sexta-feira, 12 de maio de 2017

Baptista-Bastos, Elegia para um caixão vazio


Elegia para um caixão vazio foi publicado pela primeira vez em 1984. Representa, ao mesmo tempo, a crónica da desilusão de uma geração e a recapitulação da construção de uma subjectividade, a tentativa, através da rememoração, de solidificar essa subjectividade, quando o pano de fundo – com os seus mitos e os seus imperativos – em que ela se formara se desvanece e o mundo, impiedoso, desenha caminhos tão desencontrados daqueles que o protagonista desejara.

A subjectivação do protagonista gira em torno de dois topos centrais. Na verdade, trata-se de duas utopias que percorreram uma parte daqueles que pertencem à geração de sessenta do século passado. Uma dessas utopias é de natureza política, a da construção de uma sociedade liberta da dominação económica e social. A outra é de natureza erótica ligada à libertação sexual. É no confronto com os imperativos da pólis e com as solicitações de eros que o indivíduo se constrói e organiza a mitologia e os rituais que compõem a sua existência.

Tudo isto, porém, é já objecto de um exercício da memória, como se pertencesse a um outro mundo a cuja verdade, e à maneira do platonismo, se acedesse através da reminiscência. Esta referência ao platonismo não é despropositada, pois os mundos utópicos emergem idealizados e os objectivos do protagonista purificados. No entanto, essa idealização geracional é sempre apresentada tendo por pano de fundo o trágico da existência com aquilo que a vida tem de decepcionante e longe da idealidade. O sexo surge como um mundo caótico e os companheiros de luta política nem sempre se apresentam como moralmente virtuosos. Mas o contraponto mais verrumante com estes mundos utópicos reside na tentação omnipresente do álcool. O álcool é a confissão de que o entusiasmo político e o êxtase sexual estão longe de preencher a ânsia de plenitude que assola a personagem central do romance.

Entre a idealização e a realidade vai uma longa e cruel distância. As aspirações políticas da geração de sessenta – ou de uma parte dela – mostraram-se impotentes para dobrar o curso do mundo. Se o 25 de Abril ainda apresentou, por um momento, a possibilidade de fazer inscrever o ideal utópico no terreno concreto das relações sociais, os anos oitenta são um tempo onde todas as ilusões acabam, e uma imensa decepção se abate sobre quem julgou ser possível uma revolução social que permitisse aos homens descobrir a sua efectiva fraternidade e construir uma sociedade mais igualitária. O romance de Baptista-Bastos também é, por isso, uma crónica da decepção, o reconhecimento de uma derrota, talvez uma tentativa de salvaguardar, para memória futura, a elevação moral dos pressupostos da geração a que pertenceu.

O conflito central, estruturante da narrativa, joga-se, porém e de forma surpreendente, entre o espaço público e o espaço doméstico. Na verdade, o protagonista escreve em casa rodeado pela família, pela mulher e pelos filhos, pelo sogro que ali vem ler os jornais. Este é o ambiente onde está, efectivamente, a personagem principal do romance, uma esfera doméstica, um mundo tecido pela banalidade da vida familiar, pelas solicitações dos filhos, pelas injunções da mulher. As aventuras no espaço público – políticas ou eróticas – são já só recordações, memórias, anamnese. Eis a realidade que se opõe à exaltação do tempo utópico onde a esperança política estava viva e a sexualidade era uma promessa, nunca cumprida, de entusiasmo dionisíaco.

Não se trata apenas de mostrar o desencanto de uma geração que viu o desfazer da sua mitologia, mas também de sublinhar a retracção do espaço público onde os homens agiam, tanto no domínio político como no erótico. O caixão vazio é uma metáfora sobre Portugal, a sua configuração, o facto de parecer não ter lá dentro um povo. Mas por contiguidade, por efeito metonímico, pode-se pensar o espaço desse caixão vazio como o espaço público de onde parece haver uma retirada generalizada. Não haverá, por certo, maior confissão de derrota do homem público do que a sua redução à condição doméstica. É esta domesticidade que conduz às palavras finais do romance: Creio que estou na idade de escrever um livro de amor.

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