As metamorfoses do Self (Si-mesmo), talvez
toda a literatura não trate de outra questão, talvez a única coisa que esteja
em jogo nas narrativas seja a tentativa de capturar uma identidade. Foi Milan
Kundera, salvo erro, que fez o curto-circuito que mostrou, no âmbito da cultura
europeia, a existência de dois projectos, praticamente contemporâneos, de
processamento da identidade. Por um lado, aquele que se estriba no cogito cartesiano,
onde a subjectividade se mostra como fundamento de todo o conhecimento, mas uma
subjectividade puramente racional, de carácter pontual e vazia. O sujeito
cartesiano, na ânsia da evidência racional, despe-se de toda a biografia e
resume-se a uma razão pura. Por outro, o D. Quixote, de Miguel de Cervantes,
onde o Self (no caso, o de D. Quixote) se entrega a todos os
desvarios e equívocos, mas são estes que permitem preencher uma identidade, uma
identidade que se transforma ao longo da narrativa.
A Balada do Café Triste, da
escritora norte-americana Carson McCullers (1917-1967), é mais um episódio, como
o de qualquer narrativa literária do Ocidente moderno, dessa longa tradição
escorada, em última análise e apesar das múltiplas formas que tem tomado, no
Quixote. A narrativa pode resumir-se como uma investigação sobre o modo como o
amor e a traição desencadeiam as metamorfoses do Self da personagem
principal do texto, Miss Amelia Evans. Metamorfoses estas que são acompanhadas
e observadas pelos habitantes da pequena povoação do Sul dos EUA, onde decorre
a acção. A população funciona praticamente como o coro da tragédia grega,
pautando a acção e comentando o desenrolar dos acontecimentos.
O carácter solitário, rude, avarento e belicoso de Miss Amelia, a
mulher mais rica da zona, é subitamente adoçado pela chegada de um nebuloso
primo - parentesco nunca verdadeiramente confirmado -, o primo Lymon, um
corcunda frágil, pequeno e insinuante, de espírito empreendedor. Para espanto
da população, Miss Amelia não só não contestou as pretensões de parentesco de
Lymon, como o recebeu em sua casa. A partir desse momento, a sua disposição de
espírito torna-se mais suave e alegre, como se a chegada daquele corcunda
tivesse o efeito de revelar a Miss Amelia uma parte de si que até aí todos
desconheciam, inclusive ela própria. O resultado dessa metamorfose, provocada
pelo amor, é a abertura do Café, um estabelecimento animado pela presença de
Lymon e onde a população encontrou, ao contrário do que diz o título do conto,
um lugar de alegria na desolação que era a vida de todos.
A súbita e inesperada chegada do rufia Marvin Macy, antigo marido de
Miss Amelia, que ela suportou apenas por dez dias, veio alterar a situação que
parecia estabelizada há vários anos já. Tendo estado preso durante muito tempo
numa penitenciária de Atalanta, mal chegou exerceu sobre o primo Lymon um
nefasto fascínio. Esse fascínio conduziu, primeiramente, a um equívoco
triângulo amoroso, onde Miss Amelia e Marvin Macy disputam a atenção, ou o
amor, do corcunda. Por fim, ambos se confrontam numa luta de boxe, no café,
assistida pela povoação em peso. A vitória de Marvin Macy só se tornou possível
pela intervenção do corcunda. A humilhação de Miss Amelia fica completa pelo
desaparecimento do ex-marido acompanhado pelo primo Lymon.
A traição de Lymon desencadeou uma derradeira metamorfose identitária
em Miss Amelia, onde o antigo vigor e doçura desapareceram, como se a
identidade se dissolvesse e se preparasse para se extinguir, para se tornar um
resíduo pontual que lembra, como se fosse um negativo fotográfico, a identidade
pontual e vazia da filosofia cartesiana, como se toda a biografia não fosse
mais que o prelúdio da sua própria extinção, uma extinção lenta, triste e
dolorosa, sob os olhos do coro trágico da população daquele nenhures do sul dos
Estados Unidos.
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