Trinta e três poemas compõem a Terceira Miséria, de Hélia Correia. O livro
abre com uma interrogação, o sinal de uma dúvida, retomada de Hölderlin - Para quê, perguntou ele, para que servem / Os
poetas em tempo de indigência? (poema 1) - para ser rematado com uma reformulação
do princípio de esperança, não de uma esperança que, nestes tempos de indigência,
tudo acabe bem, mas que algo comece, a esperança de um início: ... e de barulho /Atrás do qual vem o poema, atrás
/Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início (poema 33).
Esta súbita junção entre o começo e o fim do livro proporciona o horizonte
onde se move a escrita. Para que servem poetas em tempo de indigência? A resposta
é dada obliquamente pelo produto do trabalho do poeta, o poema. Ele marca um início.
No poema o mundo incoaria, como se o poema fosse um ovo, onde o passado se sintetiza
e metamorfoseia numa nova possibilidade. Ainda no último texto é dito: De que armas disporemos, senão destas /Que estão
dentro do corpo: o pensamento, A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso,
uma noção de casa / E de hospitalidade... (poema 33). Todo este passado grego
- e o abuso que sofreu durante milénios - repousa no poema, como se ficasse sugerido
que desses materiais heteróclitos um novo mundo, ainda por precisar, pudesse subir
ao palco com os seus novos cenários e figurinos.
Para mediar entre a pergunta crepuscular de Hölderlin e a sua resposta
auroral, Hélia Correia utiliza figuras como a beleza, a loucura, a morte e a miséria.
A beleza é a beleza helénica, uma beleza substancial - Que uma antiga substância, essa beleza /Que podia tocar-se num recesso /
Da poeirenta estrada, no terror / Das cadelas nocturnas, na contínua / Perturbação,
morada de alegria; (poema 1) -, mas também uma beleza dada pelo espanto pela
dádiva do logos: Essa beleza que era espanto / Pelo dom da palavra e pelo seu uso / Que erguia
e abatia, levantava / E abatia outra vez, deixando sempre / Um rasto extraordinário
(poema 2).
A percepção dessa beleza grega, o princípio originário do nosso mundo,
é pautada pelas estações de um contínuo empobrecimento. Este funda-se na morte do
mito e do seu esquecimento: Sim, foi essa / A primeira miséria, a deserção / Dos
deuses. A segunda, a sua morte, / Já na morte de Pã anunciada / Pelo lamento dos
bosques, o clamor / Lutuoso das ilhas de Egeu (Poema 18). O que significa a morte
dos deuses, essa segunda miséria? A morte,
uma falência quotidiana / Da limpidez, da arte e da divina / Coloquialidade com
o mistério... (poema 19). A deserção e, depois, a morte dos deuses conduz ao
corte com o mistério. A proximidade com este desapareceu, o que originou uma nova
miséria, não a terceira, mas uma miséria fundada num divertimento funesto, o da
hermenêutica. E veio outra miséria, em interlúdio:
/ A miséria da interpretação / Que tudo trai (poema 20). O mistério vivo da
beleza grega é agora tomado pela erudição, pelo exercício contínuo da traição a
uma vida da qual perdemos a chave.
Estas etapas do empobrecimento preparam a terceira miséria, aquela que
diz respeito à nossa indigência contemporânea. A terceira miséria é esta, a de hoje / A de quem já não ouve nem pergunta.
/ A de quem não recorda (poema 23). Esta é a mais terrível das misérias, é a
da indigência que nem sequer chega a formular-se: Por sobre estes lamentos, quando a mesma / Palavra, a indigência, nos ocorre
/ Sem que nos atrevamos a usá-la, / Porque sem deuses, sem o sentimento / Sequer
da sua falta, nós nascemos, / E incapazes de lembrar... (poema 6).
