sábado, 29 de outubro de 2022

Ford Madox Ford, Some Do Not

O romance Some Do Not, publicado em 1924, é o primeiro da tetralogia Parade’s End, de Ford Madox Ford, um dos mais importantes escritores modernistas ingleses. Aparentemente, a tetralogia teria como objecto a primeira guerra mundial. É reconhecidamente um dos grandes monumentos literários provenientes da experiência traumática desse acontecimento que levou à morte uma geração de jovens europeus. Contudo, pelo menos no primeiro romance, a guerra é um assunto distante, que por vezes aflora não nela mesma, mas nas consciências das personagens. O que está em jogo, na trama narrativa, será quase um exercício filosófico, não porque o romance tenha um carácter especulativo e aborde problemas teóricos, mas porque é, na verdade, uma experiência de pensamento, como o são a Alegoria da Caverna, de Platão, ou a Hipótese do Génio Maligno, de Descartes. Não tem, todavia, finalidade de construção conceptual, como as referidas experiências, mas existencial. Apesar de marcadamente orientada para a captura da vida no seu fluir, esta experiência de pensamento não deixa de partilhar com as referidas uma preocupação com a distinção entre aparência e realidade, um cuidado com a verdade. Trata-se de transplantar um homem do século XVIII, Christopher Tietjens para as primeiras décadas do século XX. Não que se esteja perante um romance de ficção científica, em que se faz acordar alguém nascido num passado já remoto num tempo presente. O caso é outro. Christopher Tietjens, o último tory, é um homem cujos valores se pautam pela solidez moral dos gentlemen século XVIII. Pertence a uma família de ricos terratenentes, chegada a Inglaterra com Guilherme de Orange, em finais do século XVII, na sequência da Revolução Gloriosa.

O romance divide-se em duas partes. Na primeira, centra-se num fim-de-semana que vai ter importantes consequências tanto para Christopher como para o seu amigo Vincent Macmaster, um escocês, pertencente a famílias pobres. Ambos foram colegas de faculdade e trabalham agora como estatísticos para o governo de Inglaterra, embora o escocês tenha pretensões em transformar-se em crítico de arte, tendo acabado de publicar um pequeno livro sobre o pintor Dante Gabriel Rossetti, um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, um movimento artístico do século XIX. O primeiro parágrafo da obra é um retrato do mundo ordenado anterior à primeira grande guerra: Os dois jovens – ambos pertenciam ao funcionalismo público inglês – iam sentados numa carruagem de comboio perfeitamente equipada. As correias de couro das janelas eram virginalmente novas; os espelhos debaixo dos porta-bagagens estavam tão imaculados como se tivessem reflectido muito poucas coisas, o tapete acolchoado, de formas regulares, mas luxuosas, era escarlate e amarelo, com pequenos e intrincados motivos de dragão, desenhado por um geómetra de Colónia. O compartimento cheirava leve e higienicamente a verniz; o comboio circulava com tanta suavidade – recordou Tietjens ter pensado – quanto a dos títulos do tesouro da coroa britânica. Viajava depressa, mas se tivesse balançado ou saltado ao passar sobre as juntas dos carris, salvo na curva de Tonbridge ou na mudança de agulhas em Ashford, onde eram permitidas essas excentricidades, Tietjens estava seguro de que Macmaster teria escrito à companhia. Talvez mesmo ao Times. É este mundo de uma ordem geométrica e de uma moral rigorosa que se encontra já em diluição.

É no campo da sexualidade que emerge a dissolução dos valores e da velha ordem do império britânico. Tietjens mostra a Macmaster uma carta de Sylvia Tietjens, uma católica, que tinha trocado o marido, o próprio Christopher, por um major, do qual se fartou em pouco tempo. Pedia para regressar a casa. Durante o fim-de-semana, Macmaster conhece Mrs. Duchemin, também ela escocesa, mulher de um clérigo enlouquecido, proprietário de quadros pré-rafaelitas, com a qual inicia um caso que conduzirá ao casamento, no dia a seguir ao óbito do senhor Duchemin. Também Christopher trava conhecimento com a jovem sufragista Valentina Wannop, filha de um casal amigo do pai, e com a qual estabelecerá uma relação amorosa, mas nunca consumada durante o tempo desta primeira narrativa. É neste ambiente, já marcadamente sexualizado, que Christopher vai pôr à prova os seus sólidos princípios de cavalheiro, tanto na aceitação do retorno da mulher, como na preocupação com a reputação dela. Um cavalheiro não se divorcia. Se a mulher quiser o divórcio, concedê-lo-á, mas não dará qualquer passo que possa prejudicar a imagem da mulher, uma rica e, aparentemente, frívola socialite, sexualmente promíscua, que o odeia. Têm um filho, um acaso, embora não seja claro se Christopher é ou não o pai da criança, embora as provas existentes sejam fortes a favor da sua paternidade. Graham Greene considera que Sylvia possui o pior carácter do romance moderno.

