuras
masculinas são, por norma fracas, perante a força de Branca. Tanto Miguel como
Manuel são dependentes dela. Miguel, um português candidato a escritor, é
aquele que inicia a jovem e virginal vinda de Portugal na vida sexual, aquele
que lhe abre o caminho para combater os preconceitos, mas, na verdade, não
apenas é um impotente enquanto escritor, como fica dependente de Branca tanto
do ponto de vista financeiro como do amoroso. Por detrás da retórica do combate
ao preconceito, habitava-o o mais comum dos sentimentos de qualquer amante, o
ciúme. Manuel, o viril aldeão imaginado como uma força genesíaca vinda do Éden,
confunde o seu papel na vida de Branca. Ele não é para ela mais do que a
Carriça fora para o pai de Branca. Alguém de que ela dispunha ao seu
bel-prazer, sem que as ilusões afectivas que nasceram no coração dele tivessem
qualquer impacto em Branca. Uma coisificação do macho, um exercício de
dominação de um poder ancestral.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O romance tem
sido lido como uma obra de emancipação da mulher, um grito de revolta feminista
na atmosfera de sacristia do Portugal dos anos sessenta, uma afirmação da
natureza tumultuosa do feminino, da incompatibilidade entre esse feminino e a
regra e ordem trazidas pelo poder patriarcal. Ora, uma outra leitura parece
possível, e, na verdade, mais plausível. Branca reproduz em mulher a dominação
aristocrática do pai. É uma afirmação do poder da casta superior sobre as
castas inferiores, mesmo que as estas sejam concedidos prazeres e ilusões. Esses
prazeres e essas ilusões têm consequências funestas. Para além da imaginação,
onde se inclui a própria imaginação de Branca, está uma realidade implacável,
que, chegada a hora, desfaz quimeras e fantasias, e brilha acolitada pela
morte. <i>As vozes esganiçadas das carpideiras vibram lívidas nas agulhas que a
penedia levanta. Arrepiam as cristas das vagas deste oceano de pedra. Descem de
socalco em socalco. Vão lamber o gelo do rio que a geada glaciou e a taça do
silêncio sepulcral da montanha enche-se do vinho da tua morte.</i> Assim começa
o romance, nesta estreita aliança entre uma realidade dura, sólida, a própria
água gelou, e a morte. Toda a obra é explicação desta aliança e uma afirmação
de um poder ancestral, que se manifesta agora no feminino. A sensação com que
se fica é que os poderes ancestrais derrotaram as fantasias da
contemporaneidade.</span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-21123918118413259442023-12-17T10:20:00.001+00:002023-12-17T10:20:37.249+00:00Joaquim Paço d’Arcos, Herói Derradeiro<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgRh4H5pxbvnyykSC2yfkAfziOEKM7MSY1lhTSBJERTqPTGZTHVGBrouy5IprUVjjYjS0ecx3Ovbcps6n6Wix-9fTRA7RnGyzXuG34jwvZP1IKewpxFoJ27o_583emYvfCt67z4tE0BqtjjXOjNHc_aikGmkSHJ5DTiqNX50vjFvP0WwE1BvX1w_IcyzCc" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="600" data-original-width="413" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgRh4H5pxbvnyykSC2yfkAfziOEKM7MSY1lhTSBJERTqPTGZTHVGBrouy5IprUVjjYjS0ecx3Ovbcps6n6Wix-9fTRA7RnGyzXuG34jwvZP1IKewpxFoJ27o_583emYvfCt67z4tE0BqtjjXOjNHc_aikGmkSHJ5DTiqNX50vjFvP0WwE1BvX1w_IcyzCc=w275-h400" width="343,75" /></a><br /></p><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Publicado em
1932, <i>Herói Derradeiro</i> é o primeiro romance de Joaquim Paço d’Arcos. É
uma obra que se inscreve no prolongamento do realismo do século XIX e pode ser
inscrita no âmbito da literatura colonial portuguesa. De algum modo, o romance
parece inspirado em e constitui um tributo a Carlos Sobral (Carlos Burnay da
Cruz Sobral), um famoso <i>sportsman </i>da segunda década do século XX, que se
terá distinguido em diversas modalidades, mas que teve no futebol a sua glória,
tendo passado pelos quatro clubes lisboetas de então, o CIF, o Sporting, o Benfica,
onde as suas performances foram mais dignas de nota, e Os Belenenses, clube de
que foi fundador. No início dos anos vinte, terá ido para Moçambique, onde acabará
por morrer em luta contra um leão. Não é, todavia, a sua faceta de desportista
que inspira o romance, mas antes a de homem de negócios e de colono desbravador
de África. Não se está, note-se, perante uma biografia ou um romance biográfico
de Carlos Sobral. É uma obra ficcional em toda a sua dimensão e não retrata a vida
do desportista morto, embora existam cenas por ele inspiradas. Retrata antes o
destino do colonialismo português.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O romance
inscreve-se nas consequências do Ultimato Inglês e da tensão entre os
interesses portugueses e ingleses em África, no caso, em Moçambique. Carlos,
assim se chama o herói derradeiro, tem um projecto para dinamizar a colónia
portuguesa, desbravando terras para a agricultura e para a instalação da
emigração portuguesa, desviando-a do Brasil, tornando-a útil aos interesses
nacionais. Portugal, para manter a posse das colónias, precisava de as
colonizar, de ter portugueses no terreno, como modo de evitar reivindicações de
outras potências coloniais que, perante o abandono das terras de que os
portugueses reclamavam a posse histórica, pretendiam tomar conta desses imensos
territórios. Apesar de o romance ter sido publicado já à beira da formalização
constitucional do novo regime saído do golpe militar do 28 e Maio de 1926, o
tempo da narrativa é o da República, a qual nascera quase como uma resposta à
fragilidade portuguesa, na questão colonial, perante a Inglaterra. Estávamos
ainda longe dos dias em que as colonizações europeias começaram a ser varridas
um pouco por todo o lado.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">De algum modo,
existe uma sombra na obra do jovem Paço d’Arcos proveniente do grande realista
nacional, Eça de Queiroz. Também em <i>Os Maias,</i> o protagonista se chama
Carlos. Este é uma idealização e um certo tipo de português, tal como Carlos da
Maia o era, embora de um outro tipo. Carlos da Maia, apesar dos dons naturais e
educacionais recebidos, falhou a vida. O seu diletantismo era claramente
impotente para lidar e transformar uma sociedade lisboeta provinciana e
decadente, fora do mundo, vivendo nos horizontes estreitos que uma cultura e
uma educação fortemente influenciadas pelo catolicismo, a que se associava um
marialvismo bacoco e destituído de sentido, impunha sem condescendência. O
Carlos de <i>Herói Derradeiro</i> poderia partilhar com o outro de <i>Os Maias</i>
a recepção de dons naturais e educacionais, mas nele não havia uma natureza
diletante. Pelo contrário, decidiu jogar seriamente o jogo da vida, desbravando
novas possibilidades existenciais. Se Carlos da Maia é uma idealização do
português superior, mas vencido da vida, Carlos do romance de Paço d’Arcos é a
idealização do português desbravador de novos caminhos e de novos horizontes.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O projecto
colonial de Carlos vai enfrentar, junto do governo de Lisboa, a concorrência de
um projecto de um grande empresário inglês. O conflito que se desenrola nos
bastidores permite a Paço d’Arcos mostrar o modo não apenas como os interesses
estrangeiros tinham comprado as elites nacionais para as pôr ao seu serviço,
mas também a forma de funcionamento do poder em Portugal, onde o tráfico de
influências é central para se obter aquilo que se pretende. Há toda uma
corrupção moral e material das elites, descrita com ironia, corrupção essa que
joga a favor dos interesses estrangeiros e contra os nacionais. Carlos é um
patriota, mas na verdade o seu patriotismo é também ele impotente perante as
teias do dinheiro estrangeiro. Aquilo que o romance deixa transparecer, nesse
mundo onde as colónias tinham um papel central, era debilidade nacional, a sua
incapacidade para tecer de modo estruturado uma política colonial, entregando a
estrangeiros aquilo que deveria ser entregue à iniciativa de nacionais.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Também como em <i>Os
Maias</i>, o amor tem um papel central na narrativa. Não um amor incestuoso e
trágico. As figuras femininas de ambos os romances estão envoltas num mistério,
mas este é bem diverso. Em <i>Herói Derradeiro</i> o mistério não passa de uma
peripécia sem o dramatismo queirosiano. O desvelamento do mistério, porém, tem
o mesmo efeito de pôr fim ao romance, embora as razões para isso fossem, na
verdade, irrisórias e não as imperativas que impuseram o fim da ligação entre
Carlos da Maia e Maria Eduarda, sua irmã. Em ambos os casos, a mulher é sempre
envolta num véu, como se a sua natureza fosse essencialmente misteriosa,
impossível de ser apreendida pelo olhar simples e desejoso do homem. O desejo
que move os homens é incapaz de penetrar no véu que se esconde para além da
bela aparência e oculta uma informação essencial. Quando a mulher se torna
transparente, o herói perde o pé e cai.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Carlos de <i>Os
Maias</i> e Carlos de <i>Herói Derradeiro</i> representam dois tipos de
português distintos, se não antagónicos, há, no entanto, algo que,
decisivamente, os aproxima. A derrota. Joaquim Paço d’Arcos pintou o seu herói
com uma virtude activa que não se encontra no herói de Eça de Queirós, o autor,
contudo, não deixa de dar continuidade a uma galeria de vencidos da vida.
Também o seu Carlos, esse virtuoso<i> </i>patriota, é derrotado em todos os
campos em que desejaria triunfar. Perdeu nos negócios, perdeu, talvez por
precipitação, no amor e perdeu existencialmente ao sair derrotado na luta
contra um leão. É plausível pensar que o autor, detentor de interesses nas
colónias, tenha antecipado, sem ter disso consciência, a derrota do
colonialismo português. A figura de Carlos toma, desse modo, um lugar central
no imaginário do destino nacional. Ele figura o colonizador ideal e, ao mesmo,
tempo prefigura a sua derrota, que o tempo haveria de trazer.</span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-82863770807557638592023-12-14T22:45:00.006+00:002023-12-14T22:45:44.819+00:00Paolo Giordano, Devorar o Céu<p style="text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiEhZqP88Z-yjisye3Z2H_bRhKds5GbcBqhiCvlTf2utpGMFWhkKbe8PtD8GZf_P3Z36-UzklNviiL-ZjS1PWNrqzWXICXDGJYdKoCPeVqwT0Wci9pbJbR3vFp9KoEVrW0nhVXvvekbuWaQCM-s8lajTp9CChwIOXLDtQjmHSjx0hqFXjtSRuVjDjhT14OS" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="929" data-original-width="575" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiEhZqP88Z-yjisye3Z2H_bRhKds5GbcBqhiCvlTf2utpGMFWhkKbe8PtD8GZf_P3Z36-UzklNviiL-ZjS1PWNrqzWXICXDGJYdKoCPeVqwT0Wci9pbJbR3vFp9KoEVrW0nhVXvvekbuWaQCM-s8lajTp9CChwIOXLDtQjmHSjx0hqFXjtSRuVjDjhT14OS=w248-h400" width="310" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Publicado em
Itália no ano de 2018, <i>Devorar o Céu</i> é um romance de Paolo Giordano,
autor do famoso <i>A Solidão dos Números Primos.</i> A obra inscreve-se no
vasto continente de romances de formação. Acompanha, durante 18 anos, o destino
de quatro adolescentes até à sua fase de adultos. Contudo, esta transição entre
idades é inscrita na exploração de mundos alternativos possíveis, no confronto
entre a vida burguesa citadina e a vida no campo, com a sua utopia de contacto
e imersão na terra. Trata-se da história de Teresa, de Bern, Tommaso e Nicola.
Teresa todos os anos, no Verão, deixa Turim com o pai e vai para a zona da
Puglia, onde a avó paterna vive lendo romances policiais. É numa dessas férias
que, devido a um incidente, ela conhece os três rapazes da quinta vizinha à da
avó. São três irmãos, embora não de sangue, que vivem com Cesare e a mulher,
numa espécie de comunidade alternativa, na qual são educados no amor da terra,
na devoção religiosa, na qual Cesare cruza, num estranho sincretismo, a Bíblia
e crenças na reencarnação. Não frequentam a escola, mas a sua educação
alternativa não deixa de lhes fornecer uma cultura com alguma riqueza.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Desde logo,
Teresa deixa-se fascinar por este modo de vida alternativo e por um desses
rapazes, Bern, aquele que, de alguma forma, busca devorar o céu, isto é,
procura o absoluto nas coisas da terra. Sempre que a busca do absoluto se
desloca da vida espiritual para as coisas deste mundo, ela transforma-se em
radicalismo. A certa altura, o modo de vida alternativo abre a via, na
consciência de Bern, para a ecologia e para um activismo radicalizado em nome
da defesa da Terra. Depois dos radicalismos políticos dos anos sessenta e
setenta, nos quais as novas gerações de então se propunham substituir o mundo
burguês por uma utopia comunista, uma nova motivação anti-burguesa nasce dos
problemas ecológicos e do definhar do planeta. O romance de Paolo Giordano,
contudo, propõe uma linha de leitura da nova radicalização que a distingue da
anterior, a qual, na verdade, nunca é tematizada ou sequer mencionada no
romance. Os jovens radicais dos anos sessenta e setenta do século passado
vieram da Universidade e das boas famílias burguesas, numa espécie de revolta
contra o pai. Aqui, a radicalização de Bern é gerada fora do sistema de ensino,
numa espécie de madraça de elevada exigência moral, tutelada por um pai que não
é o dele, que lhe inculca uma fé no absoluto. Em Bern incarna-se a primeira
virtude teologal que o romance põe em movimento. Bern move-se pela fé.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Teresa, por seu
turno, encarna a terceira virtude teologal, a do amor. Apaixona-se por Bern e
troca a sua vida burguesa, de estudante bem instalada em Turim, pelo culto da
terra e dos valores que emanavam daquela comunidade vizinha da sua avó.
Enquanto os jovens estudantes dos anos sessenta e setenta, ao radicalizarem-se,
pretenderam, através do terror, destruir o sistema de vida burguês, Teresa
limita-se, por amor, a deixá-lo de lado. É a única personagem onde, de facto, o
amor se manifesta. Outras personagens parecem também serem tocadas por essa
virtude. Contudo, o amor é apenas a capa com que um interesse egoísta se
manifesta. Mesmo em Bern o amor não é mais do que uma manifestação de uma ânsia
desordenada de satisfação daquilo que o atormenta. Por amor, Teresa troca a
vida de Turim pela Puglia. Por amor, Teresa troca a casa da avó, que,
entretanto, herdara, vendendo-a para poder suportar a utopia de uma vida ligada
à terra, na quinta onde os jovens que conhecera viviam e tinham sido educados.
O amor manifesta-se na abdicação e na entrega.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">As virtudes
teologais, porém, são três. À fé e ao amor há que juntar a esperança. Se é
possível fazer encarnar a fé em Bern e o amor em Teresa, a esperança é uma
espécie de horizonte que percorre a obra. A esperança de Cesare numa educação mais
autêntica do que a educação convencional da escolaridade em escolas do ensino
público ou privado. A esperança de uma vida na terra em alternativa à vida
burguesa das grandes cidades ou mesmo da agricultura industrializada. A
esperança no activismo ecológico como meio para salvar o planeta. A esperança
é, em qualquer dos casos, a de uma salvação. Estamos no domínio da
soteriologia. O romance não fala nas virtudes teologais, claro, nem tão pouco
existe qualquer evidência que elas tenham perpassado na mente do autor.
Contudo, é difícil que qualquer tipo de obra literária ou de outro tipo de arte
fuja aos grandes arquétipos culturais que permeiam o espaço social em que se
vive. Por muito que a Europa esteja em fase de descristianização, ainda hoje
está submetida à herança do cristianismo, talvez com muito mais força do que
aquilo que pode suspeitar. A esperança é então aquilo que anima as personagens
romanescas, que anima a fé de Bern ou o amor de Teresa.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">A esperança,
contudo, vai-se revelando ao longo do romance como destituída de conteúdo e
tudo aquilo que se espera acaba por não acontecer. Não se está perante um
romance do desespero, mas de um romance em que a esperança é infundada. A
utopia, como é habitual, acaba sempre em tragédia. A fé dinamizadora de Bern,
com a sua potência dada por uma grande ânsia de um absoluto terreno, acabou por
gerar uma falsa esperança, a qual acaba por esvaziar o amor de Teresa,
roubando-lhe o seu objecto, reduzindo-o a uma mera memória. Tudo isto se passa
já num ambiente pós-moderno, num mundo lasso, muito diferente daquele em que
viveram os jovens radicais dos anos sessenta e setenta e que gerou o terror.
Aqui são pequenas tragédias pessoais, com impacto nos mundos privados, mas sem
ressonância social. Uma certa leitura do livro não deixará de chegar à
conclusão de que sempre que se procura um mundo alternativo àquele que nos foi
dado para viver, descobre-se que se vive no melhor dos mundos possíveis e que
os mundos alternativos, como fruto de uma <i>hybris</i> que não deixará de ser
castigada, são sempre inabitáveis.</span><o:p></o:p></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-15117384008365328762023-11-27T23:10:00.000+00:002023-11-27T23:10:20.237+00:00Thomas Mann, Sua Alteza Real<p style="text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi_uNl3AwpI4ZzY3ognQUKP9gZyqUuVNLaewxaRWxRW94kLPzjfxmz_EIEJR5ZMOukjBpfe35hoGEA1kU_y2sa9wHHSfxRd08IDD3iFvWCfVZnT6A1o2rqCpe2D7a8ssiyS2NgimiiUPG_ftrJnL61tNiYzFgofVfO9jmuGJTSLr5UvQG1oPBu2RF6pfCs" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="888" data-original-width="581" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi_uNl3AwpI4ZzY3ognQUKP9gZyqUuVNLaewxaRWxRW94kLPzjfxmz_EIEJR5ZMOukjBpfe35hoGEA1kU_y2sa9wHHSfxRd08IDD3iFvWCfVZnT6A1o2rqCpe2D7a8ssiyS2NgimiiUPG_ftrJnL61tNiYzFgofVfO9jmuGJTSLr5UvQG1oPBu2RF6pfCs=w262-h400" width="327,5" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Publicado em
1909, sete anos após o primeiro romance, <i>Os Buddenbrook</i>, <i>Sua Alteza
Real</i> é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na
época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e
deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de
imediato à mente são romances como <i>Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha
Mágica </i>ou<i> Doutor Fausto</i>. O que terá desapontado a crítica de então e
encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por
amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que,
também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de
fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos
superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das
existências individuais.</span></span></div>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O Grão-Ducado
é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por
aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século
XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não
bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande
guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da
instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo
desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os
empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai
trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto
sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções
públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão
Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na
doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do
Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença
mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta
era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">As grandes
decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma
função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente
de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua
Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as
exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a
debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de
representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada
no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração,
numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar
de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de
amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um
grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que
servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não
apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por
hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e
pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o
resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a
pessoa e a sua subjectividade.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">Para além de
conto de fadas, <i>Sua Alteza Real</i> é também um romance de formação, na
tradição do <i>Bildungsroman</i> iniciada com <i>Os Anos de Aprendizagem de
Wilhelm Meister</i>, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau
Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a
respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico
pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática
com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de
pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no
serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma
representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade,
constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi
um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi
feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental
era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental
é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é
uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia
ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O conto de
fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um
alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma
fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no
Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é
uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por
coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo
processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da
bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre
ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um
desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de
ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em
dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função,
dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é,
transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 195%;">O casamento é
visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como
essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a
uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A
transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação
de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão
rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no
romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e
da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios
aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função
que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau
Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse
pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros,
movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e
penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.</span><o:p></o:p></span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-67470220539262522252023-11-23T22:40:00.000+00:002023-11-23T22:40:01.833+00:00Julien Gracq, Au Château d’Argol<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiLmLmOIEDhnl4WwcMm5fSvhrtm8b0EZQZg_Z09ly0KBZxuaYMxgPr4ypyqCBGMmIriDVt3Hjg_9Oqq0LWYPH_OGGdqrHxEQVB0gDCaZSzp4cnpRJGtgPXxN-MWMHaBPKzZcl9OEX_NR4dUcNqdWA8oyZvbAM0zyTYf8LWe238Iq4z5wclhXRuixSD96-H8" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="1500" data-original-width="954" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiLmLmOIEDhnl4WwcMm5fSvhrtm8b0EZQZg_Z09ly0KBZxuaYMxgPr4ypyqCBGMmIriDVt3Hjg_9Oqq0LWYPH_OGGdqrHxEQVB0gDCaZSzp4cnpRJGtgPXxN-MWMHaBPKzZcl9OEX_NR4dUcNqdWA8oyZvbAM0zyTYf8LWe238Iq4z5wclhXRuixSD96-H8=w255-h400" width="344,25" /></a><br /><br /></p><p style="text-align: justify;"></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 195%;">Publicado em 1938, <i>Le Château d’Argol</i> é o primeiro romance de
Julien Gracq, pseudónimo literário de Louis Poirier (1910-2007). André Breton
considerou a obra como o ponto culminante do surrealismo. Independentemente
desta relação com o surrealismo, está-se perante o início de um percurso
literário – nomeadamente, no âmbito do romance – de grande qualidade, apesar de
o autor estar longe de ser popular. Como o título indica, o acção romanesca
passa-se num castelo/palácio da aldeia bretã de Argol, uma povoação realmente
existente, incrustada na floresta armórica, a qual, no romance, se funde com o
próprio <i>château</i>. Contudo, em Argol não há ou houve qualquer <i>château</i>.
