O romance permite, muitas vezes, associar o prazer estético da obra com
uma certa aprendizagem sobre a dimensão social da vida humana. Não que o romance
vise apreender e explicar o social, mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite
que o leitor compreenda certas realidades de uma forma mais viva que aquela que
lhe é dada pelo estudo de um documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da tradição burguesa da Europa
central e do norte, de cariz protestante. O ethos
burguês, uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua
plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio da
cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a intriga nuclear
da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não deixa de ter um ar estranho
e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda reticência com que a Alemanha
da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais curioso, aquilo que hoje se ouve acerca
dos europeus meridionais era a voz corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros,
seus irmãos do sul da Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É como se houvesse, impregnada
na mente da espécie humana, uma espécie de racismo geográfico, onde o Sul surge
sempre como inferior ao Norte.
No apogeu do sucesso empresarial, político e pessoal, Thomas Buddenbrook
sente um deslassar interior como se os acontecimentos, que até aí dominara, começassem
a fugir ao seu controlo. Não era nada de visível, apenas uma sensação interior.
Os gregos diriam que a Tyche (a deusa
Fortuna para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período helenístico,
a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela concedesse os seus
favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém, associa essa perda de
domínio sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a realidade aos seus projectos,
não ao abandono da deusa mas a um excesso seu. A sua nova casa, a troca da rica
casa, onde se instalara ao casar, por outra maior e mais esplendorosa. Este excesso,
esta ultrapassagem da justa medida, é aquilo a que os gregos do período clássico
chamavam hybris. Embora Thomas Mann não
fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo. Thomas Buddenbrook
sente o delíquio interior como uma punição do seu excesso. Aqui, de forma talvez
surpreendente, percebe-se a conexão entre o mundo burguês do século XIX e os gregos
da antiguidade clássica. A ordem dos negócios, para os burgueses modernos, ou a
ordem pessoal e cívica, para os antigos gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no auto-conhecimento,
o qual nos diz que limites não devemos ultrapassar.
Havia, na época clássica dos gregos, a esperança de que uma conduta sensata
evitasse os desvarios da fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna
está sempre ligada a um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar.
De certa maneira, Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa que a situação
social lhe impõe. Deste ponto de vista, Os
Buddenbrook escondem sob o modelo romanesco uma intencionalidade trágica. Mas
aquilo que talvez seja mais interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época
a que corresponde o romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é
possível fazer uma conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi reduzido ao puro jogo (o jogo dos
mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche,
está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos aventureiros.
Como no período helenístico, a Tyche tornou-se
arbitrária e cega. Ora o período helenístico marca o começo do fim do esplendor
dos gregos, o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só
espantará quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.
Os Buddenbrook são um reflexão
sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes
ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe
morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por
uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que dentro
das famílias não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções
sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa
família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou
não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade
de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o
medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio
monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo
perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado
Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro
republicano.
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