À hipersexualização do ambiente, pois a promiscuidade da mulher é apenas um sintoma do espírito do tempo, responde Christopher com o seu desejo de ser um santo anglicano. À libertinagem reinante, responde: Eu defendo a monogamia e a castidade. E que não se fale mais nisso. Não é, todavia, esta defesa da castidade e da monogamia que leva a que a mulher, Sylvia, o odeie. É o facto de ele ser tão sólido e de estar de tal maneira fundado nos seus valores de pertença a uma velha família terratenente que a deixam fora dela. Ainda por cima, ele é servido por uma superior inteligência, com capacidade de não apenas deslindar os enigmas do presente como de prever o futuro, não por possuir qualquer dom profético, mas pela capacidade de cálculos das consequências das coisas que ocorrem. Esta segurança torna-o, num primeiro momento, insuportável para a mulher. Contudo, na segunda parte do romance, passada já bem dentro da grande guerra, quando Tietjens está em casa, depois de uma recuperação de um ferimento de guerra, no qual perdeu parte substancial da memória, de tal como modo que se obriga a ler a enciclopédia britânica, como modo de recuperação da informação perdida, o autor torna manifesto que, apesar de alimentar uma espécie de conspiração contra a honra do marido – e honra aqui tem a ver com as contas em ordem e um comportamento sexual exemplar –, Sylvia está apaixonada por Christopher, na verdade o único homem verdadeiramente substancial que conhece, ela que tem um lato conhecimento dos homens na intimidade.

É a desadequação entre o sentimento manifesto e o sentimento real de Sylvia ou, ainda de uma forma mais clara, entre a imagem que foi criada à volta de Christopher, de um homem devasso, valdevinos, com filhos ilegítimos, à beira da falência, por ser um gastador inveterado, coisa acreditada pelo próprio pai, e a sua realidade de homem moralmente imaculado, contido nas despesas, um cavalheiro em todos os sentidos da palavra. Assim como o ódio de Sylvia esconde uma intensa paixão pelo marido, também a má reputação mascara a verdade de alguém que vive segundo exigentes preceitos de rectidão, de tal modo que o amor que se acendeu entre ele e Valentina permanece por consumar. Entre a aparência e a realidade vai uma longa distância. A verdade é uma outra coisa que não aquilo que é manifesto. Ora, é a solidez, deste último tory, ancorada no passado, num romântico feudalismo, como notou Julian Barnes, que lhe permite, sem exaltações, viver num mundo marcado pela duplicidade, pela mentira, pela libertinagem e pela dissolução daqueles valores sólidos que fizeram da Inglaterra a primeira potência mundial e que se manifestavam inclusive na suavidade com que os comboios circulavam. É ainda essa solidez moral que leva Christopher a voltar para a frente de combate, enquanto facilmente poderia ficar em segurança numa repartição em Londres. Some Do Not significa, na prática, que nem todos são iguais, nem todos se dobram ao espírito do tempo. Por isso, o primeiro romance termina com a partida de Tietjens para França, para a frente de combate.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Dinis Machado, O que diz Molero

Publicado em 1977, O que diz Molero, romance de Dinis Machado, foi quase imediatamente, apetece dizer, um grande sucesso de bilheteira. Não apenas porque há na sua construção qualquer coisa de teatral, o que permitiu uma posterior adaptação à representação no palco, mas também porque há um ritmo cinematográfico exuberante, por vezes sufocante, uma sucessão de imagens vertiginosa, transformadas em texto, de onde os pontos finais estão ausentes durante largos excertos textuais, uma técnica que precipita o leitor a acompanhar a velocidade da produção imagística. Luís Pacheco refere “uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos, mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.” Por outro lado, Eduardo Lourenço sublinha estar-se perante o indício de novas relações entre a literatura contemporânea e uma nova cultura que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos decisivos. Tese, na verdade, bastante discutível, pois não são poucas as passagens textuais que ecoam temáticas que naqueles dias obsidiavam o mundo literário académico em Portugal.