A nossa indigência, a miséria do nosso tempo, só é compreensível pela oposição
com aqueles que, estando relativamente perto de nós, ainda pressentiram o eco longínquo
da grandeza helénica. Hölderlin e Nietzsche enlouqueceram. Byron morreu lutando
pela Grécia. Hölderlin não suportou essa ausência que ecoava no fundo do seu ser:
Não sei perseverar assim, escrevia / O da
meiga loucura. Perguntava / O que dizer, o que fazer, enquanto / Não voltassem os
muito apetecidos, / Os grandemente antigos, esses sábios / Que se engasgavam nos
banquetes... (poema 13). Também Nietzsche não resistiu ao encantamento: Só mais tarde o outro, / O que desconhecia a
mansidão / E enlouqueceu de modo diferente, / Se apercebeu do uivo que soltavam
/ As ilhas todas, com as suas praias / E os seus bosques vazios. Pois o luto / Leva
tempo a formar uma linguagem (poema 10). Apesar da morte dos deuses e da distância,
a Grécia no século XIX ainda tinha força suficiente para chamar os jovens da Europa:
Tu, Grécia, semelhante a heroína / Sujeita
a vilipêndio, tu a quem / Acorreram os jovens da Europa, / Os de linhagem, como
impacientes / Por qualquer boa espécie de jornada (poema 27). Entre esses estava
Byron, que ali encontrou a morte. Oh Grécia
que chamaste Byron como / Incestuosa irmã, tu que lutavas... / (...) / Parecias
levar tudo tão a sério / Que tu própria quiseste matar Byron / Deitando-o devagar,
adoecendo-o, / Poupando-o ao confronto e à derrota, / Porque derrota houve uns anos
mais (poema 27).
A Grécia foi assim uma atracção fatal para o espírito europeu do XVIII
e do XIX. Enlouqueceu e conduziu à morte, para entrar, depois, na terra do esquecimento.
Hélia Correia escreve uma epopeia do esquecimento. Não por acaso, a generalidade
dos versos são decassílabos heróicos, que captam não a expressão de um sentimento
do sujeito poético, mas a objectividade de uma perda. Hölderlin, Byron e Nietzsche
são os heróis impotentes, sinais de um mundo que a modernidade, depois de uma leve
inquietação no Renascimento, acabou por relegar para a zona escura do recalcado,
a zona da nossa indigência, dessa incapacidade já de rememorar não a vida mas o
reflexo dessa vida na arte e no espírito.
Como todos os dias descobrimos, pertencemos a um mundo que nada sabe desses
gregos, nada quer saber.
Na Ilíada, Aquiles, na parte final da obra, retorna ao combate do qual
se afastara devido ao conflito com Agamémnon. Ulisses, no final da Odisseia, retorna
a casa e aos braços da mulher. De certa forma, encontramos em ambas as epopeias
de Homero o restabelecimento de um estado natural que tinha sido desfeito. Hélia
Correia, porém, não tem qualquer ilusão sobre o retorno dos deuses, o retorno do
mito, o restabelecimento dessa antiga natureza. Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta /
E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo
é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita (poema 30). Essa Grécia,
que enlouqueceu Hölderlin e Nietzsche e levou Byron para a morte, não voltará, mas ... pode/ No entanto escutar-se,
no entanto / Reler-se, no entanto caminhar / Em direcção diversa, magoar / Novamente
os joelhos na jornada? (poema 31) Esta interrogação é já, paradoxalmente, a
afirmação de um caminho, do caminho que resta. Reler e escutar. Escutar essa Gente do Sul, / Gente que um dia
se desnorteou (poema 32). A releitura do que nos ficou, a escuta das praças
que de novo se enchem: Estão as praças, /
Como ágoras de outrora, estonteadas / Pela concentração dos organismos, / Pelo uso
da palavra, a fervilhante / Palavra própria da democracia, Essa que dá a volta e ilumina / O que, por um
instante, a empunhou (poema 32). Todo esse barulho atrás do qual vem o poema
- não foi assim com a poesia homérica? - e que marca não o ressuscitar de um mundo
morto, mas um início, um novo começo.
Para quê poetas? Perguntou Hölderlin. Para marcarem o tempo de um começo,
aprendemos com Hélia Correia.
Hélia Correia (2012). A Terceira Miséria. Lisboa: Relógio d'Água.
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