É no cruzamento entre a realidade da povoação e a irrealidade do espaço narrativo
que o autor produz a mitificação do espaço, retirando-o da dimensão narrativa
da existência quotidiana e, de alguma forma, operando uma espécie de
consagração, embora de uma sacralidade tenebrosa, na qual emergem as forças
obscuras do inconsciente como grandes agentes da acção.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O <i>château</i> e a floresta envolvente, pelo processo de mitificação
que está na sua origem, tornam-se o espaço de uma utopia, não no sentido que
podemos encontrar naquelas desenhadas por Platão na <i>República</i> ou por
Thomas More na <i>Utopia</i>, onde se encontra uma idealização das relações
humanas, mas num sentido denso em que se combina a ideia de um espaço
estranhamente configurado, como se fora uma sugestão de não espacialidade, pelo
menos daquela espacialidade onde habitamos, e a percepção de que ali, naquele
lugar que é um nenhures, um não lugar, está suspensa a trivialidade com que os
seres humanos gerem as suas relações, e as relações que ali decorrem obedecem a
forças que estão adormecidas ou domesticadas na vida quotidiana, a qual só é
possível pelo adormecimento e pela domesticação dessas forças. A esta utopia
corresponde ainda uma ucronia assente em duas linhas de força. Por um lado, não
é claro qual é o tempo histórico da narrativa, pois nela se combinam elementos
modernos, como o automóvel ou a referência a Hegel, com intencionalidades românticas
e mesmo pré-modernas. Por outro, episódios em que a linearidade temporal é
subvertida, onde elementos do passado são, na realidade, elementos de um tempo
a vir.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Albert, um jovem aristocrata de grande riqueza, comprou o <i>château</i>
possuído pelo demónio do conhecimento. <i>Aos quinze anos, via-se florir nele
todos os dons do espírito e da beleza, mas ele desviou-se, com uma singular
firmeza, dos sucessos que, em Paris, todos lhe prometiam. O demónio do
conhecimento tinha-se já tornado senhor de todas as forças deste espírito.
Visitou as universidades da Europa, de preferência as mais antigas, aquelas
onde persistia ainda a recordação de um saber filosófico dos mestres da Idade
Média raramente ultrapassado pelos modernos.</i> Ao comprar o estranho <i>château</i>
na afastada Bretanha, Albert procurava um lugar onde pudesse satisfazer a sua
paixão filosófica num ambiente que se aproximaria, de algum modo, daquele que
teria sido o dos velhos mestres medievais. O <i>château</i> em Argol era um sítio
de meditação e, ao mesmo tempo, de viagem no tempo ao encontro de um passado
que, na verdade, não tinha sido, aos olhos do jovem aristocrata, superado, como
se a vontade do indivíduo pudesse superar a dialéctica do espírito no seu
processo histórico, tal como era compreendida por Hegel.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">A certo momento chega ao <i>château</i> Herminien, o melhor amigo de
Albert e como ele alguém espiritualmente dotado, acompanhado por Heide, uma
belíssima mulher. A partir deste momento suspende-se a vida banal e forças mais
poderosas e inconscientes entram em acção, nesse lugar onde o tempo e o espaço tinham
sofrido uma subversão. O que vai emergir, quando a vida trivial, com as suas
regras sociais e jurídicas, é suspensa não é um hino sublime à beleza, mas a
força da violência, de uma violência que vem do fundo do ser e se apodera dele.
Essa violência anuncia-se em verdadeiras justas medievais entre os dois amigos,
não em combates de cavalaria, mas de confrontos retóricos em torno do saber.
Podemos pensar a retórica como uma primeira forma de domesticação da
impetuosidade do <i>logos</i>, mas falhamos o essencial. A retórica apenas
torna mais sofisticado o discurso enquanto arma de agressão e de luta pela
dominação do outro. A tentação de confronto existente desde sempre entre os
dois amigos é agora intensificada pela disputa de Heide, pelo triângulo erótico
nascido da imediata atracção de Heide por Albert.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 195%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O destino das personagens vai ser marcado pelo desencadear da violência,
que passa do conflito retórico para a violência física e a morte. A narrativa é
construída sob a influência do romance gótico e das obras de Edgar Allan Poe,
onde o doseamento do suspense está feito para criar um clima de tensão que
antecede o desenlace. A culminação do surrealismo, como adjectivou Breton o
romance de Gracq, é, contudo, equívoca, pois o que se manifesta ali não é uma sobrerrealidade,
mas a vitória da infrarrealidade, o sucesso das forças tenebrosas que,
aproveitando a combinação da paixão pelo conhecimento com a paixão pela beleza,
furaram o cerco apolíneo da razão e abriram o caminho, como sempre acontece,
para a destruição e a morte. Escrito em 1937, publicado em 1938, o romance de
Gracq parece ser uma premonição e um aviso sobre aquilo que já nessa hora
espreitava a Europa e o mundo, como se o tempo do futuro se tivesse antecipado
e coagulado simbolicamente numa obra literária.</span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-17269212814967251372022-10-29T15:58:00.000+01:002022-10-29T15:58:26.203+01:00Ford Madox Ford, Some Do Not<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmm3UjZMtewjIJZ1_qf1joaL8ceGH951bcqTaLr_qUHNgws9uMTvgsCuu0ZfxWz88bkN5cbxhhD3r_aSFh8O39--n6ub_huawFGOPkHqcnLxxW44MOn64qO4d_xxMjHahMsTzLGIlZo1jDtYQXqRPGLiXaOxjrVi-EpMf_o0kAzd9gZRnGmU1fz0td/s1500/Ford%20Madox%20Ford%20-%20Some%20Do%20Not%202.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1500" data-original-width="972" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmm3UjZMtewjIJZ1_qf1joaL8ceGH951bcqTaLr_qUHNgws9uMTvgsCuu0ZfxWz88bkN5cbxhhD3r_aSFh8O39--n6ub_huawFGOPkHqcnLxxW44MOn64qO4d_xxMjHahMsTzLGIlZo1jDtYQXqRPGLiXaOxjrVi-EpMf_o0kAzd9gZRnGmU1fz0td/w259-h400/Ford%20Madox%20Ford%20-%20Some%20Do%20Not%202.jpg" width="323,75" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance Some
Do Not, publicado em 1924, é o primeiro da tetralogia Parade’s End, de Ford
Madox Ford, um dos mais importantes escritores modernistas ingleses.
Aparentemente, a tetralogia teria como objecto a primeira guerra mundial. É
reconhecidamente um dos grandes monumentos literários provenientes da
experiência traumática desse acontecimento que levou à morte uma geração de
jovens europeus. Contudo, pelo menos no primeiro romance, a guerra é um assunto
distante, que por vezes aflora não nela mesma, mas nas consciências das
personagens. O que está em jogo, na trama narrativa, será quase um exercício
filosófico, não porque o romance tenha um carácter especulativo e aborde
problemas teóricos, mas porque é, na verdade, uma experiência de pensamento,
como o são a Alegoria da Caverna, de Platão, ou a Hipótese do Génio Maligno, de
Descartes. Não tem, todavia, finalidade de construção conceptual, como as
referidas experiências, mas existencial. Apesar de marcadamente orientada para
a captura da vida no seu fluir, esta experiência de pensamento não deixa de
partilhar com as referidas uma preocupação com a distinção entre aparência e
realidade, um cuidado com a verdade. Trata-se de transplantar um homem do
século XVIII, Christopher Tietjens para as primeiras décadas do século XX. Não
que se esteja perante um romance de ficção científica, em que se faz acordar
alguém nascido num passado já remoto num tempo presente. O caso é outro.
Christopher Tietjens, o último tory, é um homem cujos valores se pautam pela
solidez moral dos gentlemen século XVIII. Pertence a uma família de ricos
terratenentes, chegada a Inglaterra com Guilherme de Orange, em finais do
século XVII, na sequência da Revolução Gloriosa.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance
divide-se em duas partes. Na primeira, centra-se num fim-de-semana que vai ter
importantes consequências tanto para Christopher como para o seu amigo Vincent Macmaster,
um escocês, pertencente a famílias pobres. Ambos foram colegas de faculdade e
trabalham agora como estatísticos para o governo de Inglaterra, embora o
escocês tenha pretensões em transformar-se em crítico de arte, tendo acabado de
publicar um pequeno livro sobre o pintor Dante Gabriel Rossetti, um dos
fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, um movimento artístico do século XIX. O
primeiro parágrafo da obra é um retrato do mundo ordenado anterior à primeira
grande guerra: Os dois jovens – ambos pertenciam ao funcionalismo público
inglês – iam sentados numa carruagem de comboio perfeitamente equipada. As
correias de couro das janelas eram virginalmente novas; os espelhos debaixo dos
porta-bagagens estavam tão imaculados como se tivessem reflectido muito poucas
coisas, o tapete acolchoado, de formas regulares, mas luxuosas, era escarlate e
amarelo, com pequenos e intrincados motivos de dragão, desenhado por um
geómetra de Colónia. O compartimento cheirava leve e higienicamente a verniz; o
comboio circulava com tanta suavidade – recordou Tietjens ter pensado – quanto
a dos títulos do tesouro da coroa britânica. Viajava depressa, mas se tivesse
balançado ou saltado ao passar sobre as juntas dos carris, salvo na curva de
Tonbridge ou na mudança de agulhas em Ashford, onde eram permitidas essas
excentricidades, Tietjens estava seguro de que Macmaster teria escrito à
companhia. Talvez mesmo ao Times. É este mundo de uma ordem geométrica e de uma
moral rigorosa que se encontra já em diluição.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">É no campo da
sexualidade que emerge a dissolução dos valores e da velha ordem do império
britânico. Tietjens mostra a Macmaster uma carta de Sylvia Tietjens, uma
católica, que tinha trocado o marido, o próprio Christopher, por um major, do
qual se fartou em pouco tempo. Pedia para regressar a casa. Durante o
fim-de-semana, Macmaster conhece Mrs. Duchemin, também ela escocesa, mulher de
um clérigo enlouquecido, proprietário de quadros pré-rafaelitas, com a qual
inicia um caso que conduzirá ao casamento, no dia a seguir ao óbito do senhor
Duchemin. Também Christopher trava conhecimento com a jovem sufragista
Valentina Wannop, filha de um casal amigo do pai, e com a qual estabelecerá uma
relação amorosa, mas nunca consumada durante o tempo desta primeira narrativa.
É neste ambiente, já marcadamente sexualizado, que Christopher vai pôr à prova
os seus sólidos princípios de cavalheiro, tanto na aceitação do retorno da
mulher, como na preocupação com a reputação dela. Um cavalheiro não se
divorcia. Se a mulher quiser o divórcio, concedê-lo-á, mas não dará qualquer
passo que possa prejudicar a imagem da mulher, uma rica e, aparentemente,
frívola socialite, sexualmente promíscua, que o odeia. Têm um filho, um acaso,
embora não seja claro se Christopher é ou não o pai da criança, embora as
provas existentes sejam fortes a favor da sua paternidade. Graham Greene
considera que Sylvia possui o pior carácter do romance moderno.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">À
hipersexualização do ambiente, pois a promiscuidade da mulher é apenas um
sintoma do espírito do tempo, responde Christopher com o seu desejo de ser um
santo anglicano. À libertinagem reinante, responde: Eu defendo a monogamia e a
castidade. E que não se fale mais nisso. Não é, todavia, esta defesa da
castidade e da monogamia que leva a que a mulher, Sylvia, o odeie. É o facto de
ele ser tão sólido e de estar de tal maneira fundado nos seus valores de
pertença a uma velha família terratenente que a deixam fora dela. Ainda por
cima, ele é servido por uma superior inteligência, com capacidade de não apenas
deslindar os enigmas do presente como de prever o futuro, não por possuir
qualquer dom profético, mas pela capacidade de cálculos das consequências das
coisas que ocorrem. Esta segurança torna-o, num primeiro momento, insuportável
para a mulher. Contudo, na segunda parte do romance, passada já bem dentro da
grande guerra, quando Tietjens está em casa, depois de uma recuperação de um
ferimento de guerra, no qual perdeu parte substancial da memória, de tal como
modo que se obriga a ler a enciclopédia britânica, como modo de recuperação da
informação perdida, o autor torna manifesto que, apesar de alimentar uma
espécie de conspiração contra a honra do marido – e honra aqui tem a ver com as
contas em ordem e um comportamento sexual exemplar –, Sylvia está apaixonada
por Christopher, na verdade o único homem verdadeiramente substancial que
conhece, ela que tem um lato conhecimento dos homens na intimidade.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">
</p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">É a
desadequação entre o sentimento manifesto e o sentimento real de Sylvia ou,
ainda de uma forma mais clara, entre a imagem que foi criada à volta de
Christopher, de um homem devasso, valdevinos, com filhos ilegítimos, à beira da
falência, por ser um gastador inveterado, coisa acreditada pelo próprio pai, e
a sua realidade de homem moralmente imaculado, contido nas despesas, um
cavalheiro em todos os sentidos da palavra. Assim como o ódio de Sylvia esconde
uma intensa paixão pelo marido, também a má reputação mascara a verdade de
alguém que vive segundo exigentes preceitos de rectidão, de tal modo que o amor
que se acendeu entre ele e Valentina permanece por consumar. Entre a aparência
e a realidade vai uma longa distância. A verdade é uma outra coisa que não
aquilo que é manifesto. Ora, é a solidez, deste último tory, ancorada no
passado, num romântico feudalismo, como notou Julian Barnes, que lhe permite,
sem exaltações, viver num mundo marcado pela duplicidade, pela mentira, pela
libertinagem e pela dissolução daqueles valores sólidos que fizeram da
Inglaterra a primeira potência mundial e que se manifestavam inclusive na
suavidade com que os comboios circulavam. É ainda essa solidez moral que leva
Christopher a voltar para a frente de combate, enquanto facilmente poderia
ficar em segurança numa repartição em Londres. Some Do Not significa, na
prática, que nem todos são iguais, nem todos se dobram ao espírito do tempo.
Por isso, o primeiro romance termina com a partida de Tietjens para França,
para a frente de combate.</span><o:p></o:p></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-45905178408088637492022-10-18T11:05:00.001+01:002022-10-18T11:05:26.782+01:00Dinis Machado, O que diz Molero<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUJyzPLgk-9_cBXakD4j83kpTi5Up2_COgk30nx1ZveXxAYhie3wAzcbVpDFnaZ8ZYBNPV4672zozeuoMWfxXeYyd3600ibkWx4_syFXuRrK6CgqErRG_EDTRV2Jdndl-btgNtFr5RLw01-NvdbXLEIupea9MFDTy8lGkvBJKApMToxY9QZUrG5zfv/s1986/Dinis%20Machado%20-%20O%20que%20diz%20Molero.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1986" data-original-width="1312" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUJyzPLgk-9_cBXakD4j83kpTi5Up2_COgk30nx1ZveXxAYhie3wAzcbVpDFnaZ8ZYBNPV4672zozeuoMWfxXeYyd3600ibkWx4_syFXuRrK6CgqErRG_EDTRV2Jdndl-btgNtFr5RLw01-NvdbXLEIupea9MFDTy8lGkvBJKApMToxY9QZUrG5zfv/w264-h400/Dinis%20Machado%20-%20O%20que%20diz%20Molero.jpg" width="330" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Publicado em
1977, <i>O que diz Molero</i>, romance de Dinis Machado, foi quase
imediatamente, apetece dizer, um grande sucesso de bilheteira. Não apenas
porque há na sua construção qualquer coisa de teatral, o que permitiu uma
posterior adaptação à representação no palco, mas também porque há um ritmo
cinematográfico exuberante, por vezes sufocante, uma sucessão de imagens vertiginosa,
transformadas em texto, de onde os pontos finais estão ausentes durante largos
excertos textuais, uma técnica que precipita o leitor a acompanhar a velocidade
da produção imagística. <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Que_Diz_Molero">Luís
Pacheco</a> refere “<span style="background: white; color: #202122; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">uma cavalgada furiosa de episódios,
uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo
chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos
doloridos, mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na
escrita.</span>” Por outro lado, <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Que_Diz_Molero">Eduardo Lourenço</a>
sublinha estar-se perante o indício de novas relações entre a literatura
contemporânea e uma nova cultura que já não recebe da modelação escolar os seus
tópicos decisivos. Tese, na verdade, bastante discutível, pois não são poucas
as passagens textuais que ecoam temáticas que naqueles dias obsidiavam o mundo
literário académico em Portugal.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance, como
uma das suas marcas de modernidade, não apresenta um <i>plot</i>, mas não deixa
de ser todo ele movido por uma intriga. Existem nele várias camadas diegéticas.