O romance, como uma das suas marcas de modernidade, não apresenta um plot, mas não deixa de ser todo ele movido por uma intriga. Existem nele várias camadas diegéticas. Uma primeira camada é a conversa entre Austin e Mister Deluxe, e que o primeiro vai contando ao segundo, entrecortado por comentários de ambos, sobre o relatório de Molero, a segunda camada narrativa, referente a um rapaz nunca identificado pelo nome, sobre a vida deste, o que terá feito, dito, ouvido, as pessoas com que se terá relacionado, etc., uma terceira camada narrativa, na qual não apenas as palavras como as acções são textualidade. Apesar de não haver plot, o rapaz não deixa de ser um herói – ou, se se preferir, um anti-herói – de uma intriga em que a vida é tomada como um processo de descoberta existencial, uma procura sobre quem é, uma espécie de questionamento metafísico, que em momento algum encontra resposta, pois de princípio ao fim não lhe é dado um nome, nunca deixando de ser o rapaz. Há, contudo, nesta caracterização um excesso de informação sobre essa identidade, pois alia a pertença ao género masculino a uma adolescência – consignada, precisamente, na denominação o rapaz – nunca ultrapassada, já que é sempre desse modo que Molero o refere no relatório. Apesar das peripécias, das viagens e dos amores, ele nunca é o homem.

Alguma crítica refere estar-se perante a fragmentação da subjectividade, que o próprio texto, com a sua natureza fragmentária acentua, apesar de ter, no nível intermédio, um relatório, o que suporia uma coerência, seja jornalística ou detectivesca. O facto de nunca se perceber quem são, na verdade, Austin, Mister Deluxe e Molero, e o modo como é referido, nos diversos níveis narrativos, o rapaz acentuariam essa natureza fragmentária das identidades, que eventualmente se poderiam sobrepor. A questão, porém, é que mais que uma subjectividade fragmentária, se está perante uma subjectividade que, na verdade, nunca amadureceu, nunca entrou na idade adulta, nunca saiu da menoridade culpada. E isto será o mais notável, no aspecto da crítica cultural, que o romance de Dinis Machado torna manifesto. Apesar de uma hiperinflação cultural presente no texto. Serão poucos os lugares comuns do mundo cultural português dos anos setenta do século passado que não estejam referidos no romance e referenciados em o rapaz. Apesar disso, ele não deixa de ser o rapaz. Não se está perante a fragmentação pessoana do sujeito, tão pouco perante uma visão freudiana de um ego em negociação constante com um id ameaçador e um superego veiculador da ordem, mas de um eu eternamente adolescente.

A obra é uma máquina de produção mitológica e são esses mitos que impedem a transição de o rapaz para o homem. Está-se perante duas fontes mitológicas essenciais, as da pequena Lisboa e as da grande Lisboa. Por pequena Lisboa, denota-se o bairro popular. São os mitos localizados numa cultura específica, com os seus heróis e vilões, onde a vida exuberante se estrutura e ganha sentido. São os mitos que constituem o lastro de o rapaz. Por grande Lisboa, significa-se um certo meio cultural lisboeta dominante nos anos setenta, no pós-revolução, mas que viria já de antes. São, agora, os mitos das viagens, do cinema, da cultura, da filosofia, da literatura, do amor ou do sexo, para não falar das mitologias new age emergentes na parte final do livro, mas como se tudo se passasse numa dimensão onírica, mesmo quando se fazem viagens, se escrevem livros, etc. O jornalismo ou a literatura policial fazem a mediação que permite a fusão entre a pequena e a grande Lisboa, entre ambas as mitologias. A sensação que daí resulta, e que contamina o leitor, é que nunca nada é consumado realmente. Viaja-se como se não se viajasse, citam-se autores que não se compreenderam ou não se leram. Na verdade, um exercício de pura adolescência. As mitologias criadas por Dinis Machado, apesar de divertidas, não são meras diversões. São retratos impiedosos de uma certa pequenez – menoridade – envolvida no artifício da referência e da citação, mediadas pela cultura jornalística ou pela literatura policial.

