1. Universos totalitários – sexo, dor,
dominação e totalidade
Justine ou les Malheurs de la Vertu
era uma das obras do Marquês de Sade que, devido à incultura geral que por vezes
me acomete, nunca tinha lido. O texto merece meditação, tanto por aquilo que ele
reflecte como por aquilo que anuncia. Este texto é escrito como se nada se soubesse
do seu autor nem das outras obras que escreveu, incluindo a terceira versão de Justine denominada La Nouvelle Justine, ou Les Malheurs
de la Vertu. Considera-se apenas esta obra em si mesma e os mundos que ela propõe
ou revela.
Genericamente, as pretensas experiências sexuais a que, contra-vontade,
a virtuosa Justine é exposta são, na sua
essência, experiências de universos totalitários. Nos vários episódios que lhe acontecem,
o que se depara ao leitor são mundos fechados onde um exercício despótico de poder
se manifesta em toda a sua amplitude, a qual vai até ao poder sobre a vida das vítimas.
O horizonte das experiências sexuais narradas, em que se inclui o prazer sexual
proveniente da violência sobre o outro, é um universo ocluso onde a única liberdade
pertence aos libertinos que o comandam.
Justine começou por ser um conto
denominado Os Infortúnios da Virtude,
escrito por Sade em 1778, na prisão da Bastilha, cerca de dois anos antes do início
da Revolução Francesa. O conto evoluiu para o romance que comentamos, publicado
em 1791, cerca de dois anos depois do início da Revolução. Poder-se-ia, não sem
propriedade, ver nesta obra de Sade o anúncio profético do período do Terror (entre
finais de Maio de 1793 e finais de Julho de 1794). Nele, os jacobinos, sob égide
de Robespierre e da facção da Montanha, suspenderam todas as liberdades e garantias
dos cidadãos, perseguiram e assassinaram a seu bel-prazer os adversários bem como
os próprios jacobinos sobre os quais recaísse suspeita de falta de zelo revolucionário.
Os universos descritos por Sade, que aparentemente são apenas universos
sexuais e não políticos, anunciam já uma realidade bem mais tenebrosa do que o tenebroso
período do Terror da Revolução Francesa. Anunciam os universos totalitários que
tomaram conta da Europa na primeira metade do século XX, universos que se prolongaram
pelo mundo fora, como o mostra a terrível experiência do Cambodja. Não se está apenas
perante tiranias. As relações que algozes e vítimas estabelecem na narrativa de
Sade prefiguram os regimes políticos totalitários, onde todas as esferas da vida
social estão submetidos ao Estado, e àqueles que exercem o poder dentro desse Estado.
A dominação paranóica que as grandes figuras dos regimes totalitários, de esquerda
e de direita, exercitaram não é diferente daquela que encontramos exercidas pelos
libertinos nos diversos mundos pelos quais passa a infeliz Justine. O próprio prazer que esses libertinos extraíam da dominação
e da submissão absoluta das vítimas, bem como da violência que sobre elas exerciam,
pode estender-se ao prazer que os mais destacados elementos dos regimes totalitários
do século XX encontraram no exercício do poder. A própria organização burocrática
de certos “mundos” descritos por Sade (por exemplo, o do mosteiro ou o da casa do
médico/mestre-escola) prenuncia já o princípio organizacional que presidiu à Shoah nos campos de concentração nazis ou
aos gulags soviéticos.
Não devemos, porém, ficar siderados pela terrível experiência dos regimes
totalitários. Se olharmos para os universos de muitas empresas na era da globalização,
a sua semelhança com o narrado por Sade é completa. Que o resultado de muitas das
hipermodernas técnicas de gestão seja a doença psiquiátrica e o suicídio dos funcionários
deve permitir compreender a conexão entre esses mundo e aqueles que Sade descreve.
De Sade a certas empresas globais, com as suas impiedosas técnicas de gestão de
recursos humanos, passando pelos regimes totalitários, há um fio condutor, o do
desejo que pode. E por poder, esse desejo aniquila os outros desejos, aqueles que
habitam os outros, os que não podem, começando por exigir submissão, passando pela
subversão do desejo desse outro, acabando na sua morte
Sade não é importante apenas pela revelação literária do sadismo. É importante
também porque é uma das figuras centrais da modernidade ao desenhar os universos
oclusos e totalitários onde a praxis sádica pode ocorrer. Não há sadismo consentido.
