quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Hjalmar Bergman, Memórias de um Morto


Publicado na Suécia em 1918, o romance Memórias de um Morto, de Hjalmar Bergman, foi publicado em Portugal em 2011, pela Eucleia Editora, e em 2018, pela Cavalo de Ferro. Em ambas a tradução é de João Reis, presumo que a mesma. A obra pode ser encarada como uma polémica contra o livre-arbítrio, contra a ideia de que cada um é responsável pelo seu destino, pela vitória ou pela derrota que sofre na existência. Todavia, não se trata de um determinismo mecânico inscrito na natureza, mas a ideia de que o mal praticado por alguém é castigado na sua descendência, um pessimismo trágico. É isso que nos conta Jan Arnberg, personagem central e narrador do romance. Os desaires sofridos pelo seu avô, pai e por ele próprio mais que motivados por más opções são apresentados como o resultado de um acto pelo qual não foram responsáveis, mas que continuam a expiar, como nas tragédias gregas.

O fado foi adquirido no século XVIII, quando o conde de Anrfelt, um general que teria estado envolvido em 1792 no assassinato, num baile de máscaras, do rei Gustavo III, da Suécia, tinha dois filhos, um legítimo e outro ilegítimo. Teria sido este que assassinou o próprio pai, atraindo para a sua descendência, primeiro com o nome de Fält e por fim com o de Arnberg, o zelo das erínias. Ao longo das gerações as relações entre os dois ramos do conde assassinado mantêm relações equívocas, onde a tensão e uma certa cumplicidade se misturam. O avô de Jan Arnberg é um industrial falhado que perde os seus bens para a linhagem dos Arnfelt. O pai de Jan sonha em retomar os bens perdidos pelo seu e, para fugir ao destino, emigra para os Estados Unidos, onde se torna inventor. Os seus negócios, porém, ficam nas mãos de terceiros, acabando o talentoso Arnberg na miséria, morrendo ao que tudo indica de tuberculose. Jan, para escapar ao destino dos Arnberg, também foge da sua cidade de Wadköping, designada apenas como W., instala-se em Hamburgo e sonha com um grande projecto transatlântico, que nunca passará de um sonho.

O romance é um ensaio genealógico, onde se estudam as duas linhagens do conde assassinado no século XVIII, onde se percebe uma repetição do destino, tanto na linhagem titulado como na que nasce na ilegitimidade. Deste ponto de vista, a obra é uma exploração do destino dos filhos de Abraão, Ismael, filho da escrava Agar, e Isaac, filho da mulher legítima, Sara, embora numa perspectiva pessimista contrária ao destino desses personagens bíblicos. Aliás, a religião não deixa de ter uma presença significativa no romance. Uma das figuras centrais é o bispo de W., Julius Arnberg, avô de Jan e sogro do pai deste. É uma das figuras do conservadorismo da Igreja sueca (protestante). O romance mostra que enquanto a linhagem Arnfelt se encontra ligada ao mundo da banca, a dos Arnberg se divide entre homens da Igreja, empresários falhados e, mesmo, alcoólicos.

O romance divide-se em três partes. I A Herança e a Lei; II Léonie – Um Interlúdio; III A Herança e a Promessa. A estratégia narrativa, apesar de ter sempre como narrador Jan Arnberg, não se mantém homogénea. A primeira parte estamos numa abordagem realista, onde se narra a vida dos Fält/Arnberg. Na última, o texto torna-se fragmentário, a precisão realista desaparece, parecendo estar perante uma escrita impressionista, com laivos que lembram o surrealismo. As personagens que rodeiam Jan Arnberg na sua estadia em Hamburgo são equívocas, como se fossem apenas sonhadas, perseguindo finalidades indefinidas e regulando-se por regras que pretendem provir de uma sabedoria que ultrapassa o mero senso comum. A segunda parte faz a mediação entre a primeira e a última, tanto do ponto de vista do conteúdo narrativo como no estilo adoptado. Léonie é uma prima de Jan. Estariam destinados um ao outro, mas também aqui o diferente destino das famílias Arnfelt e Arnberg interferirá.

A chave de leitura de toda a obra é resumida pela fala, a última do romance, de uma das personagens mais equívocas, a quem Jan chama pai Johannes. Diz assim: “Nem toda a gente que vive está viva; nem é a morte um portal que abre apenas numa direcção. O Imutável forma a vida como lhe agrada, e da morte faz uma brincadeira. Os nossos pensamentos são fogos-fátuos que o divertem com os seus voos. Mas as nossas vontades repousam na sua mão. E, quando te sentires condenado pela sua vontade, saberás que repousas na sua mão, que te deu o arco na nuvem como um sinal. Por isso não temas a tua vontade, pois não é o teu instrumento, mas daquele que te guia.” Se a morte é um portal que abre em mais que uma direcção, então este pai Johannes poderá ser o pai de Jan, morto há muito e o próprio Jan, apesar de vivo, ser um morto que escreve as suas memórias. O romance é, na verdade, um exercício pessimista, marcado por um humor por vezes excêntrico, e enquadramentos surrealistas, numa época em que o movimento surrealista estava a incubar, sobre o destino dos homens na terra.

Sem comentários:

Enviar um comentário