O relatório de Molero, ao qual nunca se tem acesso, a não ser pelos comentários e diálogos entre Austin e Mister Deluxe, com a sua natureza fragmentária, é o relato irónico de um mundo cultural lisboeta que transformava a boémia e a referência superficial aos objectos culturais em voga num mito de alta cultura. O romance entretece uma analogia entre a sua estrutura romanesca e a situação desse mundo cultural da capital. Assim como Austin, Mister Deluxe e o próprio Molero, apesar da sua peregrinação investigativa, nunca conseguem chegar à essência de o rapaz, também esse mundo cultural e boémio lisboeta, apesar da frequência cinematográfica e da referenciação superlativa aos objectos culturais, nunca toca de forma séria nessa alta cultura, que diz admirar, mas que não passa de tema de conversa, entre dois copos, ou de técnica de engate, pois o desejo tem os seus imperativos e há quem só se dispa se for embalado por uma conversa de alto valor cultural. Os lugares-comuns em que o romance abunda são uma estratégia narrativa para tornar patente o irrisório, senão a impotência, dessa comunidade cultural que se acharia a vanguarda espiritual da nação. Na verdade, uma comunidade de velhos adolescentes, mergulhados na menoridade, de que são, eles próprios, culpados, mas parafrasear, mais uma vez, Kant. Um fogo-de-artifício para mostrar que, apesar da seriedade de Pombal, o Iluminismo nunca terá penetrado seriamente por aqui, para tornar manifesto que aqueles que parecem herdeiros desse século das Luzes são, na verdade e todos juntos, uma rapaziada. 

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Michel Houellebecq, Serotonina

Tornou-se um hábito surgir uma espécie de guerra cultural sempre que Michel Houellebecq publica um romance. Serotonina, de 2019, não foi excepção. Em muitas das recensões que se encontram disponíveis na internet parece haver uma maior preocupação em atacar ou defender o escritor do que enfrentar-se com a obra. Fica-se sempre com a suspeita que o que dinamiza os textos são aspectos ideológicos que se presume serem os do próprio autor. Há uma obsessão em identificar narrador e autor. Para além de um certo fogo-de-artifício com uso de expressões que infringem os ditames do denominado politicamente correcto, tais como afirmações misóginas, um elogio a Franco como criador do turismo de massas, embora claramente irónico, considerações xenófobas relativamente a ingleses, holandeses e japoneses, a consideração, pelo narrador, da possibilidade de assassinar uma criança para recuperação de uma amante, ou o ódio visceral à proibição de fumar, a obra sublinha, não muito sub-repticiamente, a tensão entre tradição e modernidade. É uma crítica rude dos valores cristalizados pelo Iluminismo.

Dois núcleos centrais do romance questionam a livre-escolha. Por um lado, na vida sexual; por outro, na vida económica. Em ambas, a liberdade de escolher conduz a um beco sem saída. Aquilo que está em jogo é sempre a tensão entre a existência regulada e a vida deixada ao livre-arbítrio dos indivíduos ou ao jogo livre das forças do mercado. De modo mais preciso, entre a menoridade e a maioridade, para usar o tema do ensaio de Kant sobre o Iluminismo. O que Houellebecq põe a nu é a incapacidade de os indivíduos gerirem a sua própria existência, quando libertos de tutores e entregues a si. O que se manifesta é a falência de cada um em fazer uso da sua razão para dirigir a existência. Camille representava para o narrador, Florent-Claude Labrouste, a mulher com que gostaria de casar, mas a sua liberdade de escolha, a quebra de um compromisso tácito – na verdade, de uma promessa não formulada – levou a que ela se desligasse dele. Na base, um caso de sexo, pouco mais que esporádico. Se se olhar a vida sexual das pessoas que rodeiam Labrouste, a sensação é sempre a mesma. A nossa liberdade sexual é impotente para gerar a felicidade e dar um fim à existência. Esta liberdade não passa de uma licença para suspender os contratos amorosos, o compromisso com o outro e com a vida. No romance, nota-se a nostalgia de um tempo em que o livre-arbítrio dos indivíduos não era sinónimo de licença nos costumes. Nostalgia de um tempo, onde a força das instituições – esses artifícios apolíneos – colmatava a fraqueza dos indivíduos perante os apelos e injunções de Diónisos. A abertura infinita das possibilidades, das possibilidades de busca de objectos para consumação do prazer sexual, é um mal, um gerador de equívocos e de vidas falhadas.

