domingo, 17 de dezembro de 2023

Joaquim Paço d’Arcos, Herói Derradeiro

 

Publicado em 1932, Herói Derradeiro é o primeiro romance de Joaquim Paço d’Arcos. É uma obra que se inscreve no prolongamento do realismo do século XIX e pode ser inscrita no âmbito da literatura colonial portuguesa. De algum modo, o romance parece inspirado em e constitui um tributo a Carlos Sobral (Carlos Burnay da Cruz Sobral), um famoso sportsman da segunda década do século XX, que se terá distinguido em diversas modalidades, mas que teve no futebol a sua glória, tendo passado pelos quatro clubes lisboetas de então, o CIF, o Sporting, o Benfica, onde as suas performances foram mais dignas de nota, e Os Belenenses, clube de que foi fundador. No início dos anos vinte, terá ido para Moçambique, onde acabará por morrer em luta contra um leão. Não é, todavia, a sua faceta de desportista que inspira o romance, mas antes a de homem de negócios e de colono desbravador de África. Não se está, note-se, perante uma biografia ou um romance biográfico de Carlos Sobral. É uma obra ficcional em toda a sua dimensão e não retrata a vida do desportista morto, embora existam cenas por ele inspiradas. Retrata antes o destino do colonialismo português.

O romance inscreve-se nas consequências do Ultimato Inglês e da tensão entre os interesses portugueses e ingleses em África, no caso, em Moçambique. Carlos, assim se chama o herói derradeiro, tem um projecto para dinamizar a colónia portuguesa, desbravando terras para a agricultura e para a instalação da emigração portuguesa, desviando-a do Brasil, tornando-a útil aos interesses nacionais. Portugal, para manter a posse das colónias, precisava de as colonizar, de ter portugueses no terreno, como modo de evitar reivindicações de outras potências coloniais que, perante o abandono das terras de que os portugueses reclamavam a posse histórica, pretendiam tomar conta desses imensos territórios. Apesar de o romance ter sido publicado já à beira da formalização constitucional do novo regime saído do golpe militar do 28 e Maio de 1926, o tempo da narrativa é o da República, a qual nascera quase como uma resposta à fragilidade portuguesa, na questão colonial, perante a Inglaterra. Estávamos ainda longe dos dias em que as colonizações europeias começaram a ser varridas um pouco por todo o lado.

De algum modo, existe uma sombra na obra do jovem Paço d’Arcos proveniente do grande realista nacional, Eça de Queiroz. Também em Os Maias, o protagonista se chama Carlos. Este é uma idealização e um certo tipo de português, tal como Carlos da Maia o era, embora de um outro tipo. Carlos da Maia, apesar dos dons naturais e educacionais recebidos, falhou a vida. O seu diletantismo era claramente impotente para lidar e transformar uma sociedade lisboeta provinciana e decadente, fora do mundo, vivendo nos horizontes estreitos que uma cultura e uma educação fortemente influenciadas pelo catolicismo, a que se associava um marialvismo bacoco e destituído de sentido, impunha sem condescendência. O Carlos de Herói Derradeiro poderia partilhar com o outro de Os Maias a recepção de dons naturais e educacionais, mas nele não havia uma natureza diletante. Pelo contrário, decidiu jogar seriamente o jogo da vida, desbravando novas possibilidades existenciais. Se Carlos da Maia é uma idealização do português superior, mas vencido da vida, Carlos do romance de Paço d’Arcos é a idealização do português desbravador de novos caminhos e de novos horizontes.

O projecto colonial de Carlos vai enfrentar, junto do governo de Lisboa, a concorrência de um projecto de um grande empresário inglês. O conflito que se desenrola nos bastidores permite a Paço d’Arcos mostrar o modo não apenas como os interesses estrangeiros tinham comprado as elites nacionais para as pôr ao seu serviço, mas também a forma de funcionamento do poder em Portugal, onde o tráfico de influências é central para se obter aquilo que se pretende. Há toda uma corrupção moral e material das elites, descrita com ironia, corrupção essa que joga a favor dos interesses estrangeiros e contra os nacionais. Carlos é um patriota, mas na verdade o seu patriotismo é também ele impotente perante as teias do dinheiro estrangeiro. Aquilo que o romance deixa transparecer, nesse mundo onde as colónias tinham um papel central, era debilidade nacional, a sua incapacidade para tecer de modo estruturado uma política colonial, entregando a estrangeiros aquilo que deveria ser entregue à iniciativa de nacionais.

Também como em Os Maias, o amor tem um papel central na narrativa. Não um amor incestuoso e trágico. As figuras femininas de ambos os romances estão envoltas num mistério, mas este é bem diverso. Em Herói Derradeiro o mistério não passa de uma peripécia sem o dramatismo queirosiano. O desvelamento do mistério, porém, tem o mesmo efeito de pôr fim ao romance, embora as razões para isso fossem, na verdade, irrisórias e não as imperativas que impuseram o fim da ligação entre Carlos da Maia e Maria Eduarda, sua irmã. Em ambos os casos, a mulher é sempre envolta num véu, como se a sua natureza fosse essencialmente misteriosa, impossível de ser apreendida pelo olhar simples e desejoso do homem. O desejo que move os homens é incapaz de penetrar no véu que se esconde para além da bela aparência e oculta uma informação essencial. Quando a mulher se torna transparente, o herói perde o pé e cai.

Carlos de Os Maias e Carlos de Herói Derradeiro representam dois tipos de português distintos, se não antagónicos, há, no entanto, algo que, decisivamente, os aproxima. A derrota. Joaquim Paço d’Arcos pintou o seu herói com uma virtude activa que não se encontra no herói de Eça de Queirós, o autor, contudo, não deixa de dar continuidade a uma galeria de vencidos da vida. Também o seu Carlos, esse virtuoso patriota, é derrotado em todos os campos em que desejaria triunfar. Perdeu nos negócios, perdeu, talvez por precipitação, no amor e perdeu existencialmente ao sair derrotado na luta contra um leão. É plausível pensar que o autor, detentor de interesses nas colónias, tenha antecipado, sem ter disso consciência, a derrota do colonialismo português. A figura de Carlos toma, desse modo, um lugar central no imaginário do destino nacional. Ele figura o colonizador ideal e, ao mesmo, tempo prefigura a sua derrota, que o tempo haveria de trazer.

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