segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guedes de Amorim, Morfina

Publicado em 1932, o romance Morfina, de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos, acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.

O romance centra-se num talentoso pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera, porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher, mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas e a filha uma angariadora de clientes.

É a tentação erótica representada por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda, também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia, de cabarets,  de álcool e de drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.

É também um lugar de rivalidades, de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja. Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como, aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.

A queda de Pedro António inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo. O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação. A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.

É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Jean-Paul Sartre, Os Dados Estão Lançados

 

Escrito em 1943 e publicado em 1947, Os Dados Estão Lançados (Les Jeux Sont Faits) é um guião cinematográfico para um filme como o mesmo título de Jean Delannoy, também de 1947. O horizonte narrativo é o de uma interpretação moderna do Mito de Orfeu. O amor entre Ève Charlier e Pierre Dumaine não enfrenta apenas a tentação. Orfeu perde Eurídice por não resistir à tentação de olhar para trás, de olhar para ela antes da saída do mundo dos mortos. É a necessidade de certificação, de possuir uma certeza, que perde os amantes no mito grego. No texto de Sartre, é ainda o passado que perde Ève e Pierre, mas um passado marcado pelas estruturas e compromissos sociais. Se o conflito inerente ao mito de Orfeu é entre o amor e o desejo, na obra de Sartre situa-se na escolha – isto é, um exercício da liberdade – entre um determinismo metafísico que lhes destina o amor ou um determinismo social que os afasta eternamente.

A narrativa desenrola-se entre dois espaços: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos vivos é caracterizado por um regime político distópico. Um regente controla, através da sua milícia, toda a sociedade, a qual se encontra estruturalmente dividida em classes sociais rígidas e conflituantes. Ève, uma bela mulher, pertence às classes dominantes, casada com  André Charlier, um secretário da milícia, uma figura importante do regime. Pierre vem do mundo operário, um militante que organiza uma insurreição contra o despotismo do Regente. Têm uma coisa em comum: são ambos traídos. Ève pelo marido, que a envenena; Pierre por um jovem correligionário tido por traidor, que dispara sobre ele. É no mundo dos mortos que se encontram. Ora, este mundo surge como uma estrutura, no início, altamente burocratizada. Os mortos – melhor, os candidatos a mortos – têm de cumprir formalidades, como se tivessem de passar numa fronteira. Só quando assinam o documento adequado é que se podem considerar, efectivamente, mortos.

O mundo dos mortos, no texto de Sartre, não é o frio Hades, mas o mesmo mundo dos vivos. É nele que os mortos deambulam sem serem vistos, sem serem ouvidos, sem ocupar espaço. Observam os vivos, mas não podem interferir nas suas vidas. A morte não á passagem para um além, mas a transição para o mundo onde se estava, mas agora noutra condição. Morrer é mudar de condição. A morte é definitiva, a não ser que haja um erro burocrático. Se um homem e uma mulher estavam destinados um ao outro e não se chegam a encontrar em vida, é-lhes dada, depois de mortos, uma segunda oportunidade. Regressam à vida para cumprir o seu destino. Ora, a bela burguesa Ève e o simples operário Pierre estavam destinados um ao outro, mas na vida nunca se encontraram. Foi a morte que os aproximou. Ao verem-se no mundo dos mortos, descobrem o amor.

Retornados à vida, mantendo as recordações do que viveram no mundo de onde saíram, têm de consumar o amor e partilhar a existência. Caso falhem, o seu destino é o de Eurídice no mito grego. Ève e Pierre enfrentam, no entanto, dois obstáculos. Por um lado, o facto de pertencerem a mundos sociais distintos, o que o amor terá capacidade de superar. Por outro, a teia de compromissos que os liga às a esses mundo de onde provêem. Pierre, quando morto, descobre que a tentativa de insurreição que dirigia está condenada ao fracasso, que a milícia do regente conhece todo o plano e tem as forças militares preparadas para sufocar a revolta e pôr fim, através de um banho de sangue, à resistência ao regime opressor. Ève, mais do que descobrir, constata que o marido a assassinou, por causa da sua fortuna, e se prepara para enredar Lucette, a jovem irmã de Ève, apenas com 17 anos, numa teia de sedução, de modo a poder apropriar-se também da herança desta.

Ao voltar à vida devido ao amor não cumprido, eles deparam-se com a grande pressão do passado. Pierre pretende avisar os seus camaradas do perigo que correm, mas eles sabem que ele se relaciona com a mulher do secretário da milícia e, perplexos por ele não estar morto, apesar do atentado, desconfiam que os traiu. Ève pretende, por seu lado, avisar a irmã da natureza do marido, do seu carácter malévolo e das intenções que ele tem tanto para com ela, Ève, como para com a própria Lucette. Esta, porém, não acredita na irmã. Não crê que o cunhado seja aquilo que é. Pelo contrário, dele apenas vê a aparência gentil e sedutora. Sartre une os dois casos sob uma mesma rubrica. A impotência da verdade para tocar aqueles a quem ela se dirige. Pierre não consegue vencer a reserva dos seus correligionários; Ève é incapaz de fazer com que a irmã encare a realidade tal como ela é.

É nesta tentativa de levar a verdade àqueles com quem tinham ligações no passado que vai funcionar como uma analogia com o desejo de Orfeu em se certificar, olhando para trás, que Eurídice o segue em direcção ao mundo dos vivos, perdendo-a irrevogavelmente. Tanto Ève como Pierre olham para trás, para o mundo que tinham deixado ao morrer, e isso terá um preço elevado. A grande questão que o texto de Sartre coloca é se o determinismo social é de tal modo forte que funciona como uma causa necessária no comportamento dos indivíduos. Estariam Ève e Pierre de tal modo determinados a não viverem o amor que lhes tinha sido destinado, que eles apenas cumpriram um guião que não dependeria deles? Ora, se se tiver em conta a ideia sartriana de que estamos condenados a ser livres, que todas as nossas decisões e escolhas dependem de um acto livre, o que se poderá dizer é que Ève e Pierre escolheram submeter-se ao determinismo social que exercia sobre eles pressão, em vez de se submeterem a uma espécie de determinismo metafísico que, apesar da improbabilidade, lhes abria o caminho para um grande amor. A subtiliza da obra de Sartre é de mostrar que mesmo a escolha de um determinismo e não de outro é ainda um acto livre, e como todos os actos livres torna os seus autores responsáveis por aquilo em que se tornam. É a isto que alude a máxima sartriana de que a existência precede a essência: aquilo que somos é o fruto das escolhas que fazemos.