Toda a dor para causar prazer, neste universo sádico, tem de provir daqueles que
a sofrem contra-vontade. Daí a necessidade do espaço concentracionário de natureza
totalitária, daí a inquietante actualidade do divino Marquês.
2. A lei da natureza e a virtude infeliz
Sublinhou-se a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e
referiu-se a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos
são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde
Justine se vê envolvida, tanto as vítimas
como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos,
submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos,
à violência do desejo.
Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente.
Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos
e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam
a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta
ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na
vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo
ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando
Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e
entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação
da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais,
com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certas concepções sofísticas
contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.
Esta concepção da lei da natureza permite perceber como os universos totalitários
se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por
seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros
e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude –
mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa
leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo
e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que
o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá
impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e
a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição
até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens
habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil,
o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes
na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.
3. Libertinagem e conversão
Para concluir a leitura retomo, aplicando-a a um discurso complexo como
um romance, a teoria dos speech acts de
J. L. Austin, depois prolongada por John Searle. Esta teoria distingue entre actos
locucionários, actos ilocucionários e actos perlocucionários. Muito resumidamente,
actos locucionários são os actos de enunciação. Neste caso, por analogia, corresponde
ao texto produzido por Sade. Os ilocucionários referem-se ao que fazemos quando
dizemos alguma coisa. Posso prometer, avisar, constatar uma certa realidade ou facto,
narrar um conjunto de peripécias. Do ponto de vista ilocucionário, a Justine é a narrativa de um conjunto de peripécias
em torno da personagem. De certa forma, a dimensão ilocucionária foi já analisada.
Falta a dimensão perlocucionária. Esta refere-se àquilo que o auditório
de uma comunicação é levado a fazer pela conjugação das acções locucionária e ilocucionária.
Dito de outra maneira, o que pode ser levado a fazer aquele que lê este texto? Aqui
retomo uma ideia inicial. Ler o texto como se não soubéssemos mais nada dele a não
ser aquilo que ele diz, como se não soubéssemos nem quem foi o seu autor nem qual
o desenvolvimento das suas ideias. O texto supostamente libertino que temos à frente
pode gerar dois tipos de reacções. Aqueles que se identificam com a lei do mais
forte e podem considerá-lo como um manual escolar de instrução para a via libertina.
Estes serão uma minoria, pois o ser humano, na sua globalidade, é uma mistura de
animal e de ser racional e moral. A consciência moral, aquele que Kant supunha presente
em todos os homens, sente, porém, diante da narrativa de Sade um asco crescente
pelas praxis libertinas.
O carácter totalitário, o despotismo, o homicídio, o estrupo, o aviltamento
do mais fraco, tudo isso presente nos quadros que Justine narra, acabam por constituir um choque para a consciência moral
e ter um efeito contrário à ideologia libertina, uma espécie de vacina. Ler a Justine pode ter mesmo um efeito religioso.
O universo irreligioso narrado é tão repugnante que conduz espontaneamente à atitude
contrária, como efeito perlocucionário. Se não se soubesse quem era o autor e o
desenvolvimentos posterior da sua obra, desconfiaríamos que se estava perante um
livro apolegético do cristianismo. O próprio Sade, no texto, prevê isso, pois a
irmã de Justine, uma libertina soft, ao
ouvir a narrativa das peripécias pelas quais passa a irmã, e após a morte desta
fulminada por um raio, converte-se e entra para um mosteiro. Mesmo que este final
possa ter sido estratégico, no sentido de fazer passar um mundo libertino sob a
capa de um caminho de conversão, a verdade é que o texto de Sade, mesmo sem esse
fim, tem um potencial de conversão religiosa e moral que não é aquele a que habitualmente
ligamos as obras do aristocrata francês.
Com a experiência de S. Paulo na estrada de Damasco apreendemos a conversão
como uma súbita e radical mudança de ponto de vista induzida por uma revelação.
É este modelo que é explorado por Sade na conversão da irmã de Justine. Em Paulo de Tarso é a revelação
divina que o conduz à conversão. No texto de Sade, é a revelação da negatividade
libertina que produz idêntico efeito.
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