sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ernst Jünger, Eumeswil

O romance Eumeswil foi publicado em 1977, tinha Ernst Jünger 82 anos. Pode ser visto como um repositório das principais crenças do autor em relação ao indivíduo, à sociedade ocidental, à política, ao estado do mundo. Contudo, o centro nevrálgico da obra é uma meditação romanesca sobre o destino de um espírito aristocrático num mundo que deprecia os aristoi (literalmente, os melhores em grego clássico) e vive para a satisfação dos desejos e o cuidado dos temores do demo. Qual será o comportamento possível, num ambiente político marcado pela democracia liberal, no qual as concepções de bem se privatizaram nas consciências, para acabarem soterradas na submissão à volubilidade do desejo, às pulsões inferiores, aos interesses materiais? Esta meditação é colocada, contudo, num tempo e num espaço exteriores à sociedade contemporânea em que Jünger escreveu, a República Federal Alemã, nascida da queda do nazismo e da secessão da República Democrática. O tempo é o de um futuro indeterminado, época posterior a uma catástrofe de que não são dados a conhecer os contornos, mas que produziu significativas reorganizações do mundo, se comparado com o do século passado, ou mesmo do actual. Também o espaço político, a cidade-estado de Eumeswil, não deixa de ser um território indeterminado para os conhecimentos actuais, apesar de situada no Norte de África. O romance apresenta uma tonalidade, embora moderada, de ficção científica ou de romance de antecipação, mesmo do ponto de vista tecnológico.

No centro da narrativa, encontra-se Martin Venator, um jovem historiador, proveniente de uma família de historiadores. Para além desta sua ocupação académica, Venator consegue o lugar de barman ou camareiro nocturno junto do Condor, o tirano que governa a cidade-estado. A estranha opção do historiador, aliás recomendada pelos seus mestres (o historiador Vigo, uma encarnação de Giambattista Vico, e o filósofo Bruno, outra reencarnação, agora de Giordano Bruno), tem como finalidade poder observar de perto o próprio poder. A ocupação de barman é uma espécie de trabalho de pesquisa, quase à maneira do método etnográfico utilizado na Antropologia. Uma descrição de uma pequena sociedade – isto é, do círculo restrito do poder. A sua aparente finalidade será a de conhecer o estilo de vida desse grupo e a sua cultura. Um trabalho de campo. Esta ocupação na esfera do poder foi sempre mal vista tanto pelo pai como pelo irmão, também eles historiadores, mas adversários políticos do tirano, adeptos daquilo que, no romance, é denominado como os tribunos. A vida política de Eumeswil balanceia entre tiranos e tribunos, percebendo-se que o tipo de regime muda fruto de golpes mais ou menos violentos.

As palavras usadas por Jünger não são menos equívocas do que o espaço e o tempo da narrativa. Venator reconhece no Condor não um déspota, não um ditador do século XX, mas um tirano, como Pisístrato, que figura nas listagens dos Sete Sábios. Ou, então, como os tiranos da tragédia clássica, talvez como Creonte da Antígona. O Condor não é um déspota iluminado, mas um tirano compassivo, que interfere o menos possível na vida privada dos indivíduos. Também a designação de tribunos, para os oficiantes do regime alternativo, contém diversas camadas semânticas. Neles, pode-se ouvir o eco dos tribunos da plebe, na antiga Roma, mas também o do orador público, marcado pela eloquência, enfim, o demagogo, ou o que hoje se costuma denominar por populista. Uma linha de interpretação plausível dos tribunos é vê-los como os políticos dos regimes democrático-liberais. Apesar do seu íntimo descomprometimento político, é clara a preferência de Martin Venator pelo regime do Condor, cujo comportamento é o de um aristocrata que, na perspectiva do narrador, é menos invasivo da vida das pessoas do que os políticos liberais que, pela trama da legislação e da demagogia, acabam por prender nas redes do poder as liberdades individuais.

Um dos temas do romance é o conflito com o pai. Não se trata do habitual conflito edipiano, em que o filho deseja a morte do pai para ficar com a mãe. Estamos perante uma inversão da narrativa freudiana. É o pai que quer a morte do filho e não tanto pelo desejo de assegurar a mulher – no caso, a amante – para si, mas porque um novo ser incomodava os seus interesses. Martin nasce contra a vontade paternal, que preferia que tivesse sido abortado. Este conflito com o pai é usado simbolicamente como denúncia do carácter mortal das opções liberais, da livre escolha. O pai, um adepto dos tribunos, não hesitou em querer suprimir uma vida nascente, o que não aconteceu apenas pela determinação da mãe. A forma como Martin se refere ao pai e ao irmão (na verdade, meio irmão, porque filho de mãe diferente) é sempre irónica. Apesar de não gostar nem de um nem de outro, nunca deixava de cumprir os seus deveres familiares, como se estes fossem fruto de uma missão, mas não de uma afecção. E isto é o que distingue um espírito aristocrático, o de Martin, de um espírito liberal, o do pai e do irmão.

Como pode um espírito aristocrático viver num mundo marcado pelo niilismo, numa cultura em que foi banida todo o valor da superação, de se tornar melhor ou, na perspectiva clássica, de exercitar a excelência? Martin reconhecia-se a si mesmo como um anarca. Uma interpretação possível da figura do anarca é vê-la como uma consumação do Único e a sua propriedade, de Max Stirner. Seria um equívoco ver a figura do anarca seja à luz do anarquista tradicional que pretende mudar o mundo, seja a dos libertários de direita que têm, hoje em dia, algum peso intelectual nos EUA. A política não o interessa, mas não desafia a autoridade. Reconhece que precisa dela, embora não acredite nela. O anarca segue os seus próprios interesses e tudo o que faz visa protegê-los. Contudo, esses interesses são meramente espirituais. Não confia na política, e a história, apesar de ser historiador, cansa-o com as suas eternas repetições. Há que sair dela.

Eumeswil é rodeada por dois estranhos mundos, o das catacumbas, onde se desenvolvem os prodígios da tecnologia, e o mundo da floresta, universo perigoso, habitado por seres mitológicos, o lugar da mais autêntica liberdade, aquela que, com o perigo sempre presente, representa um desafio à coragem e à superação de si. Ali está-se perante um mundo onde a lei civil e estado desapareceram. Resta uma outra lei, a natural. Com a aproximação de um novo golpe de estado e o retorno dos tribunos – isto é, uma nova transição à democracia e ao domínio da plebe – o Condor e a sua corte decidem fazer um passeio pela floresta, para o qual Venator é convidado, como uma espécie de historiador oficial. Dessa viagem não há retorno. São dados como mortos, mas isso tão pouco está confirmado pela presença de cadáveres. Ora, esta imersão na floresta é uma saída da história. O historiador sai do espaço histórico para se confrontar como uma outra lei. Qual o destino, nos tempos modernos, dos aristoi? Transformarem-se em anarcas, abandonarem as ilusões políticas e as peripécias da história, mergulharem na floresta em busca, por certo, das provas necessárias que os legitimem na pretensão aristocrática.

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