Uma primeira camada é a conversa entre Austin e Mister Deluxe, e que o primeiro
vai contando ao segundo, entrecortado por comentários de ambos, sobre o
relatório de Molero, a segunda camada narrativa, referente a um rapaz nunca
identificado pelo nome, sobre a vida deste, o que terá feito, dito, ouvido, as pessoas
com que se terá relacionado, etc., uma terceira camada narrativa, na qual não
apenas as palavras como as acções são textualidade. Apesar de não haver <i>plot</i>,
o rapaz não deixa de ser um herói – ou, se se preferir, um anti-herói – de uma
intriga em que a vida é tomada como um processo de descoberta existencial, uma
procura sobre quem é, uma espécie de questionamento metafísico, que em momento
algum encontra resposta, pois de princípio ao fim não lhe é dado um nome, nunca
deixando de ser <i>o rapaz.</i> Há, contudo, nesta caracterização um excesso de
informação sobre essa identidade, pois alia a pertença ao género masculino a
uma adolescência – consignada, precisamente, na denominação <i>o rapaz</i> –
nunca ultrapassada, já que é sempre desse modo que Molero o refere no
relatório. Apesar das peripécias, das viagens e dos amores, ele nunca é <i>o homem</i>.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Alguma crítica
refere estar-se perante a fragmentação da subjectividade, que o próprio texto,
com a sua natureza fragmentária acentua, apesar de ter, no nível intermédio, um
relatório, o que suporia uma coerência, seja jornalística ou detectivesca. O
facto de nunca se perceber quem são, na verdade, Austin, Mister Deluxe e
Molero, e o modo como é referido, nos diversos níveis narrativos, o <i>rapaz</i>
acentuariam essa natureza fragmentária das identidades, que eventualmente se
poderiam sobrepor. A questão, porém, é que mais que uma subjectividade
fragmentária, se está perante uma subjectividade que, na verdade, nunca
amadureceu, nunca entrou na idade adulta, nunca saiu da menoridade culpada. E
isto será o mais notável, no aspecto da crítica cultural, que o romance de
Dinis Machado torna manifesto. Apesar de uma hiperinflação cultural presente no
texto. Serão poucos os lugares comuns do mundo cultural português dos anos
setenta do século passado que não estejam referidos no romance e referenciados em
<i>o rapaz</i>. Apesar disso, ele não deixa de ser <i>o rapaz.</i> Não se está
perante a fragmentação pessoana do sujeito, tão pouco perante uma visão
freudiana de um <i>ego</i> em negociação constante com um <i>id</i> ameaçador e
um <i>superego</i> veiculador da ordem, mas de um eu eternamente adolescente.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A obra é uma
máquina de produção mitológica e são esses mitos que impedem a transição de <i>o
rapaz</i> para <i>o homem</i>. Está-se perante duas fontes mitológicas
essenciais, as da pequena Lisboa e as da grande Lisboa. Por pequena Lisboa,
denota-se o bairro popular. São os mitos localizados numa cultura específica,
com os seus heróis e vilões, onde a vida exuberante se estrutura e ganha
sentido. São os mitos que constituem o lastro de <i>o rapaz</i>. Por grande
Lisboa, significa-se um certo meio cultural lisboeta dominante nos anos
setenta, no pós-revolução, mas que viria já de antes. São, agora, os mitos das
viagens, do cinema, da cultura, da filosofia, da literatura, do amor ou do sexo,
para não falar das mitologias <i>new age</i> emergentes na parte final do
livro, mas como se tudo se passasse numa dimensão onírica, mesmo quando se
fazem viagens, se escrevem livros, etc. O jornalismo ou a literatura policial
fazem a mediação que permite a fusão entre a pequena e a grande Lisboa, entre
ambas as mitologias. A sensação que daí resulta, e que contamina o leitor, é
que nunca nada é consumado realmente. Viaja-se como se não se viajasse,
citam-se autores que não se compreenderam ou não se leram. Na verdade, um
exercício de pura adolescência. As mitologias criadas por Dinis Machado, apesar
de divertidas, não são meras diversões. São retratos impiedosos de uma certa
pequenez – menoridade – envolvida no artifício da referência e da citação, mediadas
pela cultura jornalística ou pela literatura policial.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O relatório de
Molero, ao qual nunca se tem acesso, a não ser pelos comentários e diálogos
entre Austin e Mister Deluxe, com a sua natureza fragmentária, é o relato
irónico de um mundo cultural lisboeta que transformava a boémia e a referência
superficial aos objectos culturais em voga num mito de alta cultura. O romance
entretece uma analogia entre a sua estrutura romanesca e a situação desse mundo
cultural da capital. Assim como Austin, Mister Deluxe e o próprio Molero,
apesar da sua peregrinação investigativa, nunca conseguem chegar à essência de <i>o
rapaz</i>, também esse mundo cultural e boémio lisboeta, apesar da frequência
cinematográfica e da referenciação superlativa aos objectos culturais, nunca
toca de forma séria nessa alta cultura, que diz admirar, mas que não passa de
tema de conversa, entre dois copos, ou de técnica de engate, pois o desejo tem
os seus imperativos e há quem só se dispa se for embalado por uma conversa de
alto valor cultural. Os lugares-comuns em que o romance abunda são uma
estratégia narrativa para tornar patente o irrisório, senão a impotência, dessa
comunidade cultural que se acharia a vanguarda espiritual da nação. Na verdade,
uma comunidade de velhos adolescentes, mergulhados na menoridade, de que são,
eles próprios, culpados, mas parafrasear, mais uma vez, Kant. Um
fogo-de-artifício para mostrar que, apesar da seriedade de Pombal, o Iluminismo
nunca terá penetrado seriamente por aqui, para tornar manifesto que aqueles que
parecem herdeiros desse século das Luzes são, na verdade e todos juntos, uma
rapaziada. </span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-9440004035167457992022-10-04T14:54:00.001+01:002022-10-04T14:54:13.673+01:00Michel Houellebecq, Serotonina<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLMljJpXSD76AIXQ8gVd6XaZJQflXpr62TRB824n6mriyyCKCoxcpHyASQAkXn7zQzaUFgvhRyDSLk39N-sm4dVH5qET_oLHbJlJRkYJItjUultkLdPssWEJ1inYDPdJ7JhT3X0p6esuePEkasR4hEeRHv3YbL-Uc1xzYXBo6byANPyv07jpzitaNo/s1558/Michel%20Houellebecq%20-%20Serotonina.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1558" data-original-width="958" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLMljJpXSD76AIXQ8gVd6XaZJQflXpr62TRB824n6mriyyCKCoxcpHyASQAkXn7zQzaUFgvhRyDSLk39N-sm4dVH5qET_oLHbJlJRkYJItjUultkLdPssWEJ1inYDPdJ7JhT3X0p6esuePEkasR4hEeRHv3YbL-Uc1xzYXBo6byANPyv07jpzitaNo/w246-h400/Michel%20Houellebecq%20-%20Serotonina.JPG" width="307,5" /></a></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Tornou-se um
hábito surgir uma espécie de guerra cultural sempre que Michel Houellebecq
publica um romance. <i>Serotonina</i>, de 2019, não foi excepção. Em muitas das
recensões que se encontram disponíveis na <i>internet</i> parece haver uma
maior preocupação em atacar ou defender o escritor do que enfrentar-se com a
obra. Fica-se sempre com a suspeita que o que dinamiza os textos são aspectos
ideológicos que se presume serem os do próprio autor. Há uma obsessão em
identificar narrador e autor. Para além de um certo fogo-de-artifício com uso
de expressões que infringem os ditames do denominado politicamente correcto,
tais como afirmações misóginas, um elogio a Franco como criador do turismo de
massas, embora claramente irónico, considerações xenófobas relativamente a
ingleses, holandeses e japoneses, a consideração, pelo narrador, da possibilidade
de assassinar uma criança para recuperação de uma amante, ou o ódio visceral à
proibição de fumar, a obra sublinha, não muito sub-repticiamente, a tensão
entre tradição e modernidade. É uma crítica rude dos valores cristalizados pelo
Iluminismo.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Dois núcleos
centrais do romance questionam a livre-escolha. Por um lado, na vida sexual;
por outro, na vida económica. Em ambas, a liberdade de escolher conduz a um
beco sem saída. Aquilo que está em jogo é sempre a tensão entre a existência
regulada e a vida deixada ao livre-arbítrio dos indivíduos ou ao jogo livre das
forças do mercado. De modo mais preciso, entre a menoridade e a maioridade, para
usar o tema do ensaio de Kant sobre o Iluminismo. O que Houellebecq põe a nu é
a incapacidade de os indivíduos gerirem a sua própria existência, quando libertos
de tutores e entregues a si. O que se manifesta é a falência de cada um em
fazer uso da sua razão para dirigir a existência. Camille representava para o
narrador, Florent-Claude Labrouste, a mulher com que gostaria de casar, mas a
sua liberdade de escolha, a quebra de um compromisso tácito – na verdade, de
uma promessa não formulada – levou a que ela se desligasse dele. Na base, um
caso de sexo, pouco mais que esporádico. Se se olhar a vida sexual das pessoas
que rodeiam Labrouste, a sensação é sempre a mesma. A nossa liberdade sexual é
impotente para gerar a felicidade e dar um fim à existência. Esta liberdade não
passa de uma licença para suspender os contratos amorosos, o compromisso com o
outro e com a vida. No romance, nota-se a nostalgia de um tempo em que o
livre-arbítrio dos indivíduos não era sinónimo de licença nos costumes. Nostalgia
de um tempo, onde a força das instituições – esses artifícios apolíneos –
colmatava a fraqueza dos indivíduos perante os apelos e injunções de Diónisos. A
abertura infinita das possibilidades, das possibilidades de busca de objectos
para consumação do prazer sexual, é um mal, um gerador de equívocos e de vidas
falhadas.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Por outros
motivos, também os produtores de leite da Normandia estão em guerra com as instituições
que, no lugar de superintenderem e regularem as relações económicas, procurando
assegurar a rentabilidade do mundo rural, servem apenas para criar uma
legislação que desregulamenta a vida económica, favorece o agro-negócio e
entrega os agricultores a esse mar tenebroso do livre-comércio. O mercado acaba
por ser visto, ainda que não de forma explícita, como um lugar onde o génio de
Diónisos se compraz com a dança das bacantes. Labrouste que teve, do ponto de
vista profissional, um papel que deveria proteger a especificidade do queijo da
Normandia e, desse modo, a vida económica desses agricultores, descobriu que as
intenções de Bruxelas e do governo são deixar morrer, um-a-um, esses homens que
asseguravam uma certa tradição agrícola, mantinham viva a especificidade dos lugares
e ligavam as comunidades ao fio histórico das gerações. A revolta dos
produtores de leite normando não é mais do que a manifestação de uma impotência
perante as forças dissolventes da globalização, com a sua natureza niilista.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Perante essas
forças que actuam na vida privada e no mudo da economia, não há, na perspectiva
do narrador, modo de se lhes opor com êxito. Ele próprio é um sintoma dessa
impotência. Nascido numa família das classes médias-altas, com uma boa educação
académica, a sua vida profissional não passou de um desastre. Nela não
encontrou, a realização que o tempo da universidade lhe parecia prognosticar. A
retórica sobre a boa formação como abertura de possibilidades existenciais para
uma vida boa não passa de um engano. Os empregos modernos não trazem consigo
uma possibilidade de auto-realização. São antes um dos múltiplos motores de
alienação, do estranhamento a si mesmo, que estão em acção. A rasura do sentido
para a existência conduz à fuga da realidade e à depressão. É este o destino do
narrador e protagonista,</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Quando Labrouste
descobre que a sua namorada japonesa, filha de boas famílias, de quem já estava
completamente farto, se entregava a orgias na sua ausência, que incluíam sexo
com cães, e tendo a noção de que a sua vida profissional não o conduzia a lugar
nenhum, decide desaparecer, perder-se no anonimato da grande cidade, sem
comunicar a ninguém. Essa defecção, porém, não tem poder salvífico. Liberta o
protagonista de factores que produzem um mal-estar contínuo, mas não fornece
força regeneradora. O perigo de suicídio passa a acompanhá-lo. Salva-o o <i>captorix</i>,
um medicamento à base de serotonina, um neurotransmissor que regula o humor.
Como efeito secundário, porém, causa impotência. O dilema que enfrenta
Labrouste é o complemento da reflexão sobre o carácter dissolvente da liberdade
sexual. Perante ele, está a escolha entre a vida ou o sexo. Este dilema sobrecarrega
a ligação da sexualidade à morte.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Esta é, na
verdade, a grande protagonista do romance. Ela está omnipresente e desenha-se
como o horizonte para o qual tudo tende, não como resultado de se ter vindo à
vida, mas pelo caminho que se desenhou ao viver. Seja a vida mergulhada no
prazer sexual, seja o destino dos homens que lutam contra as grandes instituições
que os deveriam salvar e proteger, mas que se tornaram suas inimigas. Aymeric,
um aristocrata e amigo de Labroust, suicida-se num protesto de agricultores,
desencadeando distúrbios, entre a polícia e os manifestantes, com várias
vítimas. A certa altura o narrador vê no assassínio de uma criança de quatro
anos, filha de Camille, a possibilidade de recuperar o amor desta, ao tirar de
cena o pequeno ser que concentra o amor da mãe. Em todo o lado, a morte é a
sombra que reina e superintende a vida no mundo ocidental, de onde a promessa
na vida eterna desapareceu da consciência dos indivíduos. Essa promessa era o
princípio de esperança que orientava, nas sociedades estruturadas pré-modernas,
a existência dos homens, dando-lhes um sentido para a vida e para a morte. A
morte desfez-se da promessa numa outra vida e Houellebeccq compraz-se em tornar
manifesto ao leitor o mundo em que apenas a morte é rainha.<span style="text-align: left;"> </span></span></span></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-72846828499859277602022-09-30T10:20:00.005+01:002022-09-30T22:42:36.229+01:00Ernst Jünger, Eumeswil<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgjTULoJ3gmwcvGFNIXS1C8o5aM97npOQzJzKhXaK3M24w6ij5MkKJikCekUkytWYMHX2vZw0mzXnAMJT59LswVQZtCNG0XEz3EidUZest5ht0GtXY7msWWf1Pw3nznACpSuTqfFhDKIW0I9Lus9iE81JgUDn990dUbX3mRsaYSeXxePZQcihEyLyOR/s1708/Ernst%20J%C3%BCnger%20-%20Eumeswil0001.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1708" data-original-width="1097" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgjTULoJ3gmwcvGFNIXS1C8o5aM97npOQzJzKhXaK3M24w6ij5MkKJikCekUkytWYMHX2vZw0mzXnAMJT59LswVQZtCNG0XEz3EidUZest5ht0GtXY7msWWf1Pw3nznACpSuTqfFhDKIW0I9Lus9iE81JgUDn990dUbX3mRsaYSeXxePZQcihEyLyOR/w258-h400/Ernst%20J%C3%BCnger%20-%20Eumeswil0001.jpg" width="322,5" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance <i>Eumeswil
</i>foi publicado em 1977, tinha Ernst Jünger 82 anos. Pode ser visto como um
repositório das principais crenças do autor em relação ao indivíduo, à
sociedade ocidental, à política, ao estado do mundo. Contudo, o centro
nevrálgico da obra é uma meditação romanesca sobre o destino de um espírito
aristocrático num mundo que deprecia os <i>aristoi </i>(literalmente, os
melhores em grego clássico) e vive para a satisfação dos desejos e o cuidado
dos temores do <i>demo.</i> Qual será o comportamento possível, num ambiente
político marcado pela democracia liberal, no qual as concepções de bem se
privatizaram nas consciências, para acabarem soterradas na submissão à
volubilidade do desejo, às pulsões inferiores, aos interesses materiais? Esta
meditação é colocada, contudo, num tempo e num espaço exteriores à sociedade
contemporânea em que Jünger escreveu, a República Federal Alemã, nascida da
queda do nazismo e da secessão da República Democrática. O tempo é o de
um futuro indeterminado, época posterior a uma catástrofe de que não são dados
a conhecer os contornos, mas que produziu significativas reorganizações do
mundo, se comparado com o do século passado, ou mesmo do actual. Também o
espaço político, a cidade-estado de Eumeswil, não deixa de ser um território indeterminado
para os conhecimentos actuais, apesar de situada no Norte de África. O romance
apresenta uma tonalidade, embora moderada, de ficção científica ou de romance
de antecipação, mesmo do ponto de vista tecnológico.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">No centro da
narrativa, encontra-se Martin Venator, um jovem historiador, proveniente de uma
família de historiadores. Para além desta sua ocupação académica, Venator
consegue o lugar de <i>barman</i> ou camareiro nocturno junto do Condor, o
tirano que governa a cidade-estado. A estranha opção do historiador, aliás
recomendada pelos seus mestres (o historiador Vigo, uma encarnação de
Giambattista Vico, e o filósofo Bruno, outra reencarnação, agora de Giordano
Bruno), tem como finalidade poder observar de perto o próprio poder. A ocupação
de <i>barman</i> é uma espécie de trabalho de pesquisa, quase à maneira do
método etnográfico utilizado na Antropologia. Uma descrição de uma pequena
sociedade – isto é, do círculo restrito do poder. A sua aparente finalidade
será a de conhecer o estilo de vida desse grupo e a sua cultura. Um trabalho de
campo. Esta ocupação na esfera do poder foi sempre mal vista tanto pelo pai
como pelo irmão, também eles historiadores, mas adversários políticos do
tirano, adeptos daquilo que, no romance, é denominado como os tribunos. A vida
política de Eumeswil balanceia entre tiranos e tribunos, percebendo-se que o
tipo de regime muda fruto de golpes mais ou menos violentos.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">As palavras
usadas por Jünger não são menos equívocas do que o espaço e o tempo da
narrativa. Venator reconhece no Condor não um déspota, não um ditador do século
XX, mas um tirano, como Pisístrato, que figura nas listagens dos Sete Sábios.
Ou, então, como os tiranos da tragédia clássica, talvez como Creonte da
Antígona. O Condor não é um déspota iluminado, mas um tirano compassivo, que
interfere o menos possível na vida privada dos indivíduos. Também a designação
de tribunos, para os oficiantes do regime alternativo, contém diversas camadas
semânticas. Neles, pode-se ouvir o eco dos tribunos da plebe, na antiga Roma, mas
também o do orador público, marcado pela eloquência, enfim, o demagogo, ou o
que hoje se costuma denominar por populista. Uma linha de interpretação plausível
dos tribunos é vê-los como os políticos dos regimes democrático-liberais. Apesar
do seu íntimo descomprometimento político, é clara a preferência de Martin
Venator pelo regime do Condor, cujo comportamento é o de um aristocrata que, na
perspectiva do narrador, é menos invasivo da vida das pessoas do que os políticos
liberais que, pela trama da legislação e da demagogia, acabam por prender nas
redes do poder as liberdades individuais.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Um dos temas do
romance é o conflito com o pai. Não se trata do habitual conflito edipiano, em
que o filho deseja a morte do pai para ficar com a mãe. Estamos perante uma
inversão da narrativa freudiana. É o pai que quer a morte do filho e não tanto
pelo desejo de assegurar a mulher – no caso, a amante – para si, mas porque um
novo ser incomodava os seus interesses. Martin nasce contra a vontade paternal,
que preferia que tivesse sido abortado. Este conflito com o pai é usado
simbolicamente como denúncia do carácter mortal das opções liberais, da livre
escolha. O pai, um adepto dos tribunos, não hesitou em querer suprimir uma vida
nascente, o que não aconteceu apenas pela determinação da mãe. A forma como
Martin se refere ao pai e ao irmão (na verdade, meio irmão, porque filho de mãe
diferente) é sempre irónica. Apesar de não gostar nem de um nem de outro, nunca
deixava de cumprir os seus deveres familiares, como se estes fossem fruto de
uma missão, mas não de uma afecção. E isto é o que distingue um espírito
aristocrático, o de Martin, de um espírito liberal, o do pai e do irmão.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Como pode um
espírito aristocrático viver num mundo marcado pelo niilismo, numa cultura em
que foi banida todo o valor da superação, de se tornar melhor ou, na
perspectiva clássica, de exercitar a excelência? Martin reconhecia-se a si mesmo
como um anarca. Uma interpretação possível da figura do anarca é vê-la como uma
consumação do <i>Único e a sua propriedade</i>, de Max Stirner. Seria um
equívoco ver a figura do anarca seja à luz do anarquista tradicional que
pretende mudar o mundo, seja a dos libertários de direita que têm, hoje em dia,
algum peso intelectual nos EUA. A política não o interessa, mas não desafia a
autoridade. Reconhece que precisa dela, embora não acredite nela. O anarca
segue os seus próprios interesses e tudo o que faz visa protegê-los. Contudo,
esses interesses são meramente espirituais. Não confia na política, e a
história, apesar de ser historiador, cansa-o com as suas eternas repetições. Há
que sair dela.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Eumeswil é rodeada
por dois estranhos mundos, o das catacumbas, onde se desenvolvem os prodígios
da tecnologia, e o mundo da floresta, universo perigoso, habitado por seres
mitológicos, o lugar da mais autêntica liberdade, aquela que, com o perigo
sempre presente, representa um desafio à coragem e à superação de si. Ali
está-se perante um mundo onde a lei civil e estado desapareceram. Resta uma
outra lei, a natural. Com a aproximação de um novo golpe de estado e o retorno
dos tribunos – isto é, uma nova transição à democracia e ao domínio da plebe –
o Condor e a sua corte decidem fazer um passeio pela floresta, para o qual
Venator é convidado, como uma espécie de historiador oficial. Dessa viagem não
há retorno. São dados como mortos, mas isso tão pouco está confirmado pela
presença de cadáveres. Ora, esta imersão na floresta é uma saída da história. O
historiador sai do espaço histórico para se confrontar como uma outra lei. Qual
o destino, nos tempos modernos, dos <i>aristoi</i>? Transformarem-se em anarcas,
abandonarem as ilusões políticas e as peripécias da história, mergulharem na
floresta em busca, por certo, das provas necessárias que os legitimem na
pretensão aristocrática.</span><o:p></o:p></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-83948048089916999972022-09-20T11:28:00.000+01:002022-09-20T11:28:05.711+01:00Italo Svevo, Senilidade<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiS7giBJErYOKmNRbba_gFbc58F-vasoR99wCuKlE6o48Y8Knz0N8o2rd4ZOmzZdgOLsDVsnPtfleplbNNEPFIW-lAAMI9kYpt-j1YyEx0YfFHpAyTfVp0BI6LraKjpXQSbmDxSzTJMIYD5NLLqA6MotHlc96-vaWki1_7Ft9eW8fIpzjJYz3qNyrT8/s1505/Italo%20Svevo%20-%20Senilidade.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1505" data-original-width="1000" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiS7giBJErYOKmNRbba_gFbc58F-vasoR99wCuKlE6o48Y8Knz0N8o2rd4ZOmzZdgOLsDVsnPtfleplbNNEPFIW-lAAMI9kYpt-j1YyEx0YfFHpAyTfVp0BI6LraKjpXQSbmDxSzTJMIYD5NLLqA6MotHlc96-vaWki1_7Ft9eW8fIpzjJYz3qNyrT8/w266-h400/Italo%20Svevo%20-%20Senilidade.jpg" width="332,5" /></a></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Publicado em
1898, o romance <i>Senilidade</i>, de Italo Svevo, é o segundo da sua vida de
escritor. A publicação é feita em folhetins no jornal de Trieste <i>L'Indipendente</i>.
