quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Julien Gracq, Au Château d’Argol

 

Publicado em 1938, Le Château d’Argol é o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo literário de Louis Poirier (1910-2007). André Breton considerou a obra como o ponto culminante do surrealismo. Independentemente desta relação com o surrealismo, está-se perante o início de um percurso literário – nomeadamente, no âmbito do romance – de grande qualidade, apesar de o autor estar longe de ser popular. Como o título indica, o acção romanesca passa-se num castelo/palácio da aldeia bretã de Argol, uma povoação realmente existente, incrustada na floresta armórica, a qual, no romance, se funde com o próprio château. Contudo, em Argol não há ou houve qualquer château. É no cruzamento entre a realidade da povoação e a irrealidade do espaço narrativo que o autor produz a mitificação do espaço, retirando-o da dimensão narrativa da existência quotidiana e, de alguma forma, operando uma espécie de consagração, embora de uma sacralidade tenebrosa, na qual emergem as forças obscuras do inconsciente como grandes agentes da acção.

O château e a floresta envolvente, pelo processo de mitificação que está na sua origem, tornam-se o espaço de uma utopia, não no sentido que podemos encontrar naquelas desenhadas por Platão na República ou por Thomas More na Utopia, onde se encontra uma idealização das relações humanas, mas num sentido denso em que se combina a ideia de um espaço estranhamente configurado, como se fora uma sugestão de não espacialidade, pelo menos daquela espacialidade onde habitamos, e a percepção de que ali, naquele lugar que é um nenhures, um não lugar, está suspensa a trivialidade com que os seres humanos gerem as suas relações, e as relações que ali decorrem obedecem a forças que estão adormecidas ou domesticadas na vida quotidiana, a qual só é possível pelo adormecimento e pela domesticação dessas forças. A esta utopia corresponde ainda uma ucronia assente em duas linhas de força. Por um lado, não é claro qual é o tempo histórico da narrativa, pois nela se combinam elementos modernos, como o automóvel ou a referência a Hegel, com intencionalidades românticas e mesmo pré-modernas. Por outro, episódios em que a linearidade temporal é subvertida, onde elementos do passado são, na realidade, elementos de um tempo a vir.

Albert, um jovem aristocrata de grande riqueza, comprou o château possuído pelo demónio do conhecimento. Aos quinze anos, via-se florir nele todos os dons do espírito e da beleza, mas ele desviou-se, com uma singular firmeza, dos sucessos que, em Paris, todos lhe prometiam. O demónio do conhecimento tinha-se já tornado senhor de todas as forças deste espírito. Visitou as universidades da Europa, de preferência as mais antigas, aquelas onde persistia ainda a recordação de um saber filosófico dos mestres da Idade Média raramente ultrapassado pelos modernos. Ao comprar o estranho château na afastada Bretanha, Albert procurava um lugar onde pudesse satisfazer a sua paixão filosófica num ambiente que se aproximaria, de algum modo, daquele que teria sido o dos velhos mestres medievais. O château em Argol era um sítio de meditação e, ao mesmo tempo, de viagem no tempo ao encontro de um passado que, na verdade, não tinha sido, aos olhos do jovem aristocrata, superado, como se a vontade do indivíduo pudesse superar a dialéctica do espírito no seu processo histórico, tal como era compreendida por Hegel.

A certo momento chega ao château Herminien, o melhor amigo de Albert e como ele alguém espiritualmente dotado, acompanhado por Heide, uma belíssima mulher. A partir deste momento suspende-se a vida banal e forças mais poderosas e inconscientes entram em acção, nesse lugar onde o tempo e o espaço tinham sofrido uma subversão. O que vai emergir, quando a vida trivial, com as suas regras sociais e jurídicas, é suspensa não é um hino sublime à beleza, mas a força da violência, de uma violência que vem do fundo do ser e se apodera dele. Essa violência anuncia-se em verdadeiras justas medievais entre os dois amigos, não em combates de cavalaria, mas de confrontos retóricos em torno do saber. Podemos pensar a retórica como uma primeira forma de domesticação da impetuosidade do logos, mas falhamos o essencial. A retórica apenas torna mais sofisticado o discurso enquanto arma de agressão e de luta pela dominação do outro. A tentação de confronto existente desde sempre entre os dois amigos é agora intensificada pela disputa de Heide, pelo triângulo erótico nascido da imediata atracção de Heide por Albert.

O destino das personagens vai ser marcado pelo desencadear da violência, que passa do conflito retórico para a violência física e a morte. A narrativa é construída sob a influência do romance gótico e das obras de Edgar Allan Poe, onde o doseamento do suspense está feito para criar um clima de tensão que antecede o desenlace. A culminação do surrealismo, como adjectivou Breton o romance de Gracq, é, contudo, equívoca, pois o que se manifesta ali não é uma sobrerrealidade, mas a vitória da infrarrealidade, o sucesso das forças tenebrosas que, aproveitando a combinação da paixão pelo conhecimento com a paixão pela beleza, furaram o cerco apolíneo da razão e abriram o caminho, como sempre acontece, para a destruição e a morte. Escrito em 1937, publicado em 1938, o romance de Gracq parece ser uma premonição e um aviso sobre aquilo que já nessa hora espreitava a Europa e o mundo, como se o tempo do futuro se tivesse antecipado e coagulado simbolicamente numa obra literária.

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