Por outros motivos, também os produtores de leite da Normandia estão em guerra com as instituições que, no lugar de superintenderem e regularem as relações económicas, procurando assegurar a rentabilidade do mundo rural, servem apenas para criar uma legislação que desregulamenta a vida económica, favorece o agro-negócio e entrega os agricultores a esse mar tenebroso do livre-comércio. O mercado acaba por ser visto, ainda que não de forma explícita, como um lugar onde o génio de Diónisos se compraz com a dança das bacantes. Labrouste que teve, do ponto de vista profissional, um papel que deveria proteger a especificidade do queijo da Normandia e, desse modo, a vida económica desses agricultores, descobriu que as intenções de Bruxelas e do governo são deixar morrer, um-a-um, esses homens que asseguravam uma certa tradição agrícola, mantinham viva a especificidade dos lugares e ligavam as comunidades ao fio histórico das gerações. A revolta dos produtores de leite normando não é mais do que a manifestação de uma impotência perante as forças dissolventes da globalização, com a sua natureza niilista.

Perante essas forças que actuam na vida privada e no mudo da economia, não há, na perspectiva do narrador, modo de se lhes opor com êxito. Ele próprio é um sintoma dessa impotência. Nascido numa família das classes médias-altas, com uma boa educação académica, a sua vida profissional não passou de um desastre. Nela não encontrou, a realização que o tempo da universidade lhe parecia prognosticar. A retórica sobre a boa formação como abertura de possibilidades existenciais para uma vida boa não passa de um engano. Os empregos modernos não trazem consigo uma possibilidade de auto-realização. São antes um dos múltiplos motores de alienação, do estranhamento a si mesmo, que estão em acção. A rasura do sentido para a existência conduz à fuga da realidade e à depressão. É este o destino do narrador e protagonista,

Quando Labrouste descobre que a sua namorada japonesa, filha de boas famílias, de quem já estava completamente farto, se entregava a orgias na sua ausência, que incluíam sexo com cães, e tendo a noção de que a sua vida profissional não o conduzia a lugar nenhum, decide desaparecer, perder-se no anonimato da grande cidade, sem comunicar a ninguém. Essa defecção, porém, não tem poder salvífico. Liberta o protagonista de factores que produzem um mal-estar contínuo, mas não fornece força regeneradora. O perigo de suicídio passa a acompanhá-lo. Salva-o o captorix, um medicamento à base de serotonina, um neurotransmissor que regula o humor. Como efeito secundário, porém, causa impotência. O dilema que enfrenta Labrouste é o complemento da reflexão sobre o carácter dissolvente da liberdade sexual. Perante ele, está a escolha entre a vida ou o sexo. Este dilema sobrecarrega a ligação da sexualidade à morte.

Esta é, na verdade, a grande protagonista do romance. Ela está omnipresente e desenha-se como o horizonte para o qual tudo tende, não como resultado de se ter vindo à vida, mas pelo caminho que se desenhou ao viver. Seja a vida mergulhada no prazer sexual, seja o destino dos homens que lutam contra as grandes instituições que os deveriam salvar e proteger, mas que se tornaram suas inimigas. Aymeric, um aristocrata e amigo de Labroust, suicida-se num protesto de agricultores, desencadeando distúrbios, entre a polícia e os manifestantes, com várias vítimas. A certa altura o narrador vê no assassínio de uma criança de quatro anos, filha de Camille, a possibilidade de recuperar o amor desta, ao tirar de cena o pequeno ser que concentra o amor da mãe. Em todo o lado, a morte é a sombra que reina e superintende a vida no mundo ocidental, de onde a promessa na vida eterna desapareceu da consciência dos indivíduos. Essa promessa era o princípio de esperança que orientava, nas sociedades estruturadas pré-modernas, a existência dos homens, dando-lhes um sentido para a vida e para a morte. A morte desfez-se da promessa numa outra vida e Houellebeccq compraz-se em tornar manifesto ao leitor o mundo em que apenas a morte é rainha.