Assim como o primeiro, <i>Uma Vida</i>, este é completamente ignorado pela
crítica. De tal modo que o autor toma a decisão de abandonar as ilusões
literárias. Só passados 25 anos, em 1923, volta a publicar um romance, o
último, <i>A Consciência de Zeno.</i> Há diversos motivos para a indiferença
original em relação aos primeiros romances de Svevo. Não seria um cultor exímio
do italiano. Movia-se num ambiente linguístico marcado pelo triestino – um
dialecto do véneto, uma língua românica, mas com consideráveis diferenças do
italiano – e pelo alemão. Por outro lado, os seus romances tinham já uma
inclinação marcadamente modernista, afastando-se das escolas realista e
naturalista. O seu carácter inovador poderá ser também uma razão decisiva para
o desinteresse com que foram acolhidos. O grande defensor de Svevo foi James
Joyce, que o conheceu quando esteve em Trieste, onde lhe ensinou Inglês, e
reconheceu naqueles romances o seu valor literário.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A personagem
central da narrativa é Emilio Brentani, um escritor falhado, apesar de o seu
primeiro, e único, romance ter sido bem acolhido e de lhe ter dado uma certa
aura de intelectual e, com o passar dos anos, alguma autoridade nos meios
cultos da cidade, pelos menos era isso o que ele imaginava. Tem 35 anos quando
se passam os factos que compõem a narrativa. Não é propriamente um velho,
embora a senilidade que está presente no título da obra se aplique ao seu
comportamento amoroso. O romance explora a relação do eu, de Brentani, com a
realidade, tanto através do conhecimento como da acção. Está-se perante a
análise do processo de falência cognitiva e volitiva do sujeito. A Idade
Moderna começa, no século XVII, com a afirmação do sujeito como fundamento do
conhecimento, de um sujeito que procura as evidências como forma de evitar as
ilusões e, desse modo, encontrar a segurança e a correcção na acção. Brentani é
o contrário disto. Ilude-se sobre a realidade e age de forma desadequada nela.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Emilio, apesar
das suas aspirações literárias, sempre adiadas, necessita de trabalhar para se
sustentar, bem como à sua irmã Amalia. É escriturário numa companhia de
seguros. Há neste facto duas curiosidades. Em primeiro lugar, parece ser uma
premonição casual de duas grandes figuras da literatura europeia, que eram
escriturários e, também, escritores. Franz Kafka e Fernando Pessoa. A segunda
curiosidade, não é casual como a primeira. Brentani quer ser escritor, mas não
passa de escriturário. Entre o ideal e a realidade há uma diferença assinalável,
aquilo que ele é não passa de uma sombra daquilo que deseja. Esta tensão entre
o ideal e o real envolve por completo a personagem. O caso é uma história de
amor aparentemente trivial. Inexperiente das coisas amorosas, Emilio conhece a
jovem Angiolina Zarri. Teria chegado a sua hora de conhecer a felicidade.
Contudo, a rapariga é o contrário do pretendente. É exuberante e tem uma vida
amorosa agitada, cheia de casos, muito longe do anjo que, a certa altura
Emilio, quis ver nela.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A sua
inexperiência condu-lo a comportar-se como alguém senil perante uma jovem
amante, que o trai sem escrúpulos. A paixão amorosa conduziu o protagonista a
um afastamento da sua irmã, de quem cuidava, e do seu principal amigo, o
escultor Steffano Bali. Este, ao contrário de Brentani, não se ilude com a
realidade e insiste para que Emilio não se deixe envolver, que se divirta, mas
que não dê mais importância ao caso do que a de uma simples aventura, como
aquelas em que ele se envolve. Svevo acaba por traçar dois tipos contrapostos de
homem, nas figuras dos dois amigos. Steffano vivido, saudável, afirmativo,
apesar de a sua carreira de escultor não ser particularmente sucedida,
apreciador da vida, pouco dado a devaneios românticos. É o homem que na vive na
realidade e a olha com uma mistura de cinismo e complacência. Emilio é inexperiente,
pouco saudável, incapaz de uma verdadeira afirmação de si, temeroso e propenso,
a meio da vida, a deixar-se envolver numa fantasia romântica, que tem por
contrapartida o mergulho nas águas pantanosas do ciúme. O primeiro é o homem do
real, pés na terra, o segundo é o do ideal, um subproduto da cultura romântica.
Por outro lado, também no campo feminino encontramos a mesma diferença entre a
saudável, exuberante e bela Angiolina e a doente, sofredora – apaixonou-se,
também ela, pelo indiferente amigo do irmão – e feia Amalia. O que emerge da
obra é que aqueles que sofrem são vítimas de si mesmos, da sua deficiente apreciação
tanto de si, como da realidade em que vivem.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Dois traços da
narrativa são indicadores de se estar já perante uma obra de ruptura. Por um
lado, o foco não na realidade social ou numa pretensa descrição científica da
vida social, mas na complexidade psicológica das personagens, no modo como
apreendem a realidade e aquilo que as motiva nas trivialidades da vida
quotidiana. Por outro, o papel do próprio narrador (narrador na terceira
pessoa) que constrói as personagens e, ao mesmo tempo, vai intervindo na sua
desconstrução, mostrando o pensamento e a acção de Emilio a partir do ponto de
vista deste, mas acompanhando essa manifestação com subtis comentários que
tornam patente a equivocidade em que o protagonista está mergulhado. Constrói
um herói que não passa de um anti-herói. Na verdade, um zé ninguém atolado numa
compreensão nebulosa e de pouca vitalidade da realidade. Por fim, saliente-se o
modo como a temática do amor é usada. Não se trata de um romance de amor, de um
amor falhado, mas de um romance que usa o amor como revelador daquilo que as
personagens são. O amor não tem, na obra, um valor intrínseco, mas puramente
instrumental. Steffano e Angiolina percebiam-no e eram saudáveis. Emilio e
Amalia, cada um a seu modo, erigiam-no como um valor em si mesmo, o que os
conduziu à derrota existencial, revelando a sua fraqueza vital e, também, moral.
Só os fracos e doentes se apaixonam. </span></span></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-70943987984940438242022-09-14T16:14:00.003+01:002022-09-14T16:14:50.468+01:00Mário Ventura, O Reino Encantado<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKcFfY3yGAQuxRN7e4DJ-CvmuLpanSvI_dfHlSWiXfbHJOUBy2ZudbOjNHhKFjMUuPTBXtri-nh2mHnQYil4k_jR6yLDQrfH_0J3pXmbfor15TUYTkRS7tE41XBJr8nER4Uurdoapt2GAfjjmxBz4K7CDXVv0vEqLBWgn23BGsUCa37GQmZiz2LNiQ/s1569/M%C3%A1rio%20Ventura%20-%20O%20Reino%20Encantado.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1569" data-original-width="995" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKcFfY3yGAQuxRN7e4DJ-CvmuLpanSvI_dfHlSWiXfbHJOUBy2ZudbOjNHhKFjMUuPTBXtri-nh2mHnQYil4k_jR6yLDQrfH_0J3pXmbfor15TUYTkRS7tE41XBJr8nER4Uurdoapt2GAfjjmxBz4K7CDXVv0vEqLBWgn23BGsUCa37GQmZiz2LNiQ/w254-h400/M%C3%A1rio%20Ventura%20-%20O%20Reino%20Encantado.jpg" width="317,5" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Publicado em
2005, o romance <i>O Reino Encantado</i> é o último de Mário Ventura, que morre
no ano seguinte. A obra combina dois interesses distintos. Por um lado, a
atenção despertada por dois episódios, ocorridos, em 1819 e 1838, na região de
Pernambuco, Brasil, à volta de seitas sebastianistas. Por outro, mais que uma
reflexão sobre a condição do trabalho de romancista, está-se perante uma
descrição do modo como o próprio romance se vai compondo, acabando, nas próprias
palavras do escritor, numa entrevista na época da publicação, por ser uma
motivação narrativa mais pesada do que os acontecimentos ocorridos, há muito,
no Brasil. Uma pista possível de leitura do romance pode ser aquela que explora
a tensão entre a natureza precária do artista e do seu trabalho e a crença
fanática dos adeptos sebastianistas. Uma tensão entre o relativismo da
construção artística e o absoluto de crenças absurdas e inquestionadas, que se
tornam o horizonte existencial de gente à deriva na vida. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O ponto de
partida do romance é, segundo o narrador, a leitura de um pequeno excerto – não
chega a 30 linhas, nas quais se descrevem factos e se faz reflexão ideológica
sobre eles – do livro <i>A Evolução do Sebastianismo</i>, de João Lúcio de
Azevedo, publicado no ano de 1918. O caso de um destes episódios ter conduzido
à prática de sacrifícios humanos e, também, a uma repressão militar não pouco
violenta, assim como a imprecisão daquilo que Azevedo contara no seu livro, terão
obsidiado a imaginação do narrador, o qual é a personagem principal da obra, e
terão acendido o desejo de escrever um romance sobre o assunto. Grande parte do
livro narra o processo de construção do romance. Este processo começa com um
vislumbre das relações no meio literário da época, dos jogos de poder e
vingança, do uso do sexo como pedra de arremesso entre escritor e crítica. A
escrita entrelaça aspectos da vida pessoal do protagonista, o desaire do casamento,
as relações com as mulheres, etc., e a busca, em Portugal e, fundamentalmente,
no Brasil, de materiais que permitam compreender os nebulosos acontecimentos
ocorridos no século XIX, pouco antes e pouco depois da independência do Brasil.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O narrador mostra-se,
em primeiro lugar, na sua precariedade moral. Por exemplo, de alguém que
necessita de se vingar de uma crítica desfavorável. O que deixa, no romance,
pelo menos um traço questionador da relação entre arte e ética. O escritor,
para o ser, não é, necessariamente, uma figura ética exemplar. A qualidade da
arte não dependerá da natureza moral do autor, mas do domínio dos próprios
aspectos formais da arte. Em conexão com esta relatividade moral do artista
surge uma outra, a da própria consistência dos materiais que utiliza na
construção das narrativas. O que coloca um problema interessante sobre a
relação entre arte e verdade. A preocupação aparente do narrador-protagonista é
encontrar informação fidedigna sobre um episódio ocorrido há quase duzentos
anos. Ainda por cima, de um episódio real, mas mal conhecido, que terá
despertado pouco interesse dos historiadores, mas que interessou escritores
como José Lins do Rego (<i>Pedra Bonita</i>) e Ariano Suassuna (<i>Pedro do
Reino</i>). Um leitor ingénuo poderá pensar que essa preocupação está ligada à
busca da verdade histórica. O conhecimento factual dos acontecimentos não
visará estabelecer uma verdade histórica, mas poderá dar um contributo para a
verdade narrativa, isto é, para que a narrativa possa patentear um módico de verosimilhança
que permita ao leitor suspender a descrença sobre aquilo que está a ler. É esta
busca da informação, como se fosse uma investigação jornalística, que possa
conduzir à verdade narrativa que é mostrada como o trabalho do romancista,
sujeito às peripécias das fontes, aos acidentes da fortuna, à disponibilidade
dos outros. À fragilidade moral do escritor soma-se a fragilidade dos materiais
com que trabalha.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A parte final
do romance, efectivamente, ficciona os acontecimentos de Pedra Bonita, assim se
chama o local onde ocorreram os episódios relatados. A crença do retorno de D.
Sebastião, que estaria ali encantado, à espera de voltar à existência, para
trazer a justiça aos que sofrem, encontrou um número significativo de
seguidores, entre pessoas perdidas na vida. Um enorme acampamento reunia os
sebastianistas, que viviam na expectativa da vinda do rei ajudados por uma
beberagem alucinogénia. Até que, com o intensificar das emoções e a manipulação
dos dirigentes, se dá um passo decisivo em direcção às práticas arcaicas do
sacrifício humano, a estratégia definitiva para desencantar o rei, trazê-lo à
vida e, com ele, as vítimas sacrificiais. Então, D. Sebastião distribuiria
pelos crentes as imensas riquezas de que seria depositário. É este episódio que
Mário Ventura descreve, tentando traçar as motivações que conduzem a crenças
tão absurdas, quanto absolutas, que impeliam as próprias mães a entregarem os
seus filhos para sacrifício.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A tensão entre
a descrição do trabalho do escritor e a dos trágicos acontecimentos pode ser
vista como uma reflexão sobre o papel da arte, e da arte do romance, em
particular. O carácter absoluto que as ideias – mesmo as mais absurdas ou, de
preferência, as mais absurdas – podem tomar exige uma desconstrução. Esta não poderá
ser a análise e a contraposição de outras ideias, a substituição de crenças
infundadas por outras que encontrem fundamento. O fanático é incapaz de um olhar
crítico sobre as ideias que o possuem, pois de uma real possessão se trata. A
arte tem esse poder de mostrar que tudo o que é humano é relativo, marcado pela
incerteza, construído pelas virtudes e pelos defeitos dos homens. A filosofia e
a ciência poderão opor às ideias absurdas da superstição ideias fundamentadas,
mas estas não tocarão no coração e na sensibilidade do homem possuído pela
certeza. Só a arte pode, explorando o sentimento e a sensibilidade, abrir um
frágil caminho ali onde as crenças se petrificaram e se tornaram uma ameaça
existencial.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><o:p></o:p></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-25303565374643337482022-08-17T10:10:00.002+01:002022-08-17T10:10:50.353+01:00Herta Müller, A Terra das Ameixas Verdes<p style="text-align: center;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizEHZwfnkmdNa-rbCJ4JC6qiv5T00EPAxM0cnG5odUKG5eCuN5NB6Nm0b4QqjOgUvIv0z-Bnem2fKe--KmxZQJfnseTVG4qH8zhpAjLShVWXGVtoQSaxfZarJCTpjksmWvhl-m5M68TcIk6TRjqWuUwAKp5TdJshpH5g7VN_EKRfkmCINBDMy5q87I/s1528/Herta%20M%C3%BCller%20-%20A%20Terra%20das%20Ameixas%20Verdes.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1528" data-original-width="1000" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizEHZwfnkmdNa-rbCJ4JC6qiv5T00EPAxM0cnG5odUKG5eCuN5NB6Nm0b4QqjOgUvIv0z-Bnem2fKe--KmxZQJfnseTVG4qH8zhpAjLShVWXGVtoQSaxfZarJCTpjksmWvhl-m5M68TcIk6TRjqWuUwAKp5TdJshpH5g7VN_EKRfkmCINBDMy5q87I/w261-h400/Herta%20M%C3%BCller%20-%20A%20Terra%20das%20Ameixas%20Verdes.jpg" width="326,25" /></a></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;"><i>Herztier</i>
(1996) é um romance da escritora alemã, nascida na Roménia, Herta Müller,
prémio Nobel (2009). Literalmente, o título original significa coração animal.
Em França, o título escolhido foi <i>Animal du Coeur</i>, em Espanha, <i>La
bestia del corazón</i>, e em inglês, <i>The Land of Green Plums.</i> A tradução
portuguesa (1999) seguiu a inglesa. O romance começa e acaba com as mesmas
palavras: <i>Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e
tornamo-nos ridículos.</i> Esta estratégia confere à narrativa uma espécie de
ciclicidade, de eterno retorno do mesmo, mas também o sentimento de um círculo
fechado. Este cerramento não é um mero exercício de estilo, mas o modo como
autora cria no leitor a sensação de opressão existente na Roménia sob a
ditadura comunista. Ciclos contínuos de expectativas (a da sempre adiada morte
do ditador), mais do que esperanças, e de desesperos, um ambiente fechado,
controlado, de onde qualquer liberdade individual fora banida.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Um outro
elemento estrutural liga-se ao anonimato da narradora num romance
autodiegético. Ela é a principal personagem, mas nunca se sabe o seu nome,
enquanto o das outras personagens – Lola, Edgar, Georg, Kurt, Tereza e o
capitão Pjele – são conhecidos. Várias recensões da obra vêem nela um romance
autobiográfico, devido à existência de traços biográficos comuns à autora e à narradora.
O anonimato desta seria uma ocultação do nome da autora. Existe, todavia, uma
outra possibilidade de leitura mais interessante. Essa ausência de nome da
personagem principal, esse espaço em branco na trama narrativa, permite que ele
fique em aberto e possa ser preenchido por qualquer um. Ao espaço fechado da
narrativa corresponde o espaço aberto do sujeito da acção. Num mundo opressivo
e fechado, num regime totalitário, o lugar da vítima está sempre em aberto,
para que qualquer um, se for esse o desejo do poder, o ocupe. O anonimato da
narradora significa que aquele lugar não é pessoal e intransmissível. Pelo
contrário.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Contrariamente
ao que se possa pensar, não se está perante uma obra de matiz ideológico nem
perante um romance de tese. Dentro do espaço fechado da narrativa, o que Herta
Müller faz é dar a ver o impacto do universo político sobre as pessoas, não
apenas nas suas condições sociais, mas, fundamentalmente, nas suas condições
psicológicas ou, melhor, na sua ipseidade, isto é, na forma como se constituem
enquanto pessoas. Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, pessoas que vivem sob
regimes totalitários ou autoritários não percebem que a opressão se abate de
forma muito insidiosa sobre a construção da personalidade de cada um, mesmo
sobre a dos adeptos e sicários desses regimes. Não são apenas os corpos que são
presos, torturados, violentados, ou o discurso que é censurado. O que qualquer
regime opressivo faz é manietar os indivíduos não lhes permitindo desenvolver,
muitas vezes sem que eles próprios percebam, as suas possibilidades mais
fundamentais. Neste tipo de regimes, a política não é apenas a política, mas
uma forma de rasurar a humanidade e de impedir a pessoa de se descobrir a si
mesma. É uma prática sistemática de amputações, mesmo que os corpos pareçam
ilesos.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Apesar de a
narrativa ser fechada, ela parece pouco estruturada. Não há divisão por
capítulos. O texto corre de princípio até ao fim, composto por pequenos
parágrafos, quase como se fossem versos que não coubessem numa linha e tivessem
de se expandir por várias. Esta sensação é intensificada pela própria natureza
imagética da escrita. Por exemplo: <i>Eu puxo o fio, escreve Lola, a coroa de
espinhos vira-se para baixo. A mãe canta. Deus tende piedade de nós, e eu puxo
para abrir o polegar da luva.</i> Há uma clara preocupação de dar a ver os
pequenos gestos, os acontecimentos insignificantes, tudo aquilo que constitui a
vida. Há uma atenção hiperbólica ao real, como se essa atenção fosse o outro
lado da opressão e, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e afastamento do universo
concentracionário.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance gira
em torno de quatro amigos todos com a mesma origem. A narrador sem nome, Edgar,
Kurt e Georg. São todos romenos de origem alemã e todos eles tinham pais que
fizeram parte das SS nazis, tal como o pai da própria autora. Essa comunidade
alemã presente na Roménia era o resultado de acontecimentos políticos, passados
no século XIX, que envolveram o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. No
romance, a opressão acentua também o conflito de nacionalidades, o choque de
culturas, a exclusão dos romenos de origem alemã. O sonho de todos os quatro
amigos, depois de terem concluído os cursos superiores, de terem entrado no
mundo do trabalho e de dele terem sido excluídos por desagradarem ao regime,
era emigrar para a Alemanha. A vida na Roménia tornara-se insuportável, embora eles
não tivessem qualquer actividade política digna desse nome. Limitavam-se a
cantar canções alemãs, ler livros que não faziam parte do cânone permitido pelo
regime ou, no caso de um, de tirar fotografias, que ninguém via, aos autocarros
que transportavam presos para os trabalhos de construção das obras do regime. É
a insignificância destes gestos e as retaliações que eles suscitam que mostra a
natureza totalitária da sociedade romena daqueles dias. Não havia aspecto da
vida que não fosse vigiado.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Há, no romance,
duas alegorias poderosas, ambas ligadas à morte. Os comedores de ameixas verdes
e os tragadores de sangue. Na comunidade camponesa alemã, corria o mito de que
se as pessoas comessem ameixas verdes morreriam. Ora, os quatro amigos ficaram
espantados quando descobriram na cidade que os polícias, os defensores da ordem
do regime, enchiam os bolsos de ameixas verdes e as comiam. Era como se
comessem a própria morte e a trouxessem com eles, tornando-os agentes mortais.
