sábado, 30 de dezembro de 2023

Max Frisch, Não Sou Stiller

 

Publicado originalmente em 1954, o romance Não Sou Stiller, do escritor suíço Max Frisch, foi traduzido, em 1958, por Fernanda Botelho, para a Editora Arcádia. É o terceiro romance do autor, também dramaturgo e arquitecto, e o primeiro de três obras romanescas em torno da temática moderna da identidade. O segundo, de 1957, é Os Homens Não São Máquinas, uma tradução do título excessivamente interpretativa para o original alemão, Homo Faber. Ein Bericht. O terceiro é Chamem-me Gantenbein, de 1964. Também publicados em Portugal pela Editora Arcádia. Não Sou Stiller combina duas temáticas. A da identidade e a da conjugalidade, o ser-se si mesmo e o ser-se com e para o outro. Um aspecto interessante, embora lateral, é o facto de Max Frisch ser, enquanto dramaturgo, um brechtiano, mas o romance não possuir qualquer intencionalidade política, aliás, em contracorrente com a literatura mais influente da época.

Por estranhos que possam parecer, um ao outro, o romance moderno e a filosofia cartesiana, por diferentes que sejam os jogos de linguagem a que cada um pertence, com as suas finalidades e regras claramente diferenciadas, só muito dificilmente se pode imaginar que esse romance nascido na Europa moderna, com a publicação de Dom Quixote, se pode desligar da posterior odisseia do cogito cartesiano. A afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento teve um preço que Descartes tratou narrativamente. Esse preço foi a sua redução a um eu pontual em risco  de cair no solipsismo e marcado pela descoincidência consigo mesmo, aquilo a que se chama vulgarmente o dualismo ontológico entre a mente (alma) e o corpo. O que Descartes tematiza é essa descoincidência de si consigo mesmo, de um self que mesmo na evidência precisa da certificação dada por Deus, um Deus ex machina, para enfrentar a ameaça de a própria mente descoincidir consigo mesma. O ponto de partida do romance é a afirmação peremptória, feita por Stiller: Não sou Stiller… O romance começa com a afirmação de uma descoincidência consigo mesmo.

A obra divide-se em duas partes. Na primeira, são reproduzidos os sete cadernos de anotações escritos por Stiller na prisão. A segunda, substancialmente mais curta, é designada como “Epílogo do Procurador”. Existem, deste modo, dois narradores. A história começa quando, num avião, um passageiro, com passaporte americano, de nome James Larkin White é tomado por Anatol Ludwig Stiller, um escultor suíço relativamente famoso, desaparecido há seis anos sem deixar endereço. Ninguém sabe para onde foi. Nem a mulher, nem o irmão, nem os amigos, nem os clientes. A polícia suíça interessa-se por ele devido ao desaparecimento coincidir com um caso de espionagem a favor da União Soviética. Quer tirar a limpo se Stiller estava ou não relacionado com o caso. Daí a prisão preventiva de White, a panóplia de técnicas de identificação e a enorme pressão que tanto o advogado de defesa como o promotor de justiça fazem para que ele confesse a sua identidade. Embora a exigência de confissão se inscreva num processo de âmbito judicial, ela emerge como uma possibilidade da restauração da coincidência consigo mesmo. A confissão tem, na verdade, uma dimensão ontológica.

O romance não apresenta qualquer causa para essa descoincidência do protagonista consigo mesmo, mas manifesta três sintomas que a tornam evidente. Stiller oferecera-se para combater na guerra civil espanhola, nas Brigadas Internacionais. Numa missão que lhe fora confiada, a de vigiar um barco no Tejo e evitar que fosse usado pelos franquistas, foi incapaz de disparar sobre eles. Não havia nele qualquer chama revolucionária ou de combatente. Também o seu casamento com a bailarina Julika Stiller-Tschudy é uma prova dessa descoincidência. Aquilo que ela era não coincidia com aquilo que ele esperava, nem o amor que ele lhe dava coincidia com o amor que julgava ter de lhe dar. Também a sua escultura estava longe de se acordar com aquilo que ele entendia que deveria ser a arte. Nestes sintomas manifesta-se sempre uma distância entre a realidade de si mesmo e a expectativa que se tem de si na vida, seja esta a guerra, o amor ou a arte. Não é qualquer envolvimento em casos de espionagem que levam Stiller a desaparecer, mas a impossibilidade de suportar a distância entre as suas expectativas e a sua realidade. O que o conduz à fuga é a impotência para se aceitar tal como é. Na verdade, é um acto de rebelião contra a ordem, seja esta a ordem divina ou a ordem da natureza.

Nos sete cadernos de notas de prisão de Stiller, descobrimos uma teia de relações amorosas anteriores à fuga. A sua relação com a mulher, Julika, a relação daquele que é agora o procurador no caso contra Stiller, Rolf, e da sua mulher, Sybille, e o caso entre Stiller e Sybille, ambos já casados. Há, no romance, um óbvio questionamento do papel da fidelidade no casamento. O adultério não é visto como merecedor de apedrejamento, como Cristo já não o vira, segundo a narrativa evangélica, nem tão pouco de censura moral, o que terá parecido, na época, muito ousado. Sobrepõe-se o valor moral da liberdade individual ao da propriedade. Contudo, o problema da fidelidade é secundário no âmbito do tratamento da conjugalidade. Aquilo que o autor interroga é a possibilidade de dois eus se conjugarem numa vida comum e dotada de sentido. Se se olhar o casal Rolf e Sybille, o convencionalismo burguês, integrando a infidelidade na natureza das coisas, é solda suficiente para seres cujo questionamento existencial é de baixa intensidade. O caso paradigmático é o do casamento entre Stiller e Julika, onde ambos parecem sofrer de um efectivo problema de identidade e, de formas diferenciadas, estão sob forte questionamento existencial pelas respectivas consciências. O que fica claro é que o casamento está longe de ser a solda ideal para que cada um se una consigo mesmo e encontre a sua identidade. Não passa de um longo equívoco, em que os cônjuges não se conjugam entre si, pois não estão conjugados entre o que são e o que imaginam ou desejam ser.

O século XVII continua a assombrar-nos. É o século de Descartes, mas também de D. Quixote, de Cervantes, o primeiro romance moderno, ainda anterior à aventura do cogito. A afirmação da individualidade a partir do Renascimento conduz à descoincidência cartesiana e à de D. Quixote, cindido entre a idealidade imaginária e a dura realidade. Stiller, na sua negação e procura de si, é um herói romanesco que vive entre a necessidade cartesiana de uma garantia e o irrisório quixotesco da sua existência real. Rolf, de cuja mulher Stiller fora amante, tornou-se, durante o processo, seu amigo. Tentou comunicar-lhe que essa garantia da soldadura de si residia em Deus, mas Stiller ficou sempre subjugado à dimensão quixotesca da existência. Ora, essa dimensão quixotesca não é outra coisa senão uma fuga. Não da vida, mas daquilo que se é. A identidade torna-se problemática nesse momento em que aquilo que se é se mostra aos próprios olhos como insuportável. Talvez a questão da identidade não passe, de um ponto de vista filosófico, de um longo equívoco, mas enquanto a sua sombra se projectar sobre os homens, o romance não poderá, na realidade, ter outro tema.

Sem comentários:

Enviar um comentário