O Primeiro Amor (1869)
é uma das últimas obras do escritor russo Ivan Turguénev. Fará ainda sentido
ler uma obra cujo ambiente social e modo de vida nada têm a ver com os nossos?
Esta pergunta não se dirige ao carácter clássico da obra (vale a
pena ainda ler os clássicos?), mas ao tema sobre o qual ela é construída,
o primeiro amor. Serão ainda analogáveis as experiências dos primeiros amores
actuais com aquela que é descrita no conto de Turguénev?
De certa maneira, a experiência do primeiro amor, no livro de
Turguénev, é, ao mesmo tempo, a do último, um exercício de destruição da
vocação romântica do coração. Nesta obra há uma leve reminiscência do Banquete de
Platão, onde os vários convivas decidem fazer um discurso em honra do deus
Eros. No caso do livro do escritor russo, depois de uma festa (supõe-se), ficam
apenas três convivas. O anfitrião propõe que cada um faça a narrativa do seu
primeiro amor. Chegam à conclusão que só Vladímir Petróvitch tem uma
experiência que vale a pena ser contada. Ele, porém, recusa-se a narrá-la
oralmente. Propõe-se escrevê-la e, posteriormente, lê-la aos amigos. A
narrativa, também uma confissão, que o leitor tem à sua disposição é então o
escrito onde Vladímir Petrovítch narra o seu primeiro amor.
Na casa de campo que a família ocupava, Vladímir, então com 16 anos,
descobriu por vizinha Zinaída Kassékin, uma jovem princesa, cuja família estava
empobrecida. Zinaída possuía, como a Penélope da Odisseia de Homero,
uma corte de pretendentes, homens mais velhos e instalados na vida. A esta
corte juntou-se o jovem Vladímir. Zinaída, inconstante, coquette,
irreverente, entretinha-se no exercício de uma certa malevolência relativamente
aos pretendentes, manipulando-os e mostrando-os no seu ridículo. A Vladímir,
que se foi apaixonando intensamente por ela, tratava com condescendência
inerente à diferença de idades. Há um momento, porém, em que todos os
pretendentes percebem que o coração de Zinaída está tomado por alguém fora do
grupo de pretendentes.
A meio da narrativa, Vladímir conta duas conversas que simbolizam o
núcleo central da intriga, são duas revelações do carácter das personagens
envolvidas. Numa delas, o pai diz a Vladímir: "Apanha o que puderes da
vida, mas não te deixes aprisionar; pertencer a si próprio - é essa toda a
graça da vida". E quando o filho lhe falou em liberdade, o pai
perguntou-lhe: "Mas sabes o que pode dar liberdade ao homem?", e,
perante a pergunta do filho, respondeu: "A sua própria vontade, que também
lhe dará o poder; o poder que é melhor do que a liberdade. Aprende a desejar e
serás livre, e mandarás." Esta apologia, tão antikantiana, de uma vontade
inclinada pelo desejo, marca já a presença de Schopenhauer e anuncia, de certa
forma, Nietzsche. O importante, porém, é notar este desejo de domínio, este ser
livre de prisões, esta independência muito diferente da autonomia da vontade,
uma independência que vive da realização impassível do desejo e da vontade de
poder e não da abstenção racional dos prazeres do mundo.
Por outro lado, uma das confissões que Zinaída faz ao jovem
Vladímir é fulcral para perceber o que está em jogo no amor: "Não, não
posso gostar de alguém para quem olhe de cima para baixo. Preciso de alguém que
me leve de vencida... Mas não hei-de encontrar ninguém assim, Deus é misericordioso!
Não cairei nas mãos de ninguém, nunca!" O amor é sentido como uma
fatalidade, como uma imperiosa e desejada submissão da mulher ao homem, mas não
a qualquer homem. Só àquele que souber olhá-la de cima para baixo. O amor exige
a mais pura desigualdade, e não é senão a realização de uma fatalidade.
O desenrolar da intriga conduz a um final psicanalítico avant la lettre. Vladímir descobre,
depois do grupo de pretendentes ter constatado que a jovem princesa estava
apaixonada, que o seu rival efectivo é o próprio pai. Foi a ele que Zinaída se
submeteu e se entregou. Entregou-se a quem tinha por lema ser livre de todo o
compromisso, aquele cuja vontade era mais forte que qualquer resistência. Na
parte final da narrativa, o jovem Vladímir tem, sem que seja visto, a lição
definitiva sobre o amor: "Zinaída endireitou as costas e estendeu a mão...
Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai
levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma
chicotada brusca no braço nu de Zinaída. Foi a custo que me contive, que não
soltei um grito; Zinaída estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e,
levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote
deixara. O meu pai arremessou o chicote para o lado e, subindo apressadamente
os degraus, irrompeu dentro de casa. Zinaída virou-se e, com os braços
estendidos e a cabeça dobrada para trás, afastou-se da janela..."
O primeiro amor de Vladímir não foi o seu amor por Zinaída, mas o amor
do seu pai por ela, foi a lição de que o amor não passa de um jogo de poder e
submissão, de uma vontade de poder e de um desejo de ser vencida, foi a
revelação de uma moral em contradição com o espírito dominante do cristianismo,
bem como dos movimentos emancipatórios da época e posteriores. Quarentão,
aquando da escrita da narrativa, Vladímir Petróvitch continuava um solteirão.
Esta é uma lição de amor para todos os tempos, mas não para todos os homens e
mulheres. Destina-se apenas àqueles para quem o amor se pode interpretar
literalmente como amor fati. E
hoje em dia, numa época de igualdade e de ciência iluminada, quem crê num amor
destinado?
Ivan Turguénev (2008). O Primeiro Amor. Lisboa: Relógio d'Água.
Lido com interesse.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
ResponderEliminarAbraço