O poder heurístico da alegoria, porém, não fica por aqui. Uma ameixa verde que
é comida não tem o tempo suficiente para desenvolver as suas potencialidades, e
de se tornar uma ameixa no pleno sentido. As ameixas verdes são os próprios indivíduos
que acabam tragados na boca dos polícias, isto é, nas mandíbulas de um estado
policial. A outra alegoria provém da experiência profissional, acabada a
universidade, de Kurt. Entra como engenheiro para um matadouro. Descobre,
então, que os trabalhadores tragam o sangue dos animais mortos, o que o
perturba profundamente. Essa vampirização das vítimas – os animais mortos
tornam-se, como as ameixas verdes, uma imagem das pessoas perseguidas pelo
estado policial – por parte dos trabalhadores do matadouro torna manifesto que
o poder opressivo não se limita aos aparelhos de estado, mas que a própria
população se torna uma roda no mecanismo da opressão. No processo, porém, o que
mais horrorizava Kurt era a aceitação das famílias da situação. As próprias
crianças eram já cúmplices dos pais e não almejavam outra coisa senão o
matadouro. É este universo mortal que sustenta as primeiras e a últimas frases
do romance: <i>Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e
tornamo-nos ridículos.</i> Num espaço concentracionário ninguém sabe o que
fazer com o discurso, com a luz do <i>logos.</i></span></span></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-78728517938333085632022-08-08T09:39:00.003+01:002022-08-08T09:39:30.707+01:00Michel Houellebecq, Aniquilação<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdh1_FNujMs1CKsctp6EuJs5qFaEufwRmi_bsnrMkH_S8y_u52GKvzdFH137nx8Q4dtPoXn6Eubpwc4JsgACEfe5twqY5Qe68BTkXwkJE4V2bjqzpAoeVN33Ih4s5JMoTtRP7tIP-_VXp_Ayk80xQ8yXzsE8wBiFo3SFolUEavcjzPvxGqcDuD8D0X/s1545/Michel%20Houellebecq%20-%20Aniquila%C3%A7%C3%A3o.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1545" data-original-width="1000" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdh1_FNujMs1CKsctp6EuJs5qFaEufwRmi_bsnrMkH_S8y_u52GKvzdFH137nx8Q4dtPoXn6Eubpwc4JsgACEfe5twqY5Qe68BTkXwkJE4V2bjqzpAoeVN33Ih4s5JMoTtRP7tIP-_VXp_Ayk80xQ8yXzsE8wBiFo3SFolUEavcjzPvxGqcDuD8D0X/w259-h400/Michel%20Houellebecq%20-%20Aniquila%C3%A7%C3%A3o.jpg" width="323,75" /></a></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Publicado, em
França, no início de 2022, <i>Aniquilação</i> é o oitavo romance de Michel
Houellebecq. Como se tornou hábito, o lançamento de um novo romance deste autor
gerou uma enorme controvérsia entre defensores e detractores do romancista. No
campo da detracção, é sublinhado com insistência o facto do romance ser
composto por temáticas diversas que parecem não se encontrarem devidamente
soldadas umas nas outras, para que façam sentido estarem presentes numa mesma
obra. <i>Aniquilação</i> seria, então, uma obra descosida, e grande parte das
páginas desnecessárias. Essas linhas romanescas sem real conexão seriam o
terrorismo como ameaça ao mundo ocidental, um terrorismo não identificado e com
recurso a uma simbólica satânica do século XIX. Isto aconteceria no período que
antecederia as eleições presidenciais francesas de 2027, uma outra linha
temática, onde o candidato da maioria actual seria um homem de mão do
presidente ainda em funções. Neste ponto, estar-se-ia perante um romance de
antecipação e um <i>thriller </i>político. Por fim, o destino do protagonista
Paul Raison, o principal conselheiro político do ministro da Economia, um homem
chave no triunfo do candidato da maioria perante um adversário do partido da
senhora Le Pen. No caso de Paul Raison, o que estaria em jogo seria o seu
confronto com o destino, isto é, com o amor e a morte. Para muitos, esta é a
parte fundamental do romance, que dispensaria as outras linhas narrativas que,
no seu entender, não contribuem para o desenlace romanesco.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Uma outra
leitura é possível, começando por não aceitar que o protagonista principal do
romance seja Paul Raison, mas a família Raison e seria esta a solda que une as
diversas linhas que parecem sem ligação. Não deixa de ser estranho que a
generalidade dos comentadores não tenham atribuído qualquer importância ao
apelido Raison, a palavra francesa para razão. Falam, muitas vezes, de se estar
perante um romance crepuscular, mas parecem não compreender onde está a
essência desse crepúsculo, confundindo os efeitos do crepúsculo (o terrorismo,
a eutanásia, a diluição dos valores, etc.) com aquilo que o provoca. Ora, é a
crise da própria razão – encarnada na família Raison – que gera o imenso
crepúsculo a que o mundo ocidental estaria sujeito, na perspectiva do
romancista. Édouard Raison, um antigo quadro superior da segurança nacional, um
homem que teria tido um importante papel nos serviços secretos franceses, é o
pai de Paul, um alto quadro do ministério das Finanças e conselheiro político
do ministro Bruno Juge, que procura devolver França à glória económica, de
Cécile casada com um notário no desemprego, um casal católico tradicionalista e
apoiante do partido da senhora Le Pen. Também Aurélien é um Raison, filho mais
novo de Edouard, o mais próximo da mãe, já desaparecida no tempo da narrativa,
e como ela restaurador de tapeçarias medievais.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Cada um dos
Raison representa uma vertente da razão, tal como o Ocidente, no decurso da sua
história intelectual, a entendeu. Edouard representa a razão de Estado marcada
pela busca de segurança, uma razão inspirada, em parte, em Thomas Hobbes. Não
deixa de ser sintomático que uma das suas leituras seja Joseph de Maistre, o
principal pensador da contra-revolução e um defensor do Absolutismo, contra as
pretensões do terceiro-estado e a visão liberal do mundo. Paul simboliza a
razão económica, cujo protagonista no romance é Bruno Juge, considerado como o
melhor ministro da Economia desde Colbert. A referência a Colbert não é um
acaso, mas uma afirmação, no campo da Economia, da razão de Estado contra a
razão liberal. O Colbertismo é marcado pelo dirigismo estatal da Economia, por
políticas intervencionistas e proteccionistas. Tanto Edouard como Paul
representam simbolicamente a afirmação da razão de Estado e do Estado-Nação.
Aurélien encarna uma razão estética, percebida como incapaz de lidar com a
própria existência e os problemas que ela coloca. Uma razão marcada, por outro
lado, por laivos de romantismo, manifesto no interesse pela Idade Média. Por
fim Cécile, simboliza uma razão prática, preocupada com a família, submetida ao
império da fé católica.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">O destino dos
membros da família Raison fornece uma chave para compreender o que está em jogo.
Torna também patente o motivo pelo qual muitas análises vêem em <i>Aniquilação </i>um
romance<i> </i>crepuscular e, ao mesmo, tempo uma obra onde existe um sopro de
esperança. Édouard, durante todo o romance, está num estado de saúde mais
próximo da morte do que da vida, fruto de um AVC. Independente das peripécias
que o envolvem, que passam pelo seu rapto, de uma instituição de saúde pública,
por parte da família, o que transparece é a doença da própria segurança do
Estado. Também a doença que atinge Paul é um sintoma da doença de uma razão
económica que se furta ao liberalismo e adopta o proteccionismo em nome do Estado-Nação.
Paul não era ministro, apenas um membro do <i>staff</i>, mas seria uma espécie
de voz da razão económica. O caso de Aurélien que se suicida torna patente a
fragilidade da razão estética que se apoderou de parte do discurso ocidental.
Na visão que se desprende do romance de Houellebecq, essa razão é impotente
para lidar com os problemas que a existência coloca. Resta Cécile Raison. Nela
a razão submete-se à fé, a um catolicismo que não se nega a si mesmo nem se põe
em causa. Ela é a única que sobrevive verdadeiramente na tormenta que atinge a
família Raison. Só ela resistiu ao processo de aniquilação da família. Há no
romance uma visão crepuscular da cultura ocidental, mas é preciso compreender
que no crepúsculo existe ainda uma luz, embora ténue. Essa luz é Cécile.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Muitas leituras
do romance apontam a existência, nesta obra de Houellebeca, de um princípio de
esperança e que este se revelaria no amor entre Paul e a mulher, Prudence, um
amor que esteve posto entre parêntesis durante 10 anos, mas que pouco antes de
Paul saber do seu estado de saúde se reavivou e foi uma luz na vida dele.
Contudo, esse amor não tem qualquer poder salvífico e é impotente para
contrariar o destino de Paul. Se o romance é marcado por um princípio de
esperança, este só poderá residir em Cécile, isto é, numa conexão entre fé e
razão. Também neste romance de Houellebecq se pressente a influência de Joris-Karl
Huysmans, o romancista do século XIX que começou no naturalismo, passou pelo
decadentismo e acabou numa conversão ao cristianismo. A doença mortal que
atinge, no romance, Paul Raison é a mesma que levou à morte Huysmans, uma
espécie de sinal de reconhecimento de Houellebecq para com o escritor do século
XIX. Raison não chega a dar o passo que deu Huysmans, embora, em certos momentos,
o leitor fique com a ideia de que está próxima uma conversão. Contudo, o facto
de Cécile ser a única Raison sobrevivente torna manifesto, de um modo claro,
onde permanece ainda, para o autor, um sopro de esperança para o Ocidente e, em
particular, para França. A salvação não se encontra nem nos delírios estéticos,
nem numa razão de Estado que combine a segurança hobbesiana e o
intervencionismo económico colbertista, mas nessa aliança entre fé e razão, que
um dia deu vida ao Ocidente, mas que se lhe tornou completamente estranha com a
vitória do liberalismo. Na verdade, um programa não muito diferente do de
Joseph de Maistre.</span><o:p></o:p></span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-77320614079466587942022-07-30T11:15:00.001+01:002022-07-30T11:15:58.370+01:00Teixeira de Queirós, Os Noivos<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbR598CBHG5S3mSLMl1j6dsGL0MESqJv7XJVdcOpOZDoMjt8Y89elPDLPpuOlkuOZIeagGyj2GxTlq8No5gmjPyGvrk_6ZqLj9Uldb8lhZUEC4ypH3e5pH3dq9_uZRuPnPlHYySwZPsXKyN5JL9Gp3BuT52E5wlq3ulBa66Hjjv38Xag6xThp0zFRS/s1710/Teixeira%20de%20Queiroz%20-%20Os%20Noivos.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1710" data-original-width="1136" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbR598CBHG5S3mSLMl1j6dsGL0MESqJv7XJVdcOpOZDoMjt8Y89elPDLPpuOlkuOZIeagGyj2GxTlq8No5gmjPyGvrk_6ZqLj9Uldb8lhZUEC4ypH3e5pH3dq9_uZRuPnPlHYySwZPsXKyN5JL9Gp3BuT52E5wlq3ulBa66Hjjv38Xag6xThp0zFRS/w266-h400/Teixeira%20de%20Queiroz%20-%20Os%20Noivos.png" width="332,5" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">O romance </span><i style="text-align: justify;">Os
Noivos</i><span style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">, de Teixeira de Queirós, foi publicado, originalmente, em 1879. A
segunda edição, a de 1896, foi, segundo o autor, completamente refundida, sendo
definitiva. Hoje em dia, exceptuando os iniciados na história da literatura
portuguesa, ninguém conhece o autor. No entanto, desenvolveu uma importante
obra literária no último quartel do século XIX e nas primeiras duas décadas do
século XX. É um nome marcante do realismo naturalista português, tendo sido
considerado por Óscar Lopes e António José Saraiva “o melhor realizador, em
Portugal, do romance tal como o concebeu Balzac”. </span><i style="text-align: justify;">Os Noivos</i><span style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"> apresenta-se
como um </span><i style="text-align: justify;">romance crítico</i><span style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">, considerada a melhor forma literária para
exprimir “a complicada vida moderna”. A obra é a primeira de um amplo conjunto
de romances – oito ao todo – a que o autor deu o nome, de clara inspiração
balzaquiana, de </span><i style="text-align: justify;">Comédia Burguesa.</i><span style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"> Tanto na edição de 1879 na de 1896, o
romance é apresentado em dois volumes.</span></span></span></span></span></span></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Há no título
escolhido por Teixeira de Queirós uma aparente inconsistência com o próprio
romance que acompanha a vida de casados de Arminda e Gustavo, os principais
protagonistas desta <i>Comédia Burguesa</i>. Existe, contudo, nesta decisão uma
avaliação dessa instituição social que é o casamento. No prólogo da edição de
1896, referindo-se às suas personagens, o autor escreve: <i>Não eram bons, nem
eram maus; mas não cumpriram com o seu dever como elementos sociais. Gozaram um
fausto reles, e desuniram-se sem ódio. Nunca chegaram a conceber o que fossem
virtudes com que se resistisse à adversidade; não tiveram abnegação, nem
paciência, nem heroísmo na pobreza… tudo despreocupação e fatuidade.</i> O
romance mais do que uma crítica à instituição casamento é uma análise minuciosa
dos motivos que conduzem à sua derrocada. O casamento é um dever social e não
um mero direito dos indivíduos. Esse dever exige um conjunto de virtudes que
provam a maturidade de mulher e homem que se empenham na sua realização. Um
casamento exige capacidade de resistir à adversidade – na língua-de-pau do
psicologês que invadiu a sociedade actual, dar-se-lhe-ia o nome de resiliência
– exige abnegação, paciência e heroísmo, uma qualidade dos espíritos nobres.
Tudo isto faltou na vida de casados de Arminda e Gustavo. Na verdade, nunca
chegaram a ser, no pleno sentido da palavra, marido e mulher. Apesar de casados,
não eram mais do que noivos incapazes de consumar um casamento, não no plano
sexual, entenda-se, mas no plano da instituição social.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Há, em <i>Os
Noivos</i>, duas linhas fundamentais que ajudam a compreender essa efectiva não
consumação matrimonial. Por um lado, a desadequação de ambos à sua situação
social e económica. Provenientes de uma pequena/média burguesia do
funcionalismo, sem fortuna, eram tentados por uma vida de fausto que a sua
realidade não suportava. Teixeira de Queirós faz um retrato desapiedado desses
meios, daquilo que move homens e mulheres, tornando patente como, por exemplo, a
inveja desencadeia comportamentos miméticos que levam à perda dos protagonistas.
De certa maneira, muito antes de a dissolução do casamento se ter tornado uma
banalidade, o autor faz um retrato preciso daquilo que está na base de um
casamento destruído. Uma segunda linha de compreensão é a da influência de uma
visão do mundo romântica. O amor romântico é agora alvo não de uma recepção
apoteótica, mas objecto de uma crítica rigorosa. Isso torna-se patente durante
a lua-de-mel do casal, passada em Sintra. Não apenas o romantismo do lugar é um
sinal, como as sessões de leitura a que os noivos se entregavam e lhes enchiam
a alma. Liam, melhor, Gustavo lia para Arminda o romance de Alphonse de
Lamartine, <i>Graziela</i>, um dos expoentes do romantismo francês. A modelação
dos sentimentos encontrava nesse romance a sua ideia reguladora. O facto de não
ter contribuído, pelo contrário, para fortalecer a união dos dois é o sinal de
que o autor considerava esse romantismo uma forma ideológica incapaz de
produzir nos noivos a atitude virtuosa que lhes permitiria a levar a bom termo
o compromisso que o casamento representaria à época.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Influenciado por
Honoré de Balzac, Teixeira de Queirós empreende, com <i>Os Noivos</i>, um
conjunto de estudos fisiológicos e sociais – <i>A Comédia Burguesa</i> – da <i>classe
actualmente dominante</i>. Ele observa-a nas suas diversas manifestações. Desde
o duro homem de negócios, passando por militares, por funcionários bem
colocados e por pessoas que sendo burguesas pela sua condição de classe, não o
são, como Gustavo e Arminda, pela fortuna, herdada ou adquirida. Em torno do
drama conjugal, o autor mostra em acção essa gente que está já em fase
adiantada de relegar a velha aristocracia – ainda reverenciada – para o lugar
onde se coleccionam relíquias históricas. Não deixa de ser sintomático, porém,
que o ciclo seja iniciado por um caso claro de fracasso, um fracasso de
burgueses em consumarem não apenas o seu casamento, mas a sua própria condição
social. Não será inútil, para uma interpretação do romance – e, porventura, de
todo o ciclo – a distinção feita por Aristóteles entre tragédia e comédia. A
tragédia imita a acção dos homens superiores, dos heróis; a comédia, a dos
homens inferiores. Contudo, o filósofo acrescenta relativamente aos homens
inferiores imitados na comédia: (imitação) <i>não</i>, <i>todavia, quanto a
toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo</i>.
Gustavo e Arminda não eram bons nem maus. Não eram heróis e seres nobres. Eram apenas
ridículos no modo como se relacionavam com a sua própria realidade.</span><o:p></o:p></span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-39116545145019046092022-07-20T10:57:00.002+01:002022-07-20T10:57:17.559+01:00Liudmila Ulitskaya, Sonechka<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgF_cthwddrK7P94OkWtOaTU34Z9fU9p5oHAyr8quv9KX0cCKz8cGcW88urbEh167mWCa-JDaodi0INbbO15Z6AU0juxbiPsjh54VfWO3y5nQKuI-RRhJyTPoVGRQA0h_Gu57duzLF9Q3yZFWR0joAkz4dt_eXHgSTNj7I5CTyN8BfUdxwUUqKeQCfq/s1663/Ludmila%20Ulitskaya%20-%20Sonechka.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1663" data-original-width="1115" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgF_cthwddrK7P94OkWtOaTU34Z9fU9p5oHAyr8quv9KX0cCKz8cGcW88urbEh167mWCa-JDaodi0INbbO15Z6AU0juxbiPsjh54VfWO3y5nQKuI-RRhJyTPoVGRQA0h_Gu57duzLF9Q3yZFWR0joAkz4dt_eXHgSTNj7I5CTyN8BfUdxwUUqKeQCfq/w269-h400/Ludmila%20Ulitskaya%20-%20Sonechka.JPG" width="336,25" /></a></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">O pequeno
romance <i>Sonechka</i>, da escritora russa Liudmila Ulitskaya, foi publicado
originalmente em 1992, na revista <i>Novyi Mir</i> (Novo Mundo). Como todas as
boas obras de arte, esta abre-se a uma pluralidade de interpretações, que
realçarão este ou aquele aspecto, organizando, a partir daí, uma estratégia
hermenêutica para apropriação da obra. Aquela que se propõe aqui sublinha, como
ponto fulcral do romance, a relação entre a vida e a literatura. Qual o lugar
desta e como se relaciona com aquela? A ligação da protagonista – Sonechka
(diminutivo russo de Sónia) – com a literatura – mais especificamente, a
literatura russa – é o ponto fulcral deste primeiro romance de Ulitskaya.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">Poder-se-á ler a
narrativa a partir de uma perspectiva política, como uma denúncia do regime
soviético. Poder-se-á sublinhar o questionamento do papel da mulher na
sociedade russa. Poder-se-á, ainda, partir do confronto entre o espírito
individualista do artista – o marido de Sonechka é um artista, um pintor – e a
concepção soviética de arte subjugada ao estado, de arte ao serviço de uma
causa que ocupou o poder político e se tornou uma perspectiva totalizante.
