Desde a sua publicação, em 1842, que O Capote sugeriu imensas e desencontradas leituras. Muitos dos
grandes escritores russos dizem-se devedores de Gógol e deste conto. A
introdução de Filipe Guerra dá uma breve panorâmica da influência do texto.
Mais uma leitura, apesar de ser uma leitura de um não especialista, não fará
grande mal ao conto nem ao mundo, e os grandes textos servem para isso mesmo,
para serem lidos e interpretados de maneira plural e contraditória. Uma das
leituras que encontrei na internet dizia que Gógol era um escritor sem
preocupações filosóficas, tentando retratar a gente simples e a sua vida. Mas
será assim? Será O Capote o
retrato ingénuo, não filosófico, de um pobre burocrata russo perdido na
imensidão de São Petersburgo?
O episódio da escolha do nome do protagonista, Akáki (Akáki
Akákievitch, isto é, Acácio filho de Acácio), revela de imediato que se está
perante um problema de identidade. O narrador diz mesmo que "houve
circunstâncias que, por si sós, tornaram impossível que lhe fosse dado outro
nome que não este". Essas circunstâncias são o facto de a mãe,
já viúva na altura do parto, não ter gostado de nenhum dos nomes
sugeridos, optando por esta duplicação em relação ao nome do pai. Aquilo que é
apresentado como uma necessidade - o facto de ele não poder receber outro nome
- não passa de uma decisão arbitrária da mãe. Esta subtil apresentação da
identificação do protagonista serve para traçar uma conexão com a sua
personalidade. Não apenas o seu nome é uma cópia do nome do pai, como o centro
da sua vida, enquanto funcionário público e como simples ser humano, é a de se
entregar à cópia de documentos. Quando um dia, alguém tomado pela comiseração,
lhe propõe um trabalho ligeiramente menos repetitivo, Akáki perde-se e tomado
pelo pânico implora o retorno à sua função de copista.
A iteração, a repetição ritual de gestos, mostra-se, através desta
estratégia narrativa, como um dos pontos centrais da identidade. Toda a
identidade surge como uma arbitrariedade que começa por ser mostrada como uma
necessidade, para depois se consolidar no exercício sistemático da sua
repetição. O conselheiro titular Akáki Akákievitch não é o símbolo da pobre
burocracia russa, mas a imagem de qualquer homem no esforço para perseverar na
sua identidade. Apesar das circunstâncias que o rodeavam lhe serem
desfavoráveis - o caso de ser alvo da troça de todos os seus colegas - o
exercício da repetição assegurava-lhe - assegura a cada um de nós - a
estabilidade de um eu.
O capote, que dá título à novela, surge na narrativa como o elemento
que desencadeia uma revelação complementar sobre a identidade. O novo capote de
Akáki Akákievitch gera, entre os seus colegas, um momento de espanto e de
admiração, de tal maneira que o convidam para uma festa nocturna.
Contrariamente às suas rotinas, aceita. Quando volta da festa é assaltado e o
seu novo capote é roubado. Nas diligências para mover a burocracia policial a
encontrá-lo, o pobre conselheiro adoece e morre. A morte não é o fim da
história. Morto, Akáki Akákievitvh transforma-se em fantasma. Um fantasma que
assalta os transeuntes e lhes rouba o capote. Esta transição de uma narrativa
realista para o registo fantástico permite a Gógol iluminar uma outra faceta da
identidade, o seu carácter fantasmático.
Toda a identidade é uma projecção de si no além, um excesso que
ultrapassa a circunstância física e faz continuamente renascer o eu muito para
lá das enunciações em que ele toma a palavra e diz eu. A ironia de Gógol é uma
estratégia que permite escalpelizar a construção da identidade, revelar-lhe as
características, mostrando que ela é gerada arbitrariamente, embora nos parece
ser fruto de uma necessidade inequívoca, que se mantém pelo exercício ritual da
repetição, essa cópia que se copia indefinidamente, e que se prolonga de si
para os outros de forma fantasmática. Dos outros, apenas temos o seu fantasma e
para eles também não passamos disso, mesmo que estejamos convencidos da solidez
do nosso eu e do eu dos outros. O Capote é um irónico exercício de
desconstrução da ficção identitária que produzimos como condição de estar e
suportar o mundo.
Inopinadamente, o texto sobre uma pessoa comum revela-se como uma
meditação sobre o eu e a identidade, meditação essa que deve ser recolocada no
âmbito de uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a
filosofia moderna sobre essa enigmática coisa a que designamos através do
pronome pessoal da primeira pessoa, eu ou ego, ou por intermédio dos seus
rebatimentos na terceira pessoa, o si ou o ipse ou o self.
Nikolai Gógol (2011). O
Capote. Lisboa: Assírio e Alvim. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe
Guerra. Introdução de Filipe Guerra.
Sem comentários:
Enviar um comentário