quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Julien Green, Moïra


Julien Green (1900-1998) foi um escritor norte-americano de expressão francesa. Converteu-se em 1916, após a morte da mãe, de orientação protestante, ao catolicismo. A sua temática romanesca está ligada às grandes questões colocadas pela fé. O romance de 1950 Moïra não foge a esse interesse central do autor. O protagonista, Joseph Day, é um jovem recém-entrado na Universidade, vindo de um mundo rural, educado num estrito espírito protestante, onde o pecado, a culpa e a necessidade de redenção têm um papel central na existência do crente. A obra é dinamizada pelo conflito entre natureza e fé. Deslocado do ambiente protegido da ruralidade e da obediência quase cega à tradição, vê-se confrontado com um ambiente que está muito longe daquele onde se sente em casa, um ambiente em que os valores religiosos parecem ter pouco sentido. É neste universo estranho e adverso que o conflito entre a natureza, a sua natureza, e a fé, aquela que o move e dá sentido à sua existência, se desencadeia.

A estratégia narrativa de Green é marcada por uma deslocação da personagem central, Joseph Day, de um mundo para outro. É nesse outro mundo, muito diferente daquele onde viveu a infância e adolescência, no qual recebeu os valores que o orientam e formou as suas crenças religiosas e sociais, que aquilo que ele é vai ser posto à prova. Na economia romanesca, a universidade, a grande cidade e mesmo a casa onde se vai hospedar, e onde se hospedam outros estudantes, são espaços que representam, cada um à sua maneira, provações existenciais, partes de um universo onde ele se sente como um estranho, pois nesses lugares a cultura, os valores e as crenças são completamente diferentes dos seus. Há, na construção romanesca de Green, um exercício experimental que tem por finalidade descobrir como é que um jovem protestante, ancorado naquilo a que hoje se chamaria fundamentalismo religioso, se comporta num espaço completamente distinto daquele de onde veio e no qual adquiriu e consolidou a fé. Na verdade, é um exercício onde um Green maduro, na casa dos cinquenta anos, interroga o que poderia ter sido caso permanecesse protestante.

Como se irá comportar a natureza de Joseph Day quando deslocada do espaço onde a fé se gerou e que, pela própria estrutura social, a protegia? Esta natureza é, claro, o corpo e neste, para além e acima da força física, o sexo. É a sexualidade a mola dinamizadora da acção narrativa. Melhor é o conflito entre a libido, as pulsões sexuais, e um desejo de pureza sentido como caminho de redenção, de conquista do paraíso, de salvação da alma. O romance organiza-se através de um conflito entre dois desejos, o que impele o corpo para outro corpo e o que impele a alma para outra dimensão. O conflito nasce da incompatibilidade que as grandes religiões monoteístas determinam entre a consumação de ambos os desejos. O desejo de imortalidade impõe a repressão do desejo sexual. A consumação do desejo sexual arrasta a perdição da imortalidade.

O romance apresenta um conjunto de conflitos e alianças secundários, cuja finalidade é testar e preparar Joseph Day para o encontro com o destino. E o destino é Moïra, a filha adoptiva da senhoria, que se encontra, do ponto de vista religioso e moral, num lado completamente oposto ao de Day. Julien Green tece, com esta personagem, uma complexa trama de simbolizações que se sobrepõem e intensificam. Moïra é, como o autor referiu, um nome irlandês, o equivalente a Maria. Contudo, no romance, Moïra é uma Eva tentadora. Enquanto na tradição do cristianismo Maria é uma segunda Eva, mas uma Eva reparadora, a Maria (Moïra) do romance representa uma regressão a essa Eva primitiva que tentou Adão e com ele se perdeu. A ambiguidade da personagem é interessante, pois era possível que essa Moïra que tenta Joseph Day e o perde, perdendo-se com ele, fosse também ela reparadora, integrando-o num mundo estranho, cujas regras ele desconhecia e temia. Contudo, a ambiguidade de Moïra é mais ampla, pois, na mitologia grega, Moïra representava o destino, representava uma lei que nem os homens nem os deuses podiam transgredir e aos se deveriam submeter. E Moïra foi, de facto, o destino de Day.

No entanto, essa Moïra que o tenta, que lhe desperta a libido, que o ameaça arrastar para a perdição, não é mais do que uma projecção da sua própria natureza reprimida e recalcada na sexualidade. Nessa rapariga que o atrai condensa-se aquilo que ele é, um homem dotado de sexualidade e que, na verdade, não é capaz de compatibilizar a violência da libido desencadeada pelo objecto sexual e a violência repressiva trazida pela fé, pelos códigos de conduta que, segundo a instituição religiosa, asseguram o paraíso eterno. Como acontece numa guerra civil, também o resultado do conflito interior que se acendeu em Joseph Day, ao ser deslocado do seu espaço natural para um espaço adverso, é a destruição que, curiosamente, como também acontece após tremendas guerras civis, pode abrir ainda um caminho para uma redenção, uma outra redenção, um outro destino.

sábado, 7 de setembro de 2024

Irène Némirovsky, A Presa


Irène Némirorovsky (1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social. Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito cartesiano.

Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.

Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa.  É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.

O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.

A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.

O título do romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa. Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é, cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo, em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.