Contudo, estes pontos – ainda que presentes no romance – são meramente
instrumentais e não essenciais.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">Liudmila
Ulitskaya preocupa-se em contar uma história, melhor, em contar várias
histórias que se entrelaçam, criando o enredo que conduz do ponto de partida, a
situação em que se encontrava, no princípio, Sonechka e aquele aonde chegou,
quando o romance acaba. A autora conta a história de Sonechka, mas também do
seu marido, Robert Viktorovich, Tânia, a filha de ambos, e de Jasia, uma jovem
polaca que acaba por se tornar amante de Robert e, ao mesmo tempo, protegida
como uma filha por Sónia, que sentiu a vinda de Jasia como uma dádiva generosa
do destino para a velhice do seu amado Robert.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">Apesar de ser
claramente uma autora pós-soviética, não foge, na concepção do romance, a uma
estruturação dialéctica, talvez uma reminiscência de uma concepção do mundo
proveniente da educação a que a juventude da URSS foi, durante décadas,
submetida. Esta dialéctica da narrativa tem como primeiro momento a intensa
relação da protagonista principal com a literatura russa. O segundo momento, o
da negação do primeiro, acontece quando Sónia conhece, numa biblioteca onde
trabalhava, Robert e casa com ele, constituindo uma família. O terceiro momento
da dialéctica dá-se com a morte do marido, o que constitui a negação dessa
negação e um retorno do primeiro momento, mas de modo completamente
transformado.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">A jovem
Sonechka – movida por uma relação difícil com o corpo e a realidade envolvente
– entrega-se a uma paixão devoradora pelos livros e pela literatura russa. As
personagens dos grandes autores russos são, para ela, tão ou mais reais do que
as pessoas com quem contacta. <i>Para ela (Sonechka), o sofrimento de Natasha
Rostova (personagem de Guerra e Paz, de Tolstói) à cabeceira do moribundo conde
Andrei (idem) era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha,
que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido.</i> Esta afirmação
de si como grande leitora é feita por uma espécie de alienação, um
estranhamento ao curso da realidade, uma imersão num universo simbólico e
onírico, <i>uma forma ligeira de </i>loucura (reminiscência, por certo, desse
leitor compulsivo de novelas de cavalaria conhecido como D. Quixote). É a
partir desse lastro que consegue encontrar uma justificação e um sentido para a
sua existência. O seu <i>self</i> constituiu-se pela absorção desse mundo de
papel. Ali, ganhou elasticidade e capacidade de perceber a vida muito para além
daquilo que poderia aspirar caso a paixão pela leitura não existisse.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">O segundo
momento dialéctico é o da vida real, com um inesperado amor, um casamento, uma
filha e tudo o que isso supõe na Rússia da segunda guerra mundial e dos tempos
que se lhe seguem. Este é um momento de negação daquela <i>ligeira loucura</i>
que a levava a confundir a vida real e a ficcional. Esta negação, porém, não é
uma aniquilação do <i>self</i> anteriormente construído no contacto com os
livros, mas a oportunidade de o pôr à prova, de lhe dar carne no dia-a-dia. Sem
esse <i>self</i> construído no mundo da ficção nunca teria casado com Robert Viktorovich,
um artista plástico bem mais velho, que tivera grande êxito em Paris, mas que
regressado à Rússia, acabou num campo de concentração. Esta negação dialéctica
é uma reapropriação de si e um mergulho na torrente da existência, que a
prepara para as peripécias que essa vida de casada lhe trará.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;">Quando o marido
morre, dá-se a segunda negação, a negação dessa vida quotidiana e uma
reafirmação do interesse pela literatura. Ela recusa sair da sua casa para se
juntar, na Suíça, à sua filha Tânia, ou ir para Paris, para junto de Jasia, que
para ela era como uma segunda filha. <i>À noite, colocando uns óculos suíços no
nariz em forma de pêra, ela mergulha nas profundezas doces, nas alamedas
escuras, nas águas primaveris…</i> Deste modo, Ulitskaya afirma a literatura
como forma de dar um sentido final à existência. Não nega a vida, mas nega que
esta tenha sentido fora da arte, que é esta, em última análise, que integra o
heteróclito das vivências numa unidade da qual se pode contar uma história e,
desse modo, retirá-la do sepulcro do esquecimento.<o:p></o:p></span></p> <p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-35117162595408832662022-07-12T12:38:00.002+01:002022-07-12T12:38:11.884+01:00Augusto Abelaira, A Cidade das Flores<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxFWvwrLQ0CHJgonBYjiUp-n8DiYGQJqupOFrrPXu4hpc5u6SaSAv8SGswBkG_5_kqC5agcIp0ClSeSaFMOG-oXEs5_yGTak8LatAjcVn7lVFeo4igUxTpUFYhG7ygmvlLeqP7VzhRlZ0o1-JeMwt7Qs28hKV7Kdsnhcws97xb3MCnfbF-FlifLk18/s1557/Augusto%20Abelaira%20-%20A%20Cidade%20das%20Flores.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1557" data-original-width="996" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxFWvwrLQ0CHJgonBYjiUp-n8DiYGQJqupOFrrPXu4hpc5u6SaSAv8SGswBkG_5_kqC5agcIp0ClSeSaFMOG-oXEs5_yGTak8LatAjcVn7lVFeo4igUxTpUFYhG7ygmvlLeqP7VzhRlZ0o1-JeMwt7Qs28hKV7Kdsnhcws97xb3MCnfbF-FlifLk18/w256-h400/Augusto%20Abelaira%20-%20A%20Cidade%20das%20Flores.JPG" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><span style="text-align: justify;"><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Concluído em
1957 e publicado em 1959, o romance <i>A Cidade das Flores</i> é a primeira
obra de Augusto Abelaira. A trama – melhor, as diversas tramas que compõem o
discurso romanesco – desenrola-se em Florença, num período em que o regime
fascista de Benito Mussolini estava consolidado e a Itália preparava-se para
entrar na segunda guerra mundial. As personagens – jovens – pertencem à classe
média de Florença e vivem o drama de uma consciência dilacerada perante a
situação que o país vive, os seus valores morais e a sua impotência para agir.
O autor terá deslocado o espaço romanesco para um lugar fora do território
nacional para iludir a censura, naquilo que seria, também, um questionamento da
situação portuguesa, do regime autoritário de Oliveira Salazar, e de uma
geração de portugueses oposicionistas ao regime, provenientes da classe média,
mas com um <i>pathos</i> muito diferente daquele que habita os protagonistas do
romance neo-realista em voga desde a década de quarenta.</span></div></span><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">O que ocupa o
espírito daqueles jovens não será tanto os problemas da igualdade e da justiça
social, mas o da liberdade que lhes era negada. Esta questão orienta o romance
para o problema das subjectividades, da sua construção e do confronto dessas
subjectividades com o peso da realidade. São subjectividades questionadoras
mais, muito mais, do que subjectividades actuantes ou militantes. Questionam-se
sobre o sentido da vida, sobre o amor, sobre a acção política, sobre a
moralidade e o dever fazer. Não têm certezas, mas dúvidas. Esta natureza das
personagens conduz a uma situação paradoxal que está no centro do romance.
Todos os protagonistas provêem de famílias burguesas, com conhecimento da arte,
da literatura, da música erudita. Ora, o que marca a burguesia europeia – o
terceiro estado – é o seu dinamismo, a iniciativa, o facto de terem elegido a
acção para se afirmarem contra a aristocracia e, posteriormente, ocuparem o
poder no mundo. Para compreender o romance não basta sublinhar a inércia dos
resistentes, é necessário considerar o paradoxo central que atravessa os jovens
burgueses. A tensão entre a acção (a não acção) e as preocupações morais e
filosóficas que essas personagens encarnam. Essa tensão traz para o centro do
romance o velho conflito entre a acção e a contemplação, entre a <i>praxis</i>
e a <i>theoria.</i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">A solução que o
romance de Abelaira oferece parece ser aquela que não agrada a ninguém, nem aos
homens práticos, nem aos contemplativos. Naquele grupo de jovens, apenas um se
engaja no combate político, vive na clandestinidade. O problema é que a sua acção
é marcada por um terrível equívoco. Ao perpetrar um atentado contra um comboio,
confunde aquele que transportava pessoas com o que transportava combustível
para fornecer o exército nazi. Este facto não é uma mera peripécia na
narrativa, mas um juízo cruel sobre o poder da acção na transformação do mundo,
aproximando de forma perigosa um acto político e um acto meramente criminal.
Por outro lado, os jovens contemplativos conduzem as suas existências a becos
sem saída, como se tivessem absorvido um <i>pathos</i> ético que vem do <i>spleen</i>
de Baudelaire, até à náusea de Sartre, passando pelo absurdo de Camus. Na
economia romanesca, nenhum destes partidos – o da acção e o da contemplação –
sai vitorioso.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium; line-height: 175%;">Mais do que um
libelo antifascista – ou anti-salazarista – o romance de Abelaira explora a
situação extrema posta por um regime autoritário para testar a humanidade, os
seus valores morais, a força das suas convicções e o poder das suas ilusões.
Não toda a humanidade, mas aquela que se filia na tradição da subjectividade,
da consciência de si, na afirmação do indivíduo. No fundo, é um questionamento
daquilo a que se pode chamar a tradição liberal. Como é que os indivíduos que
lhe pertencem podem lidar com situações de extrema opressão, como podem
conjugar os seus valores morais e a realidade que lhes é adversa? Giovanni
Fazio, a personagem principal do romance, tem uma solução. Escrever um romance
utópico, precisamente <i>A</i> <i>Cidade das Flores</i>. Esta ideia nunca
concretizada, apenas esboçada, permite, todavia, compreender uma outra questão,
a denominada reterritorialização presente no romance.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Lisboa dos anos
cinquenta, com o seu ambiente oposicionista, terá sido reterritorializada em
Florença, dos finais dos anos trinta, um ardil para iludir os censores
portugueses. Contudo a reterritorialização romanesca é mais do que um estratagema.
É um momento de transição para a desterritorialização. Colocar a acção
romanesca em Florença – numa Florença já inexistente – é um passo que ganha o
seu sentido pleno no desígnio de Fazio de escrever uma utopia. Qualquer utopia
é uma desterritorialização, um aniquilamento do espaço real em proveito de um
não-espaço, de um não-território. Considera-se, muitas vezes, as utopias como
uma abertura dos possíveis mais próprios da humanidade, mas não se atenta que
elas são confissões da dificuldade – senão da impossibilidade – de lidar com
esse território de que fazemos parte e dos caminhos que nele estão inscritos. O
romance de Abelaira, marcado por um apuramento técnico e estético longe dos
cânones do neo-realismo, coloca-nos nessa encruzilhada em que a grande tentação
é não escolher qualquer caminho possível, mas desejar um território e um
caminho que não existem e não poderão existir. Na verdade, é entregar-se a uma
visão pessimista da acção e procurar um refúgio que sirva de colírio à alma
dilacerada pelo conflito entre o real e o possível.</span><o:p></o:p></span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-89752188671994205422022-07-05T22:55:00.005+01:002022-07-07T00:23:56.945+01:00Italo Svevo, A Consciência de Zeno<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh084NUPJFxpOipMVg-yVzatOMvzjSrJWA-rqYlR1sWkpB-9ebRH6hw4cB4QBh2b7bu8Dnc0oP6vCJLcoiOQMPONZdHNXbBbx_77GNi06e_a8n5nWI-5WqGMaZQWxBf8s0HY2hQpGAuqDeTlK06NMZjVoVrwFWRiPvCs4L4GqS-Bqumvub-rgCM02t7/s1520/Italo%20Svevo%20-%20A%20Consci%C3%AAncia%20de%20Zeno.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1520" data-original-width="1000" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh084NUPJFxpOipMVg-yVzatOMvzjSrJWA-rqYlR1sWkpB-9ebRH6hw4cB4QBh2b7bu8Dnc0oP6vCJLcoiOQMPONZdHNXbBbx_77GNi06e_a8n5nWI-5WqGMaZQWxBf8s0HY2hQpGAuqDeTlK06NMZjVoVrwFWRiPvCs4L4GqS-Bqumvub-rgCM02t7/w264-h400/Italo%20Svevo%20-%20A%20Consci%C3%AAncia%20de%20Zeno.jpg" width="330" /></a></div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Uma
autobiografia publicada por vingança. É deste modo que o Doutor S., o
psicanalista de Zeno Cosini, numa espécie de prefácio, apresenta o livro <i>A
Consciência de Zeno</i>, de Italo Svevo, publicado em Bolonha, no ano de 1923. A
intervenção prefacial do Doutor S., contudo, faz parte da trama romanesca. Ao
paciente, Zeno (filho de um comerciante rico, que se sente inepto e doente, a
quem o pai não confia, mesmo depois de morto, os seus negócios), é solicitado,
como fazendo parte do método de tratamento, que escreva uma espécie de
autobiografia. O ele que faz e entrega ao cuidado do psicanalista. Contudo,
quando, segundo este, se aproximava da cura, Zeno abandona o tratamento. Como
um amante traído, S. publica o texto do seu paciente. A obra explora a
consciência do protagonista e é um dos textos fundamentais da literatura do
século XX, com a sua exploração da consciência, com uma utilização
rigorosíssima da linguagem comum, sem, no entanto, se deixar envolver pelo
senso comum. É um dos grandes romances formalmente inovadores no tratamento da
subjectividade, no uso da corrente de consciência, ao lado dos de James Joyce
ou de Knut Hamsun.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O texto de Zeno
estrutura-se em torno de seis pontos: 1. A relação com o tabaco; 2. A relação conflitual
com o pai; 3. A história do seu casamento (melhor, do seu noivado); 4. A
relação com a mulher e com a amante; 5. A relação comercial com um seu cunhado
que, por acaso, casou com a mulher que Zeno amava e irmã daquela com quem, na
realidade, casou; 6. Psicanálise e cura. Há na cultura ocidental uma longa
tradição confessional, cujo ponto decisivo é Agostinho de Hipona e as suas <i>Confissões</i>,
que emergiram na sequência da conversão ao cristianismo. Apesar de não haver
uma relação directa entre o texto de Santo Agostinho e o de Svevo, pois o
primeiro estabelece-se num processo narrativo que se pretende não ficcional, o
que não se passa com o segundo, e ainda, no caso de Agostinho, haver uma
reflexão filosófica em torno de problemas religiosos e metafísicos, o que não
acontece na autobiografia de Zeno, há uma estreita relação entre o problema da
conversão e o da cura. Toda a conversão é sentida como uma cura, a cura do modo
como o sujeito se relacionava com o mundo, assim como toda a cura é uma
conversão – pela persuasão – a um novo modo de ser, a um modo de ser saudável.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O texto
apresenta-se como uma rememoração, um trabalho sobre a memória de
acontecimentos passados, já longínquos. Quando, em 1915, Zeno empreende o
tratamento psicanalítico, é já um homem velho, segundo os padrões da época. Muitos
dos acontecimentos narrados passam-se muitos anos antes. O trabalho sobre a
memória tem sempre um risco, o da infidelidade. Isso é sublinhado pelo Doutor
S. que ao acabar o seu pequeno texto inicial afirma: <i>Se (Zeno) adivinhasse
as surpresas que lhe reservava o comentário do monte de verdades e mentiras que
acumulou nas páginas seguintes!</i> Esta intervenção da mentira – isto é, da infidelidade
da memória aos factos – coloca o romance de Svevo como uma metaficção, a ficção
de uma ficção. O leitor, logo à entrada da obra, é avisado que uma parte do que
vai ler é falso. Contudo, não sabe o que é verdadeiro e o que é falso. Esta é
uma estratégia ousada para reforçar, no próprio leitor, a suspensão da
descrença, a qual, como ensina Coleridge, é fundamental para seguir a trama
narrativa de uma obra ficcional. A infidelidade memorial alimenta a crença do
leitor na verdade da ficção que tem diante de si.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O romance do
Svevo não deve ser desligado da aventura da modernidade ocidental. Do ponto de
vista literário, podemos vê-la emergir com o Dom Quixote, de Cervantes. Do
ponto de vista filosófico, todavia, o momento fundamental é o pensamento
cartesiano. Pode estabelecer-se entre esses dois momentos proveitosas relações.
Quixote sofria de um problema epistémico grave, confundia o que desejava ver
com a realidade, mergulhado num universo de fantasias e ilusões. Descartes, por
seu turno, pretendeu encontrar um caminho em que se eliminassem as ilusões, em
que a verdade fosse possível. Ora, é este projecto cartesiano que, de um outro
modo, a psicanálise recupera. A terapia psicanalítica pretende conduzir o
paciente à descoberta das situações traumáticas (a descoberta da verdade que o
inconsciente oculta) que dão origem a comportamentos anómalos. Ora, o facto de
Zeno recusar terminar o tratamento e considerar-se curado, ao contrário da
pretensão do psicanalista, é uma crítica frontal à psicanálise e à crença que
ela encerra sobre a possibilidade de se chegar à verdade. Nos seus apontamentos
finais, Zeno escreve: <i>Julga ele (o Doutor S.) que vai receber a confissão
dum doente, dum fraco. Pois engana-se! Receberá a descrição duma saúde sólida,
perfeita – tanto quanto o permite a minha idade. Não só não quero entregar-me à
psicanálise como já não tenho necessidade dela. E, se falo da minha saúde, não
é só por sentir que sou privilegiado entre tantos mártires. Não é por
comparação que digo que estou saudável, é de modo absoluto.</i> Isto significa,
também, uma crítica à tradição originada em Descartes e uma afirmação da
filiação do romance na tradição romanesca nascida com Cervantes. Zeno estava
saudável, porque se persuadiu que estava saudável: <i>Há muito sabia eu que a
saúde, para mim, não podia ser outra coisa além da convicção de estar perfeito
e que é tolice digna dum sonhador hipnagógico querer «tratar-me» e não
persuadir-me</i>. A realidade não é outra coisa senão aquilo que dela fazem os
dispositivos retóricos mobilizados para essa tarefa que é a persuasão. Dito de
um outro modo, a </span></span><span style="font-family: georgia; font-size: large;">verdade é aquilo de que me convenço ser a verdade.</span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-36956907891165040182022-06-28T00:00:00.005+01:002022-06-28T00:00:43.912+01:00Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHI36c2-SBdTmt8Y6lRTBD9cmTAqnrmNfCS9AhM4ob0bIVOplt9s1qPevK4LVCNm1JuvLIgAjjI-Wz8AcaQic9j0Wzpcy2k4iQH68UHZiSIYIntjTuZ9sAol8X7HT-GCNbGmUVxEs68vPYEF8Tn_wu4e-fWM4yGsufcfrTdY6bexWe3UslZcqusfTq/s1472/Rebelo%20da%20Silva%20-%20L%C3%A1grimas%20e%20Tesouros%20def.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1472" data-original-width="850" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHI36c2-SBdTmt8Y6lRTBD9cmTAqnrmNfCS9AhM4ob0bIVOplt9s1qPevK4LVCNm1JuvLIgAjjI-Wz8AcaQic9j0Wzpcy2k4iQH68UHZiSIYIntjTuZ9sAol8X7HT-GCNbGmUVxEs68vPYEF8Tn_wu4e-fWM4yGsufcfrTdY6bexWe3UslZcqusfTq/w231-h400/Rebelo%20da%20Silva%20-%20L%C3%A1grimas%20e%20Tesouros%20def.png" width="300" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Publicado originalmente
em 1863, <i>Lágrimas e tesouros – fragmento de uma história verdadeira</i>, de
Luís Augusto Rebelo da Silva, é um romance histórico cuja acção se situa
durante o reinado de Maria I, a Piedosa, também cognominada a Louca. Inserido
na corrente estética do romantismo, a obra parece centrar-se na suposta paixão
entre Maria de Meneses, filha do então estribeiro-mor da Rainha, o Marquês de
Marialva, e o inglês William Beckford, então em viagem por Portugal, para,
segundo o autor, curar o profundo desgosto pela morte da mulher, Margarida,
embora as razões da viagem de Beckford pela Europa pareçam ter sido outras. Em
torno deste amor luso-britânico, contudo, desenrola-se o jogo da política e,
também, da religião, as quais naquela hora ainda se misturavam.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A tensão amorosa
deve-se não a um obstáculo formal e exterior aos apaixonados, como a pertença a
famílias inimigas, mas por um conflito que, apesar de vir de fora, é
subjectivado e torna-se um conflito dentro da consciência. Trata-se da oposição
entre tradições religiosas, o catolicismo de Maria de Meneses e o protestantismo
de Beckford. Este recusa-se a uma conversão à Igreja de Roma, pois ofenderia
com isso a memória dos pais, seria uma apostasia. Ela, tomada pelo escrúpulo religioso
de casar com alguém fora da sua religião e pelo temor perante um amor que não
pode prosseguir na vida eterna, assumindo que ela, como católica, teria à sua
espera o paraíso, e ele, como herege protestante, estaria condenado à perdição.
