terça-feira, 20 de setembro de 2022

Italo Svevo, Senilidade

Publicado em 1898, o romance Senilidade, de Italo Svevo, é o segundo da sua vida de escritor. A publicação é feita em folhetins no jornal de Trieste L'Indipendente. Assim como o primeiro, Uma Vida, este é completamente ignorado pela crítica. De tal modo que o autor toma a decisão de abandonar as ilusões literárias. Só passados 25 anos, em 1923, volta a publicar um romance, o último, A Consciência de Zeno. Há diversos motivos para a indiferença original em relação aos primeiros romances de Svevo. Não seria um cultor exímio do italiano. Movia-se num ambiente linguístico marcado pelo triestino – um dialecto do véneto, uma língua românica, mas com consideráveis diferenças do italiano – e pelo alemão. Por outro lado, os seus romances tinham já uma inclinação marcadamente modernista, afastando-se das escolas realista e naturalista. O seu carácter inovador poderá ser também uma razão decisiva para o desinteresse com que foram acolhidos. O grande defensor de Svevo foi James Joyce, que o conheceu quando esteve em Trieste, onde lhe ensinou Inglês, e reconheceu naqueles romances o seu valor literário.

A personagem central da narrativa é Emilio Brentani, um escritor falhado, apesar de o seu primeiro, e único, romance ter sido bem acolhido e de lhe ter dado uma certa aura de intelectual e, com o passar dos anos, alguma autoridade nos meios cultos da cidade, pelos menos era isso o que ele imaginava. Tem 35 anos quando se passam os factos que compõem a narrativa. Não é propriamente um velho, embora a senilidade que está presente no título da obra se aplique ao seu comportamento amoroso. O romance explora a relação do eu, de Brentani, com a realidade, tanto através do conhecimento como da acção. Está-se perante a análise do processo de falência cognitiva e volitiva do sujeito. A Idade Moderna começa, no século XVII, com a afirmação do sujeito como fundamento do conhecimento, de um sujeito que procura as evidências como forma de evitar as ilusões e, desse modo, encontrar a segurança e a correcção na acção. Brentani é o contrário disto. Ilude-se sobre a realidade e age de forma desadequada nela.

Emilio, apesar das suas aspirações literárias, sempre adiadas, necessita de trabalhar para se sustentar, bem como à sua irmã Amalia. É escriturário numa companhia de seguros. Há neste facto duas curiosidades. Em primeiro lugar, parece ser uma premonição casual de duas grandes figuras da literatura europeia, que eram escriturários e, também, escritores. Franz Kafka e Fernando Pessoa. A segunda curiosidade, não é casual como a primeira. Brentani quer ser escritor, mas não passa de escriturário. Entre o ideal e a realidade há uma diferença assinalável, aquilo que ele é não passa de uma sombra daquilo que deseja. Esta tensão entre o ideal e o real envolve por completo a personagem. O caso é uma história de amor aparentemente trivial. Inexperiente das coisas amorosas, Emilio conhece a jovem Angiolina Zarri. Teria chegado a sua hora de conhecer a felicidade. Contudo, a rapariga é o contrário do pretendente. É exuberante e tem uma vida amorosa agitada, cheia de casos, muito longe do anjo que, a certa altura Emilio, quis ver nela.

A sua inexperiência condu-lo a comportar-se como alguém senil perante uma jovem amante, que o trai sem escrúpulos. A paixão amorosa conduziu o protagonista a um afastamento da sua irmã, de quem cuidava, e do seu principal amigo, o escultor Steffano Bali. Este, ao contrário de Brentani, não se ilude com a realidade e insiste para que Emilio não se deixe envolver, que se divirta, mas que não dê mais importância ao caso do que a de uma simples aventura, como aquelas em que ele se envolve. Svevo acaba por traçar dois tipos contrapostos de homem, nas figuras dos dois amigos. Steffano vivido, saudável, afirmativo, apesar de a sua carreira de escultor não ser particularmente sucedida, apreciador da vida, pouco dado a devaneios românticos. É o homem que na vive na realidade e a olha com uma mistura de cinismo e complacência. Emilio é inexperiente, pouco saudável, incapaz de uma verdadeira afirmação de si, temeroso e propenso, a meio da vida, a deixar-se envolver numa fantasia romântica, que tem por contrapartida o mergulho nas águas pantanosas do ciúme. O primeiro é o homem do real, pés na terra, o segundo é o do ideal, um subproduto da cultura romântica. Por outro lado, também no campo feminino encontramos a mesma diferença entre a saudável, exuberante e bela Angiolina e a doente, sofredora – apaixonou-se, também ela, pelo indiferente amigo do irmão – e feia Amalia. O que emerge da obra é que aqueles que sofrem são vítimas de si mesmos, da sua deficiente apreciação tanto de si, como da realidade em que vivem.

Dois traços da narrativa são indicadores de se estar já perante uma obra de ruptura. Por um lado, o foco não na realidade social ou numa pretensa descrição científica da vida social, mas na complexidade psicológica das personagens, no modo como apreendem a realidade e aquilo que as motiva nas trivialidades da vida quotidiana. Por outro, o papel do próprio narrador (narrador na terceira pessoa) que constrói as personagens e, ao mesmo tempo, vai intervindo na sua desconstrução, mostrando o pensamento e a acção de Emilio a partir do ponto de vista deste, mas acompanhando essa manifestação com subtis comentários que tornam patente a equivocidade em que o protagonista está mergulhado. Constrói um herói que não passa de um anti-herói. Na verdade, um zé ninguém atolado numa compreensão nebulosa e de pouca vitalidade da realidade. Por fim, saliente-se o modo como a temática do amor é usada. Não se trata de um romance de amor, de um amor falhado, mas de um romance que usa o amor como revelador daquilo que as personagens são. O amor não tem, na obra, um valor intrínseco, mas puramente instrumental. Steffano e Angiolina percebiam-no e eram saudáveis. Emilio e Amalia, cada um a seu modo, erigiam-no como um valor em si mesmo, o que os conduziu à derrota existencial, revelando a sua fraqueza vital e, também, moral. Só os fracos e doentes se apaixonam. 

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