quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Mário Ventura, O Reino Encantado

Publicado em 2005, o romance O Reino Encantado é o último de Mário Ventura, que morre no ano seguinte. A obra combina dois interesses distintos. Por um lado, a atenção despertada por dois episódios, ocorridos, em 1819 e 1838, na região de Pernambuco, Brasil, à volta de seitas sebastianistas. Por outro, mais que uma reflexão sobre a condição do trabalho de romancista, está-se perante uma descrição do modo como o próprio romance se vai compondo, acabando, nas próprias palavras do escritor, numa entrevista na época da publicação, por ser uma motivação narrativa mais pesada do que os acontecimentos ocorridos, há muito, no Brasil. Uma pista possível de leitura do romance pode ser aquela que explora a tensão entre a natureza precária do artista e do seu trabalho e a crença fanática dos adeptos sebastianistas. Uma tensão entre o relativismo da construção artística e o absoluto de crenças absurdas e inquestionadas, que se tornam o horizonte existencial de gente à deriva na vida.

O ponto de partida do romance é, segundo o narrador, a leitura de um pequeno excerto – não chega a 30 linhas, nas quais se descrevem factos e se faz reflexão ideológica sobre eles – do livro A Evolução do Sebastianismo, de João Lúcio de Azevedo, publicado no ano de 1918. O caso de um destes episódios ter conduzido à prática de sacrifícios humanos e, também, a uma repressão militar não pouco violenta, assim como a imprecisão daquilo que Azevedo contara no seu livro, terão obsidiado a imaginação do narrador, o qual é a personagem principal da obra, e terão acendido o desejo de escrever um romance sobre o assunto. Grande parte do livro narra o processo de construção do romance. Este processo começa com um vislumbre das relações no meio literário da época, dos jogos de poder e vingança, do uso do sexo como pedra de arremesso entre escritor e crítica. A escrita entrelaça aspectos da vida pessoal do protagonista, o desaire do casamento, as relações com as mulheres, etc., e a busca, em Portugal e, fundamentalmente, no Brasil, de materiais que permitam compreender os nebulosos acontecimentos ocorridos no século XIX, pouco antes e pouco depois da independência do Brasil.

O narrador mostra-se, em primeiro lugar, na sua precariedade moral. Por exemplo, de alguém que necessita de se vingar de uma crítica desfavorável. O que deixa, no romance, pelo menos um traço questionador da relação entre arte e ética. O escritor, para o ser, não é, necessariamente, uma figura ética exemplar. A qualidade da arte não dependerá da natureza moral do autor, mas do domínio dos próprios aspectos formais da arte. Em conexão com esta relatividade moral do artista surge uma outra, a da própria consistência dos materiais que utiliza na construção das narrativas. O que coloca um problema interessante sobre a relação entre arte e verdade. A preocupação aparente do narrador-protagonista é encontrar informação fidedigna sobre um episódio ocorrido há quase duzentos anos. Ainda por cima, de um episódio real, mas mal conhecido, que terá despertado pouco interesse dos historiadores, mas que interessou escritores como José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Ariano Suassuna (Pedro do Reino). Um leitor ingénuo poderá pensar que essa preocupação está ligada à busca da verdade histórica. O conhecimento factual dos acontecimentos não visará estabelecer uma verdade histórica, mas poderá dar um contributo para a verdade narrativa, isto é, para que a narrativa possa patentear um módico de verosimilhança que permita ao leitor suspender a descrença sobre aquilo que está a ler. É esta busca da informação, como se fosse uma investigação jornalística, que possa conduzir à verdade narrativa que é mostrada como o trabalho do romancista, sujeito às peripécias das fontes, aos acidentes da fortuna, à disponibilidade dos outros. À fragilidade moral do escritor soma-se a fragilidade dos materiais com que trabalha.

A parte final do romance, efectivamente, ficciona os acontecimentos de Pedra Bonita, assim se chama o local onde ocorreram os episódios relatados. A crença do retorno de D. Sebastião, que estaria ali encantado, à espera de voltar à existência, para trazer a justiça aos que sofrem, encontrou um número significativo de seguidores, entre pessoas perdidas na vida. Um enorme acampamento reunia os sebastianistas, que viviam na expectativa da vinda do rei ajudados por uma beberagem alucinogénia. Até que, com o intensificar das emoções e a manipulação dos dirigentes, se dá um passo decisivo em direcção às práticas arcaicas do sacrifício humano, a estratégia definitiva para desencantar o rei, trazê-lo à vida e, com ele, as vítimas sacrificiais. Então, D. Sebastião distribuiria pelos crentes as imensas riquezas de que seria depositário. É este episódio que Mário Ventura descreve, tentando traçar as motivações que conduzem a crenças tão absurdas, quanto absolutas, que impeliam as próprias mães a entregarem os seus filhos para sacrifício.

A tensão entre a descrição do trabalho do escritor e a dos trágicos acontecimentos pode ser vista como uma reflexão sobre o papel da arte, e da arte do romance, em particular. O carácter absoluto que as ideias – mesmo as mais absurdas ou, de preferência, as mais absurdas – podem tomar exige uma desconstrução. Esta não poderá ser a análise e a contraposição de outras ideias, a substituição de crenças infundadas por outras que encontrem fundamento. O fanático é incapaz de um olhar crítico sobre as ideias que o possuem, pois de uma real possessão se trata. A arte tem esse poder de mostrar que tudo o que é humano é relativo, marcado pela incerteza, construído pelas virtudes e pelos defeitos dos homens. A filosofia e a ciência poderão opor às ideias absurdas da superstição ideias fundamentadas, mas estas não tocarão no coração e na sensibilidade do homem possuído pela certeza. Só a arte pode, explorando o sentimento e a sensibilidade, abrir um frágil caminho ali onde as crenças se petrificaram e se tornaram uma ameaça existencial.

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