O tormento nas consciências, principalmente na da rapariga, é o nó do caso amoroso
e tem um papel fundamental no desenlace. Rebelo da Silva serve-se da personagem
Maria para, de algum modo, espelhar a própria Rainha perdida no labirinto da
consciência, no temor pela condenação eterna do pai, devido às perseguições políticas
de Pombal contra uma parte substancial da aristocracia da época, no temor da
sua própria condenação.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">O que será mais
estranho, para um leitor do século XXI, é o <i>pathos</i> em que o amor, entre
a filha do marquês de Marialva e o jovem viúvo inglês, é declinado. Há toda uma
linguagem artificiosa, uma declamação da paixão e da pureza que se nos tornaram
estranhas. Contudo, essa artificialidade do discurso amoroso serve para
sublinhar o contraste entre a nobreza do de um amor puro, nascido do
sentimento, e a vulgaridades dos negócios públicos e da política. É um
exercício retórico romântico que sublinha o valor da interioridade por oposição
ao mundanismo. A partir das estratégias retóricas seleccionadas, Rebelo da
Silva manifesta a oposição radical entre o mundo do coração e o mundo da razão
política. De modo bem diverso da tragédia grega, as acções dos seres humanos
nobres fundam-se na pureza do coração, enquanto a acção no palco político,
mesmo se os agentes são aristocratas, nunca deixa de parecer uma comédia, onde
se representam as paixões dos homens vulgares.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A trama política
gira em torno de uma aliança entre a aristocracia ainda dorida pelo tratamento
a que foi submetida por Pombal e a Companhia de Jesus. Pretende-se manobrar de
modo a que a Rainha, presa na sua debilidade mental e no terror religioso,
anule, por decisão política, as condenações a que as várias famílias aristocráticas
foram sujeitas, bem como a expulsão dos Jesuítas. Há, no romance, um
paralelismo entre a consciência dilacerada de Maria I e a de jovem Maria de
Meneses. Esta, como se escreveu acima, vive o conflito entre o amor e a fé, uma
fé rigorosa e o medo do juízo eterno. A consciência da Rainha cinde-se também
entre o amor à honra e à memória do pai – uma reabilitação dos condenados seria
uma condenação do pai – e o dever de caridade e misericórdia, que lhe poderia
evitar a condenação depois da morte. No cenário político, movem-se três
facções. A dos fiéis a Pombal, que pretendem evitar qualquer revisão dos
processos, incluindo a condenação da posteridade dos culpados. A dos que
pretendem uma revisão total e anulação das condenações e aqueles que, de um
modo aristotélico, pretendem encontrar um meio termo, partido em que é envolvido,
pelo talento de um jesuíta, Beckford. Não querem tanto a absolvição dos
condenados, mas um acto de misericórdia para os descendentes que, na verdade,
são inocentes.</span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Rebelo da Silva,
a partir deste conflito, dá a ver a natureza da corte, das forças que jogam de
modo dissimulado, como se toda a realidade – feita de múltiplos desejos, da
busca desesperada de reconhecimento, de uma luta sem fim e sem escrúpulos – se
escondesse atrás da afabilidade das convenções palacianas. Não esquece o
retrato da Companhia de Jesus, ainda banida no país durante o tempo da acção
narrativa, da sua capacidade diplomática, do seu poder de manobra, da sua
inteligência táctica e da sua moderação religiosa, adversária do fanatismo a
que hoje chamaríamos fundamentalismo religioso. Também os Jesuítas esperam
reverter a sua situação. Qualquer revisão do processo dos aristocratas seria
uma porta aberta para a Companhia fazer valer os seus direitos. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: georgia;"><span style="font-size: medium; line-height: 175%;">O romance é um hábil jogo de espelhos, em que Maria de
Meneses, a jovem apaixonada e temerosa do juízo divino, e Maria de Bragança, a
rainha dividida e atormentada pelo temor do inferno, se reflectem uma à outra.
Entre elas, uma na sua inocência virginal e a outra na inocência da loucura,
desenrola-se um carnaval sem fim, feito vaidades, orgulhos feridos, vinganças, enganos,
traições, alianças tácticas e rupturas estratégicas, feito de poderes
dissimulados e de submissões sem carácter, isto é, tecido com o fio da própria
vida. As duas mulheres são, na verdade, presenças metafísicas. A Rainha não
entra na trama romanesca, mas é uma sombra que paira sobre ela. A filha do marquês
de Marialva, a heroína do romance, é uma bela sombra encarnada, uma presença
metafísica que entra no jogo, mas que não lhe pertence. Um anjo, caso os anjos
tivessem sexo. Entre elas e a suas belas e atormentadas consciências, decorre o
jogo em que as consciências se conspurcam para poderem gritar vitória ou apenas
para sobreviverem.</span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-72292614606068927382021-11-28T15:23:00.003+00:002021-11-28T15:23:35.232+00:00Eça de Queiroz, Alves & C.ª<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiec4kzxk04xjeItp0ox2yW-hzSZ_OP0AtUfuFJXWSPNbCSW6fr87i9j7JynVgY7JvNlGBeyTm-7HNzIt4V_lE2fjt4o8yBdT7Q26nIAjTmka04rewbWsT9jsOgsRQ45a_SxYmkNUTHSGo/s1350/E%25C3%25A7a+de+Queiroz%252C+Alves+%2526+C.%25C2%25AA.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1350" data-original-width="950" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiec4kzxk04xjeItp0ox2yW-hzSZ_OP0AtUfuFJXWSPNbCSW6fr87i9j7JynVgY7JvNlGBeyTm-7HNzIt4V_lE2fjt4o8yBdT7Q26nIAjTmka04rewbWsT9jsOgsRQ45a_SxYmkNUTHSGo/w281-h400/E%25C3%25A7a+de+Queiroz%252C+Alves+%2526+C.%25C2%25AA.jpg" width="351,25" /></a></div><p class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O tema da honra está presente no último romance de Eça de Queiroz
publicado em vida, <i>A Ilustra Casa de Ramires</i>, no qual o protagonista, um
aristocrata, confronta a sua lassidão moral com o culto bravio e sanguinolento da
honra dos seus longínquos antepassados. Em <i>Alves & C.ª</i>, romance
póstumo publicado em 1925, um quarto de século após a morte do autor, Eça
centra-se no mesmo tema, deslocando o ambiente social da velha aristocracia
para o seio da burguesia comercial ascendente na Lisboa dos finais do século
XIX. O caso gira em torno de um adultério e a questão da honra punha-se aos
olhos do marido traído. O sentimento de traição é levado ao paroxismo porque,
além da infidelidade conjugal, há também a traição de uma amizade e de uma
sociedade comercial, pois o amante de Ludovina, a mulher de Godofredo Alves,
era precisamente o Machado, rapaz mais novo, sócio talentoso da firma e amigo
íntimo de Godofredo, que o vira crescer e quase o educara.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 175%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">A questão que Eça coloca no romance, ao fazê-lo girar em torno da honra,
prende-se com a tensão entre uma sexualidade que transborda os limites do
estipulado pelas convenções sociais e três instituições centrais da vida burguesa,
o matrimónio, a amizade e a sociedade comercial, onde se conjugam os interesses
materiais daqueles que se tornaram rivais. Serão as manobras de <i>Eros</i>,
com a sua propensão para desestruturar o mundo e lançar a vida no caos,
suficientes para pôr em causa instituições tão fundamentais para o mundo
burguês triunfante? A expectativa seria que a descoberta por Godofredo, na sua
casa e no dia do quarto aniversário do casamento, da sua Lulu nos braços do
sócio Machado, levaria à destruição do casamento, ao fim de uma profunda e
quase paternal amizade e, não menos importante, à desagregação da sociedade
comercial.</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 175%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Godofredo da Conceição Alves, o nome do personagem central do pequeno
drama, é todo ele um programa narrativo. Aos banais apelidos, a mãe, senhora
dada à leitura de romances, por certo românticos, antes de se dedicar ao culto
do Senhos dos Passos, decidiu antepor um nome de outros tempos, um nome godo,
como se ela quisesse ver no filho o aristocrata que ela não era. Esta ironia
queirosiana é fundamental para a compreensão do romance. Perante o ultraje,
Godofredo sente ânsias de lavar a honra em sangue, de matar o Machado ou de
morrer ele, mas libertar-se assim do peso que o adultério da mulher lhe punha
nos ombros. Depois de ideias e propostas bizarras, vai ter com dois amigos, um
deles experiente em coisas da honra, para resolver o assunto. O que vai
descobrindo, todavia, é que o caso não exigiria cometimentos tão drásticos. Os
padrinhos de ambos os lados manobram até que se chegue à conclusão que nada há
a fazer. Duelos relativos a questões de honra exigem mais que uma mera
peripécia do deus Eros. Por exemplo, ser escarrado na face. Isso sim é grave
para a honra de um homem.</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 175%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">A instituição da honra já não pertencia àquele mundo habitado por
burgueses, era coisa de uma velha aristocracia que tinha desaparecido. Um
qualquer Conceição Alves, mesmo que Godofredo, não tem honra a defender, até
porque o motivo seria pura e simplesmente irrisório, num mundo em que as
histórias de maridos traídos e mulheres adúlteras seria a norma. Eça liberta o <i>Eros</i>
da sua relação com o sangue e a morte, mas não o faz como um pensador
libertino. Pelo contrário, o importante é outra coisa. Importante é que o
matrimónio não se desfaça, que as amizades permaneçam, apesar da intromissão da
deslealdade, e que as sociedades comerciais prosperem. A honra, essa é uma
coisa que não se deve intrometer no bom funcionamento das instituições
burguesas. Godofredo, apesar do nome, não era um aristocrata. A vida, a
sociedade, o Machado, a Ludovina e o seu coração exigem outra coisa dele,
exigem que não tome a excepção como a regra e não desfaça o mundo
laboriosamente tecido, um mundo apontado à prosperidade e às aparências, para
que a vida decorra segundo a nova visão do mundo, a daqueles que já
substituíram no comando das coisas a velha aristocracia, cujos valores são
agora inúteis. A virtude central não é a honra, mas a prudência, pensada a
partir do cálculo da utilidade dos actos. </span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-24712201122663860492021-03-07T11:38:00.000+00:002021-03-07T11:38:33.517+00:00Jeffrey Eugenides, Middlesex<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhG7cKEJQ1xXHm9mcv_oDsIQnG3bqUjAg1_wY-zg8ai9_DDpSgPL6gJhceA74HoA9uNSBwKi3JzdKbKRE6CduSsq_sK8UyB5plmlPrdSVWl3_nyxiTrEzBrq0_1kjOGlgVd6Bs_Krt9WxM/s1226/Jeffrey+Eugenides+-+Middlesex.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1226" data-original-width="800" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhG7cKEJQ1xXHm9mcv_oDsIQnG3bqUjAg1_wY-zg8ai9_DDpSgPL6gJhceA74HoA9uNSBwKi3JzdKbKRE6CduSsq_sK8UyB5plmlPrdSVWl3_nyxiTrEzBrq0_1kjOGlgVd6Bs_Krt9WxM/w261-h400/Jeffrey+Eugenides+-+Middlesex.jpg" width="326,25" /></a></div><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Publicado em 2002, <i>Middlesex</i>, do norte-americano, de
origem greco-irlandesa, Jeffrey Eugenides, ganhou o Pulitzer de ficção no ano
de 2003. O romance é mercado por duas temáticas identitárias. Por um lado, ele
é situado na comunidade grega que emigrou para os Estados Unidos na sequência
da primeira guerra mundial e, fundamentalmente, dos conflitos entre gregos e
turcos. Não sendo apenas uma resposta à questão <i>quem somos nós?</i>, não
deixa de ser uma exploração da vida dessa comunidade, uma descrição dos seus
valores, tradições e modos de ser, assim como da forma como se vão integrando
na vida americana e alimentam o, e se alimentam do, <i>american dream.</i> É
neste pano de fundo comunitarista, que emerge uma outra interrogação, agora
sobre <i>quem sou eu?</i> O motivo da interrogação não é metafísico, mas
físico, uma deficiência no gene SRD5A2, que codifica a enzima 5-alpha reductase.
O resultado é o nascimento de um rapaz, embora com caracteres sexuais externos
femininos. É isto que acontece ao protagonista do romance. Calliope – nome que
recebeu de baptismo, enquanto rapariga – e Cal, nome que adaptou em adolescente
quando se descobriu como rapaz. É um caso de intersexualidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Algumas leituras da obra tendem a questionar a necessidade
da primeira metade do romance, a sua inutilidade para a questão central que é o
drama da adolescente que se descobre ser um adolescente. A primeira metade é a
narrativa que traz os avós paternos de Cal de uma aldeia grega, mas em
território turco, para os Estados Unidos, em 1922, durante a guerra
greco-turca. É um fresco épico que vai até a 1960, ano em que nasce Calliope. A
questão que se coloca é a de como narrar a acção à distância de um gene
recessivo que vai acabar por se manifestar. O autor fá-lo contando a história
de uma consanguinidade intensa, a qual se inscreve na história dos homens e das
comunidades. Podemos imaginar uma história genética puramente natural nos animais.
No homem, apesar de se poder traçar a história genética dos homens como se
traça a de seres de outras espécies, ela, para lá do discurso científico, é
incompreensível. O drama de Cal não é um drama proveniente de nenhures, mas inscreve-se
na duração, e esta só inteligível através da narrativa. Por isso, Eugenides
conta a história de Eleutherios Stephanides, conhecido como Lefty,<i> </i>e da
sua irmã e mulher Desdémona Stephanides, os avós de Cal. Conta também a de
Milton, filho do casal incestuoso, e de Tessie, os pais de Cal e do seu irmão
Capítulo 11 (uma referência ao capítulo da lei das falências dos EUA e à
propensão do irmão de Cal para levar os negócios a mau porto).</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Uma história de sangue no sangue da história. Em Bithynios, uma
aldeia na Ásia Menor habitada pela minoria grega e de onde vêm os antepassados
de Cal, o casamento entre primos, considerado incestuoso, era uma prática
corrente. Isto significa que a consanguinidade e uma maior concentração de
traços genéticos já ocorriam antes do casamento incestuoso dos irmãos Lefty e
Desdémona. O filho de ambos, Milton, pai de Cal, acaba por casar também com a
filha de uma prima dos pais. Esta história de concentração genética não é pura
história genética, mas está inscrita, no romance, na própria história, no
sangue que a história, no seu papel de negar continuamente as configurações do
mundo humano, faz correr. Os pais de Lefty e de Desdémona morrem vítimas da
guerra entre turcos e gregos. Os filhos órfãos fogem para os EUA do momento em
que se dá o grande incêndio de Esmirna, motivado pelo conflito greco-turco.
Eugenides não deixa de dar uma visão, nas passagens referentes à fuga dos avós
de Cal, do genocídio arménio. Se o autor, que dá uma tenção a esses conflitos
muito localizados, passa muito por cima a segunda guerra mundial, torna a focar-se
na histórica localizada, agora em Detroit, com os seus conflitos interétnicos,
como os motins de 1967, mas também a emergência da Nação do Islão, ou as
condições de trabalho nas fábricas de automóveis. Narra a ascensão e queda de
Detroit. A história de uma desgraça genética precisa da história humana para
ser contada, mas não uma história mundial. É sempre a história local, quase que
se pode dizer paroquial, que é mobilizada. É sempre a história de comunidades
muito precisas e caracterizadas no espaço e no tempo.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">A segunda parte do romance foca-se em Calliope e a sua descoberta
da realidade sexual que lhe coube em sorte. Está-se em meados dos anos setenta
do século XX, ela entrara na adolescência, mas não lhe aparece nem a menstruação
nem se lhe desenvolvem os seios, ao contrário do que acontece às suas colegas
do colégio feminino que frequentava. A revelação deve-se a um acidente. A
narrativa, a partir daqui, concentra-se no processo de reconhecimento da nova situação
e na disputa interior do protagonista sobre a sua condição. Eugenides explora a
tensão entre cultura e natureza na definição do género e parece questionar a
ideia de que o género é uma construção fundamentalmente social. Cal cresceu e
foi educado como rapariga e frequentou um colégio feminino. Toda a construção
do género foi feita no feminino. No entanto, a sua primeira paixão pelo Objecto
Obscuro (uma referência ao filme de Buñuel, <i>O Obscuro Objecto do Desejo</i>),
uma colega do colégio, era tipicamente masculina, de acordo com a sua natureza masculina.
Quando chega o momento de optar, opta de acordo com o sexo genético e não com o
género social, mesmo estando desprovido externamente da genitália masculina.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Se o romance é uma resposta às questões <i>quem somos nós? </i>e
<i>quem sou eu?</i>, essa resposta não se funda numa revolta contra a própria
condição comunitária e pessoal. A comunidade grega de que Cal provém não deixou
de ser uma comunidade grega, mas agora claramente integrada no modo de vida
americano, estabelecendo pontes entre os preconceitos da cultura originária e
os da cultura em que se integram. Uma imagem de integração do sonho americano.
É verdade que a questão racial, mesmo no romance que a trata a partir da visão
preconceituosa da comunidade grega, é uma nota dissonante<i> </i>dessa visão
idílica de uma América integradora. É como se esta fosse acolhedora para aqueles
que a procuram e têm a perspectiva adequada sobre o trabalho e a riqueza, mas
fosse impiedosa para aqueles para ela foram levados contra a sua vontade,
enquanto escravos. Os gregos que fugiram da Europa são agora plenamente americanos,
apesar de ainda serem gregos. Também Cal, ao narrar a sua vida até à assunção
da sua identidade masculina, se mostra reconciliado com a sua situação, tendo
ultrapassado as inquietações psicológicas, nunca estando em causa outras. Não
há qualquer questionamento metafísico e as abordagens da situação circulam
entre o conhecimento científico de natureza genética e médica e a abordagem
psicológica. Cal quando narra a sua história, quase trinta anos depois,
mostra-se completamente reconciliado com a sua natureza. É plenamente homem,
apesar daquilo que nele ainda subsiste de feminino. <i>Middlesex</i> não é um
romance de revolta, mas de reconciliação.</span></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-63081951341273575662021-02-13T14:50:00.002+00:002021-02-13T14:50:55.806+00:00Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlrHJe6FGQjLcmj9AIugMWWicCuEF8geOIXic6QtPjBD3q6SEB6JDuur3TiaF_K5kJT9CbpWprrCWkeOKBXob3deD0gSxD6b6myPIoYFquZ9YbBUrFsMS2W6gN3ekAtMSFsnEqy2tw7vI/s1866/Peter+Handke+-+A+Ang%25C3%25BAstia+do+Guarda-Redes+antes+do+Penalty.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1866" data-original-width="1200" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlrHJe6FGQjLcmj9AIugMWWicCuEF8geOIXic6QtPjBD3q6SEB6JDuur3TiaF_K5kJT9CbpWprrCWkeOKBXob3deD0gSxD6b6myPIoYFquZ9YbBUrFsMS2W6gN3ekAtMSFsnEqy2tw7vI/w258-h400/Peter+Handke+-+A+Ang%25C3%25BAstia+do+Guarda-Redes+antes+do+Penalty.jpg" width="322,5" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Publicado em 1970, o romance <i>A angústia do guarda-redes
antes do penalty</i> é uma das obras mais conhecidas do escritor austríaco
Peter Handke, Nobel da literatura em 2019. O leitor de imediato sente a possibilidade
de carrear alguns pontos genealógicos que se configuram elos de uma corrente
que levam ao romance de Handke. Kafka e Ungar, Broch e Musil, mas ainda Camus,
de <i>O Estrangeiro,</i> ou Sartre, de <i>A Náusea</i>. A obra faz parte de uma
paisagem pesada que parte da literatura europeia foi construindo, num jogo de
espelhos, com a realidade dessa Europa que, no século XX, orgulhosa da sua
civilização material, não teve a contenção necessária para evitar duas guerras
mundiais e um número desmedido de patifarias. Uma paisagem devastada de homens
sem qualidades. A ausência de qualidades é também a ausência de qualificativos.
