Se se disser que o romance Hoje preferia não me ter encontrado, de Herta
Müller, é um retrato da Roménia comunista sob a dominação de Ceuasescu, diz-se a
verdade e, no entanto, falha-se o essencial. Não é um romance de denúncia política
mas a revelação de um modus vivendi, como acontece nos regimes totalitários, em
que a política se imiscui em todos os aspectos da vida privada. Publicado pela primeira
vez em 1997, numa época onde, no Ocidente, o domínio público estava já sob a ameaça
dos interesses e pontos de vista meramente privados (a célebre dissolução, que ainda
não parou, da esfera pública), a obra de Herta Müller reenvia para uma experiência
totalmente diferente, de natureza orwelliana: o Estado interfere nos mais ínfimos
pormenores da intimidade.
Não há obra romanesca que não seja um diálogo com o cânone literário. Este
romance não foge à regra. A anónima protagonista e narradora é intimada, mais uma
vez, para se apresentar na sede da polícia política do regime. O romance é composto
por duas narrativas paralelas que se encontram não no infinito, mas no próprio acto
de narrar (talvez a narrativa seja o infinito mais próprio do homem). Narra-se a
viagem de eléctrico de casa à sede da Securitate
e, ao mesmo tempo, é narrado o fluxo de consciência da própria narradora, onde flui
a sua vida passada e presente, a vida dos que lhe estiveram próximos, o retrato
do país. Se a intimação e as contínuas apresentações na polícia política (o motivo
liga-se ao envio ao acaso de bilhetes, onde se oferecia em casamento, nos bolsos
de calças exportadas para Itália) remetem para o arquétipo do Processo de Franz Kafka, já a viagem - ou
a dupla viagem, a de eléctrico e a memorial - tem o seu paradigma na Odisseia, de Homero, a viagem de retorno
de Ulisses à pátria.
A viagem de eléctrico é, já por si, uma alegoria da vida na Roménia, alegoria
fundada no arbítrio do guarda-freio, na forma despótica como gere o eléctrico, como
dispõe da viagem dos passageiros. Mas essa viagem, com o seu equívoco final que
conduz a uma subtil revelação que ameaça enlouquecer a protagonista, é o suporte
para uma outra no próprio fluxo da consciência. Vale a pena convocar para a leitura
a relação do tempo com a consciência, segundo Santo Agostinho. Para este existe
um triplo presente. O presente do passado, a memória, o presente do presente, a
visão, e o presente do futuro, a expectativa. A viagem de eléctrico entre casa e
o edifício da polícia política é o presente do presente, a visão in loco do que
ocorre, a presença imediata à consciência de um conjunto de pequenas peripécias
que atestam a natureza distópica da própria realidade social. A substância da narrativa,
contudo, está ligada ao presente do passado. Ela é uma presentificação desse passado
pelo exercício da memória. Através de um sem número de analepses, recordações e
de histórias laterais, a memória convoca a vida da protagonista e da própria sociedade
romena. Ao torná-la presente, a memória, através da narrativa, oferece uma intuição
quase visual da natureza sórdida da vida na Roménia comunista. Sordidez proveniente
do imiscuir do Estado na vida privada, mas também sordidez resultante da corrupção
do carácter das pessoas trazida pela a acção deletéria do Estado totalitário.
A identidade é uma construção que vamos aprendendo a estabilizar. A estabilidade
provém da confiança com que nos relacionamos com a envolvente social. Se ela permanece
continuamente equívoca e ameaçadora, não há quem seja capaz de construir uma persona
sólida. O facto da protagonista/narradora não apresentar nome é já um indício de
uma perturbação da identidade. O título do romance introduz uma maior equivocidade:
Hoje preferia não me ter encontrado (Heuter wär ich mir lieber nicht begegnet).
O título resume as duas viagens, a do eléctrico e a memorial, como um encontro consigo
mesma. Parece estarmos perante a solidificação de uma identidade, a afirmação de
uma subjectividade, a da narradora/protagonista, plenamente definida e assumida.
No entanto, a referência negativa (preferia não...) ao encontro consigo mesma desfaz
essa conquista de uma identidade.
Se Ulisses no fim da viagem encontra os braços de Penélope, se Joseph K,
apesar de não saber de que era acusado, foi executado, o que deu uma razão teleológica
ao seu processo (os processos não são instaurados porque se fez qualquer coisa que
mereça uma pena, mas porque uma pena no fim do processo o justifica a posteriori), a protagonista/narradora anónima
não ganha um nome no fim da sua viagem. Pelo contrário, o que o acaso da viagem
lhe traz é uma desconcertante revelação, tão subtilmente exposta no texto que muitos
leitores não dão por ela, sobre a pessoa em quem ela mais confia (revelação que
surge como suspeita da mais crua intervenção do Estado na intimidade). O livro acaba
com a frase: "Ah, ah, enlouquecer, não." A sentença final remete-nos para
o terceiro presente de Santo Agostinho, o presente do futuro. A única expectativa
que se abre a alguém, num regime totalitário onde a acção do Estado tudo controla
e tudo corrói, é a de não perder a razão.
Não se trata já de solidificar uma subjectividade, de moldar uma identidade.
Trata-se apenas de não enlouquecer. Imaginar, porém, que os regimes totalitários
são os únicos que conduzem os homens a tal situação é enganarmo-nos sobre a natureza
da literatura. Um regime totalitário num romance ainda é uma metáfora (ou uma alegoria,
que não passa de um conjunto de metáforas) que deve ser lida enquanto metáfora,
no desconcerto lógico que toda a verdadeira metáfora introduz.
Divida-se o processo metafórico em dois momentos. No primeiro, temos a
metáfora expressa, neste caso "regime totalitário". Dar-lhe-emos o nome
de metaforizante. No segundo, aquilo que foi substituído pelo metaforizante, o metaforizado.
O metaforizado não é nada de definido, não é um termo próprio e adequado, mas um
espaço vazio que o metaforizante veio impropriamente ocupar, estabelecendo-se como
metáfora, conferindo uma significação inesperada e estranha ao discurso. Se o "regime
totalitário" do texto é também uma metáfora, cabe ao leitor preencher o lugar
vazio, o metaforizado, onde o metaforizante "regime totalitário" se veio
instalar enquanto metáfora. Dito de outro modo: o que é que esta metáfora do "regime
totalitário" dá a ver das nossas vidas que não decorrem, segundo a classificação
habitual dos regimes políticos, em nenhum regime totalitário? Será isto pertinente?
Se o livro foi publicado em 1997 na Alemanha, numa editora alemã, escrito em alemão,
podemos suspeitar que a obra, ao tratar da vida na Roménia, esteja a meditar sobre
a vida dos homens em geral, nomeadamente nos países ocidentais, talvez mesmo em
qualquer lugar.
Não conheço o livro, mas basta-me ler o texto e saber que a trama aborda o regime que vigorava na Roménia, para sentir um estremecimento.
ResponderEliminarOs antigos colaboradores do casal Ceuasescu, eliminaram os dois biltres, o mais depressa possível, para eles próprios se porem a salvo, mas não apagaram a sua história.
Curiosamente o Ocidente admirava muito aquele sinistro governante.
Ironias perversas.
Um abraço
O livro vale a pena. É verdade que havia, por cá, muita simpatia - talvez mesmo grande amor - pelo senhor Ceuasescu. Valeu-lhe de pouco.
EliminarAbraço