quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ursula K. Le Guin, Do outro lado do sonho

 

Publicado originalmente em 1971, nos Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de 2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.

As alterações da realidade estavam longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo, em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano. Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente, caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os seus sonhos representam.

A preocupação de Orr com o seu poder de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos passados.

O outro lado do romance de Ursula Le Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber, psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam. Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador, para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e social.

O romance não representa um conflito entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro radicalmente diferente.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Knut Hamsun, À Porta do Reino (Ved Rigets Port)

 

Não traduzida em português Ved Rigets Port (À Porta do Reino) é a primeira peça de uma trilogia centrada na figura de Ivar Kareno, um jovem filósofo que pretende manter-se fiel à radicalidade do seu pensamento, influenciado por Nietzsche, e em confronto com a filosofia de origem britânica. As outras duas peças são Livets Spill (O Jogo da Vida) e Aftenmde (Crepúsculo). Existe uma edição francesa, da editora Actes du Sud, que reúne as três peças. Em À Porta do Reino, a tensão dramática gira em torno do tema da fidelidade. Esta é tratada em diversos níveis, desde a fidelidade matrimonial, o nível mais baixo e menos relevante na peça, a fidelidade entre amigos e a fidelidade a si mesmo, o tema central que fundamenta os outros níveis de fidelidade.

A fidelidade a si mesmo, contudo, é a fidelidade às suas ideias, à visão que se tem do mundo. Ivar Kareno, como acontece, não poucas vezes no mundo do pensamento, pretende representar uma ruptura com aquilo que está estabelecido. Vive centrado na produção e publicação de uma obra que, imagina, abrirá novos horizontes, obra que põe em causa o pensamento e a influência do professor Gylling, um reputado e respeitado filósofo e professor. Casado com Elina, Ivar Kareno, tem o casamento à beira da ruptura. Por um lado, a incapacidade de sustentar a família, pois a sua obra é recusada pelo editor, que não está disponível para publicar uma obra radical e um ataque a Gylling. Por outro, pela pouca atenção que dá à sua mulher, a qual se sente abandonada, pela excessiva preocupação de Ivar com a obra. A fidelidade a si é uma fidelidade, de natureza fundamentalista, às suas ideias radicais, que nem o perigar do casamento, nem a bancarrota do casal, o levam a pôr em causa, em amenizar a crueza do pensamento de uma juventude ainda imatura, como sugere o Gylling.

Essa intransigência com as ideias emerge numa outra situação. Carter Jerven, um amigo de Kareno e que com ele partilha uma nova visão do mundo, acabado de se doutorar, empresta-lhes dinheiro para este evitar a bancarrota de Ivar a penhora dos seus bens. Este acaba por aceitar. Contudo, ao descobrir que a tese de doutoramento do amigo trai os princípios em que ambos acreditavam, ao perceber que, de algum modo, Jerven cedeu para encontrar um caminho para a sua carreira, devolve o dinheiro. Esta devolução e as razões apresentadas têm um efeito inesperado na vida de Jerven. A noiva, perante a recusa de Kareno em aceitar o dinheiro, rompe a relação. Jerven tenta, em nome da amizade, que Kareno aceite a sua ajuda, pois isso salvaria a sua ligação Mademoiselle Hovind, a noiva. Contudo, Ivar Kareno mantém-se intransigente. As suas ideias valem mais do que a amizade, ainda por cima a amizade de um homem que traiu os seus ideais de juventude.

Também o casamento de Ivar e Elian entra em crise. A situação financeira e, fundamentalmente, a pouca atenção que Ivar dá à mulher abrem o caminho para que Endre Bondensen, um jornalista influente e sedutor, atraia Elina, já desesperada pelas suas tentativas infrutíferas para levar a que o marido permita uma solução para a degradada situação financeira em que vivem, para que ele aceite a ajuda dos pais dela ou para que siga os conselhos do professor Gylling, os quais levariam à publicação da obra de Kareno pelo editor. A intransigência do jovem filósofo é total, e mesmo a ameaça de infidelidade da mulher é inútil para o fazer mudar de atitude. O casamento pode desfazer-se, o importante, porém, é que o autor seja fiel a si, isto é, às suas ideias e à sua radicalidade.

A peça de Hamsun explora uma ambiguidade na ideia de fidelidade a si. Ivar Kareno é, na verdade, fiel a si mesmo ou fiel a uma visão do mundo, a um conjunto de ideias e a um projecto de as impor destruindo outras visões do mundo? Será essa fidelidade uma relação autêntica consigo mesmo ou não passará de uma intransigência motivada por um conjunto de ideias abstractas, fruto de um ego inflacionado? Não é claro, nesta primeira peça, o estatuto de Kareno. Será um herói ou um bufão imaturo e incapaz de compreender o mundo? As relações concretas de amizade e de amor são trocadas pela fidelidade a essas ideias. Os outros – no caso, a mulher Elina e o amigo Carter Jerven – têm, claramente, menos valor, aos olhos do candidato a filósofo, do que essas ideias, pelas quais está disposto a enfrentar a pobreza e o abandono. O caminho de Ivar Kareno está em aberto e isso será explorado nas outras duas peças da trilogia.