Os homens são substâncias nas quais a essência se despiu dos acidentes, para
falar à maneira de Aristóteles. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Assim como, na <i>Metamorfose</i>, de Kafka, Gregor Samsa,
um caixeiro-viajante, acorda uma manhã transformado num insecto gigante, também
é subitamente que Joseph Bloch, um mecânico, se vê despedido da empresa onde
trabalha. Não é claro, todavia, se ele foi efectivamente despedido ou se julgou
tê-lo sido. Esse é, na narrativa, o primeiro sinal de uma desvinculação
ontológica entre o sujeito e a realidade social, na qual se inclui a sua
própria realidade de ser social. A referência à doutrina de Aristóteles pode
não ser despropositada. Desvincular-se dos acidentes – das qualidades que não constituem
o cerne da identidade – deixa os homens reduzidos à sua essência, mas
estranhamente a perda do acidental produz uma profunda alienação, em vez de
glorificar aquilo que é. O que conduziu Bloch a esse estado não se sabe. Duas
qualidades acidentais são referidas, mas ele, no tempo da narrativa, já as
perdeu. A de ser um mecânico e, também, a de ter sido um guarda-redes conhecido
de uma equipa de futebol, também ela conhecida. Durante a narrativa, contudo,
ele já está despido dessas qualidades. Perdido o emprego, Bloch entregou-se à
pura errância, a deambular por Viena, primeiro, e depois numa outra cidade, na
fronteira sul do país.</span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Desqualificação e errância são sintomas do estranhamento, da
alienação. Um descomprometimento emerge na atitude do antigo guarda-redes. Descompromisso
com os lugares, as pessoas, com os próprios actos, sentimentos e situação
existencial. Nessa errância, comete um homicídio. Não porque tivesse motivo
algum para o cometer. Aconteceu estrangular uma rapariga que trabalhava na bilheteira
de um cinema, com quem tinha ido para a cama. No seu acto não houve qualquer
finalidade ou motivo. Dir-se-ia que não foi uma acção, mas um mero acontecimento,
idêntico a uma avalanche ou a um raio. Esse evento não teve qualquer
ressonância interior. Reduzido à sua pura essência, Joseph Bloch não apenas
perdeu os acidentes como não o move qualquer objectivo. É isto que transforma
os seus actos em puros processos naturais. O estranhamento do mundo social, dos
jogos de linguagem e das convenções rituais conduz à pura naturalização do indivíduo.</span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">A própria personagem, por vezes, chega a uma consciência próxima
do seu estado. Quando suspeita que certos jogos de linguagem – frases ou
conversas – não são sérios, não passarão de uma brincadeira. O mesmo se passa
com certos acontecimentos ocorridos nas interacções sociais. Esta desconfiança
para com a seriedade da vida social ou da linguagem é um sinal da desvinculação
com todo o mundo ritualizado da cultura humana, com os seus jogos linguísticos
e representações sociais. Nada daquilo pode ser sério. A autenticidade de um
ser puramente natural está aquém do jogo e da representação teatral. Como se
sabe, jogo e representação são elementos estruturantes da vida em sociedade, fundamentos
do que se convencionou chamar cultura. Joseph Bloch não transcende o social e o
cultural na imersão mística no mundo do espírito, mas retorna ao estado de
natureza. O romance pode ser lido como uma experiência mental ou, melhor, um
ensaio sobre o que seria um homem que decaísse do estado social para o estado
natural. O estado natural não é um lugar de emancipação, mas de degradação.
Toda a queda se inscreve num movimento de degradação, e a história de Joseph
Bloch é também a história de uma queda.</span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span style="line-height: 175%;">Cair na natureza é também cair fora da história. Isso
explica – talvez mais do que o suposto experimentalismo do autor – o tipo de
narrativa escolhido por Handke. Sem intriga e sem desenlace. Por exemplo, o
leitor percebe que a polícia começa a aproximar-se do assassino da rapariga da
bilheteira, mas isso não tem qualquer impacto no romance nem no destino de
Bloch. Na natureza não há acções e não há história, apenas acontecimentos. A
narrativa tenta ser uma descrição exaustiva de acontecimentos, mesmo que estes
tenham aparência de acções humanas. Isto conduz ao papel do narrador. Se há um
romance em que se sente a presença obsessiva do narrador é neste. Narrado na
terceira pessoa, <i>A angústia do guarda-redes antes do penalty</i> é um
exercício literário de registo minucioso de ocorrências, como se o narrador
omnisciente redefinisse a natureza dessa omnisciência. Ele é omnisciente não
porque sabe o desenrolar e o desenlace da história que está a contar, mas
porque regista de forma hiperbólica a factualidade. No universo narrado – um universo
natural e não um mundo humano – não há uma história para contar, mas factos
para registar, numa espécie de relatório descritivo de um narrador obsessivo
com a exactidão do que acontece.</span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-5384528698711449722021-02-04T12:10:00.003+00:002021-02-05T00:15:16.376+00:00Afonso Cruz, Flores<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1wlEl0PdLwsyHlkDxSAsRqj6DPuM7YjIzQ8pd6dyGne4dKiDvLd8A0-bq6iZz44W9qHKE5uMhxi9QfDxty39u-kP_feB0yhsDpUlOGLVAy-BFLHrk8vPdu3jpHpFKa7MGHybO4fM_Er8/s1542/Afonso+Cruz+-+Flores.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1542" data-original-width="1004" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1wlEl0PdLwsyHlkDxSAsRqj6DPuM7YjIzQ8pd6dyGne4dKiDvLd8A0-bq6iZz44W9qHKE5uMhxi9QfDxty39u-kP_feB0yhsDpUlOGLVAy-BFLHrk8vPdu3jpHpFKa7MGHybO4fM_Er8/w260-h400/Afonso+Cruz+-+Flores.jpg" width="325" /></a></div><div style="text-align: justify;"><p class="MsoNormal"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O romance de Afonso Cruz, <i>Flores</i>, foi publicado em
2015 e obteve o Prémio Fernando Namora em 2016. O autor, com vasta bibliografia
e múltiplos interesses, é um dos mais importantes da geração que está na casa
dos cinquenta anos. A obra, uma narrativa na primeira pessoa, lida com o
problema da identidade, a do vizinho do narrador e, de forma especular, com a
do próprio narrador, um jornalista. O trabalho sobre estas duas identidades
segue, todavia, processos diferenciados. A do vizinho do narrador é procurada
através de um inquérito que combina as técnicas do jornalismo e as da
investigação de detective privado. A busca da própria identidade obedece ao
monólogo interior ou, para ser mais exacto, ao diálogo consigo mesmo,
desdobrando-se o jornalista em duas pessoas, nem sempre as mesmas, que dialogam
entre si. </span></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Casado com Clarisse e pai de Beatriz, o jornalista leva uma
vida autocentrada, um exercício pouco discreto de narcisismo, ao mesmo tempo
que assiste à morte do casamento. Uma morte porque, com o tempo, a relação
perdeu a excitação do primeiro beijo. Entregava-se, para compensar o baixo
nível de adrenalina matrimonial, a umas infidelidades, mais ou menos ocasionais
com uma colega. Ao mesmo tempo acabou por se interessar por um vizinho, Manuel
Ulme. Uma personagem aparentemente deslocada daquele meio. Ulme é um homem de
idade. A certa altura confessa que nunca viu uma mulher nua. Questionado sobre
a situação, diz que se viu não se lembra. Sofrera um aneurisma e o passado
apagara-se. Perdera parte significativa da memória, a que estava relacionada
com a identidade e com o que fizera e lhe acontecera durante a vida. Isso,
porém, não impedia de ser efectivamente um <i>self</i> estruturado em torno de
um conjunto de atitudes e crenças, com as suas idiossincrasias e apreciações do
mundo e, fundamentalmente, da maldade do mundo. </span></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">O romance introduz na realidade uma ambiguidade fundamental
em relação ao peso do passado e da memória relativamente ao que se é no
presente. Manuel Ulme não necessitava do seu passado para ser aquilo que é no
presente. Essa ausência pode assombrá-lo, mas não é uma condição necessária
para conduzir razoavelmente a sua existência na nova condição. Dito de outra
maneira, o romance parece, ainda que de forma não totalmente clara, abrir um
rasgão na sutura que une memória e identidade. A narrativa é atravessada pela
repetição, como se fora um mantra, de uma frase enigmática pelo senhor Ulme: <i>Entremos
mais dentro da espessura!</i> Uma leitura imediata poderá compreendê-la como a
formulação de um desejo de penetrar na névoa em que se tinha tornado o passado. No entanto, não é claro que o seja, pois a frase é um verso de S. João da Cruz. A espessura em que Manuel Ulme deseja entrar pode muito bem ser a autêntica realidade, que ele tenha adquirido a consciência de que o que se chama o real não passe de uma aparência. </span></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Na reconstituição do passado do vizinho, o jornalista, a
partir do que encontra na casa daquele, consegue chegar à aldeia alentejana
onde ele nasceu, descobre que vinha de uma família rica e reconstrói a sua teia
de relações sociais, de amizade e familiares. A identidade que é assim
reconstruída é sempre uma identidade perspectivística e exterior ao <i>self </i>de
Manuel Ulme. Entre louvores e censuras, o jornalista reconstitui a vida do
vizinho, construindo uma imagem contraditória, ao mesmo tempo que perpassa por
um conjunto de cenários do Portugal anterior ao 25 de Abril e, também, do que
veio depois. No trabalho de investigação, descobre-se uma linha de continuidade
entre o antes e o depois do aneurisma, a preocupação com o mal do mundo, com o
facto de este ser palco de um teatro onde a canalhice e a maldade humanas são
sempre as principais protagonistas. Na fase desmemoriada da existência, Manuel
Ulme colecciona notícias de jornais onde se relatam as perversões do homem.
Descobre-se, porém, que já antes o fazia e até com o papel acumulado tinha
construído um gigantesco <i>golem</i> – um ser artificial ligado à tradição
mística do judaísmo, que pode ser trazido à vida – talvez com a esperança de
que este fizesse aquilo que nem os homens nem Deus fazem, dissuadir os homens
do mal. Estava escondido num armazém da aldeia, cuja chave Manuel Ulme trazia
sempre ao pescoço, embora não soubesse para que servia ela. Era a chave da
continuidade entre o antes e o depois da doença. </span></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Este trabalho de investigação com as suas descobertas são o contraponto
das descobertas que o próprio jornalista faz de si e da sua vida. O exercício
fundamental de autodescoberta passa-se na casa de banho no diálogo com o
espelho. Fala consigo mesmo, embora se desdobre em dois. O que está em jogo,
nessas conversas, não é apenas um passado real, mas também um presente e um
futuro desejados. Vê-se como um herói, imagina-se outro de si mesmo, em versão
magnificada. Isso, todavia, é contraposto com decomposição da sua vida conjugal
e da sua vida amorosa em geral. Se Manuel Ulme tinha uma obsessão pelas
malfeitorias da humanidade, ele tinha-a pela ordem. Percebeu que alguma coisa
ia mal quando a mulher não arrumou um dos seus chapéus no lugar, deixando-o
ficar em cima de uma cama, sabendo que ele não suportava essa pequena desordem.
Este pequeno esquecimento era o sinal de que o casamento se desfizera, a
excitação há muito dera lugar à morte do desejo. A saída de casa da mulher e da
filha é, na verdade, o desmentido do seu narcisismo, dessa imagem superlativa
que, diante do espelho, construía de si mesmo. Uma identidade falhada, um <i>self</i>
sem consistência, sem elevação. A fractura da memória de Manuel Ulme pode não
ser decisiva para a existência de um <i>self</i> consistente. A existência de
uma continuidade mnemónica de si está longe de ser uma garantia de uma
identidade sólida e capaz de lidar com a realidade.</span></span></p></div><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8774933232084083614.post-74829073117410707042021-01-29T11:02:00.011+00:002021-01-29T19:45:39.169+00:00Hermann Ungar, Os Mutilados<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXEonFtLEzeguKzBDMso5HVD6htEL8r80zJ6yyq5T1ZkTf0hZjp3xe0viZzC_NLyLEC15zWzZ3tyk56ES3b6HBkhEM0l1SDb88IyBfmitfYHiwCvpSOru3anZy3iqUJS5OdiDGhJIk0DE/s1335/Hermann+Ungar+-+Os+Mutilados.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1335" data-original-width="843" height="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXEonFtLEzeguKzBDMso5HVD6htEL8r80zJ6yyq5T1ZkTf0hZjp3xe0viZzC_NLyLEC15zWzZ3tyk56ES3b6HBkhEM0l1SDb88IyBfmitfYHiwCvpSOru3anZy3iqUJS5OdiDGhJIk0DE/w253-h400/Hermann+Ungar+-+Os+Mutilados.jpg" width="316,25" /></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Hermann Ungar (1893 – 1929) foi um escritor checoslovaco, de
origem judaica e que escreveu em língua alemã. <i>Os Mutilados</i> (1923) é o
primeiro dos seus dois romances. Ungar faz parte de um grupo de escritores
judeus checos organizado em torno da figura de Max Brod e do qual também fez
parte Franz Kafka. A morte prematura do escritor e a natureza tensa e obsessiva
das suas obras, bem como a acção de algumas pessoas influentes nos meios
literários, como o próprio Brod e Willy Haas, terão conduzido ao esquecimento
da sua obra durante largas décadas. Isto, apesar da grande admiração de Thomas
Mann – padrinho do filho de Ungar – e da obra <i>Os Mutilados </i>ter tido a
honra de ser uma das primeiras a ser queimada<i> </i>pelos nazis, como exemplo
de arte degenerada. Influenciado pelo expressionismo alemão e pela psicanálise,
o romance é uma descida ao inferno, isto é, às obsessões e nevroses que habitam
as pessoas e as mutilam.</span></span></div><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Se se entender por mutilação a amputação de um membro, então
apenas uma das personagens, Karl Fanta, é verdadeiramente um mutilado. Isto,
porém, contraria o plural presente no título do romance. Todavia todas as cinco
personagens em torno das quais gira a intriga – Franz Polzer, Klara Porges,
Karl e Dora Fanta e o enfermeiro Sonntag – são, todas elas, de uma maneira ou
de outra, mutiladas. A personagem central, Franz Polzer, é mutilada
espiritualmente. A morte prematura da mãe, a vida numa casa pobre onde o pai,
um pequeno merceeiro de província, e a irmã deste exerciam sobre ele uma
violência contínua, assim como a suspeita de que o pai e a tia se entregavam a
uma relação incestuosa, tudo isso criou em Polzer o temor não apenas pelo sexo
feminino como pela espontaneidade da vida, com as suas incertezas e as suas
ameaças. Estas são interiorizada como um caos, ao qual ele deveria fugir, através
de uma vida regulada até aos ínfimos pormenores.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Quando o romance começa, Polzer é empregado num banco há
dezassete anos, desde precisamente os 20. Amigo de infância de Karl Fanta, o
filho de um rico judeu, acompanha este para a universidade, por generosidade do
pai de Karl. Quando este, porém, fica doente e tem de abandonar os estudos, o
velho Fanta cessa o apoio a Franz, empregando-o num banco. A vida de pequeno
funcionário burocrático ganhou aí todo o sentido, através da organização
meticulosa tanto dos horários – nunca faltou ao emprego, nunca chegou tarde –
como do próprio trabalho que tem de desempenhar. O que mais teme este <i>homem
sem qualidades</i> é o desconcerto desta realidade. O seu principal desiderato
é manter-se invisível na rotina da grande organização. Vive num quarto alugado em
casa de uma viúva, Klara Porges. É o único hóspede de uma mulher sexualmente
demasiado activa e que acabaria por violá-lo, por lhe impor uma sexualidade que
ele queria a todo o custo evitar. A sua fraqueza psicológica reflecte-se na sua
incapacidade de resistir pela força ao desejo vulcânico da viúva. No entanto,
não é apenas a imposição física da mulher que o dobra. A certa altura, Klara
espanca-o com um cinto, numa cena de sadomasoquismo que remete para e
experiência infantil de Polzer, quando era sovado pelo pai ou mesmo pela tia. A
rejeição do sexo feminino funde-se na complacência para com a dominação e a
submissão que, desde muito cedo, se inscreveram no seu inconsciente.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Quando o mundo de Polzer começa a desestruturar-se – a partir
do momento em que a sua amante forçada lhe destrói a imagem de um santo, a
única herança da mãe, e que ele tinha como o ponto no mundo de onde a ordem
emanava – ele retoma relação com o seu amigo de infância, pelo qual terá
sentido uma atracção homoerótica, assim como acontecerá pelo filho adolescente deste,
Franz Fanta. Karl Fanta, devido a uma terrível doença, fora amputado das duas
pernas e prepara-se para ser amputado de um braço. A sua condição existencial
leva-o para um universo de suspeições acerca da vida da mulher, Dora, e das
suas supostas intenções de o matar. Karl impõe uma relação de sujeição e
arbítrio à mulher e tudo o que ela faça, seja tratar-lhe das feridas
purulentas, seja ceder aos seus caprichos sexuais, apenas serve para confirmar
a convicção de Karl de que a mulher conspira continuamente contra ele. A vida
de ambos é um inferno, a dele porque a amputação física lhe destrói o discernimento
e a razão, a dela porque sofre o exercício de um poder despótico a que não pode
resistir.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Comportamentos obsessivos e neuróticos misturam-se com
sexualidades pervertidas pela vida. Esta surge como o lugar onde não existe
livre-arbítrio, capacidade para os agentes escolherem. Polzer não escolheu
aquele pai e aquela tia que o maltrataram, nem sequer escolheu a viúva para
amante. Tudo se lhe impôs. Também o rico Karl Fanta não escolheu a doença que o
corrói. <i>Os Mutilados </i>é também um romance sobre a retracção do espaço de
liberdade na vida dos homens. O essencial das suas existências não resulta de
escolhas livres, mas consiste em coisas que lhes acontecem, como acontece uma trovoada
ou um tsunami. É nesta ambiência que emerge ainda uma quinta personagem
fundamental, o enfermeiro Sonntag, contratado para cuidar continuamente de
Fanta. Antigo magarefe que não suportava a profissão, torna-se enfermeiro ao
mesmo tempo que se converte a uma visão radicalizada do cristianismo, tomando a
vida como o lugar de uma expiação contínua. A expiação resulta de uma
revivescência incessante – uma revivescência obsessiva – dos actos pecaminosos,
numa inversão da proibição bíblica de olhar para trás dada à família de Loth.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 175%;"><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">Se o que acontece com Karl Fanta e Franz Polzer não resulta
de escolhas livres, se o mesmo se passa com Dora e a própria Klara Porges, que
não escolheu ficar viúva nem sequer a sexualidade com que é dotada, uma
possibilidade de introduzir a religião seria a de vincar o seu carácter
emancipatório, a sua luta contra a submissão que o pecado impõe aos homens.
Libertar os quatro do passado, fazer com que eles não se transformem estátuas
de sal, tal como aconteceu à mulher de Loth. A intromissão da religiosidade
pervertida de Sonntag é, claramente, a negação dessa possibilidade. O retorno
contínuo da consciência ao passado, ao mal como forma de expiação. Isso
significa, porém, que o expiador nunca encontrará o alívio da sua consciência,
como se a remissão do mal fosse impossível. A mutilação emerge assim como o
acontecimento em que o mal triunfa irremissivelmente sobre o bem e a vida é o
inferno, esse lugar de expiação infinita.</span> </span></p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p><p></p>Jorge Carreira Maiahttp://www.blogger.com/profile/09954567003274461455noreply@blogger.com0