O título do livro de Jonathan Littell, As Benevolentes (Les
Bienveillantes, no original francês), coloca a obra sob a égide de Ésquilo
e da Oresteia, isto é, da tragédia
clássica grega, o que é acentuado pela dimensão musical presente na denominação
dos capítulos (Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabanda, Minuete em
rondó, Air, Giga). O que nos pode indicar que, em última análise, estaríamos,
com a violência desencadeada pelo nazismo, perante a emergência transbordante,
no palco do mundo, das forças dionisíacas, com os seus grandes cortejos
dançantes de horror e sangue.
Por outro lado, a matéria da narrativa, os acontecimentos da
II Guerra Mundial, e a mescla de personagens fictícias e de personagens reais
colocam o romance na categoria de romance histórico. A história seria agora
contada por um daqueles que perdeu, Maximilien Aue, um oficial das SS, por um
dos inúmeros carrascos que levaram a morte a milhões de pessoas em nome de uma
ordenação do mundo segundo uma delirante hierarquia rácica. A figura do
carrasco não deve ser lida como mera metáfora indiciadora de um comportamento
de violência extrema. Deve ser tomado no sentido estrito do funcionário
encarregado de executar uma sentença de morte.
Vale a pena recordar a caracterização feita pelo conde
Joseph de Maistre, em Les Soirées de Saint-Petersbourg, da figura
do carrasco (ler o
excerto). É uma figura inexplicável pela lógica humana, evidenciando, na
verdade, uma eleição divina, e, ao mesmo tempo, é o horror e o laço que permitem
aos homens viverem uns com os outros. Sem ele, “a ordem dá lugar ao caos, os
tronos precipitam-se no abismo e a sociedade desaparece”. O carrasco é, pelas
características sublinhadas por Maistre, uma figura apolínea, cuja função é
assegurar que as sociedades continuem a funcionar, eliminando aqueles que as
põem em perigo. Apesar do temor que provoca nos homens e do horror da sua
profissão, ele tem prazer na qualidade do trabalho que executa, na sua
eficiência e eficácia, no cumprimento estrito do dever.
O que torna o romance de Littell particularmente
interessante é o casamento das forças dionisíacas e apolíneas nos nazis
alemães. A personagem de Maximilien Aue serve para uma longa meditação
narrativa sobre a natureza do carrasco. O oficial SS constitui-se como
arquétipo de todos aqueles que acreditaram ser sua missão no mundo eliminar
todos os que, por natureza racial ou por convicção ideológica, se opunham à
sociedade distópica nascida na mente dos responsáveis políticos nazis. Nele
confluem, em tensão, tanto na vida pessoal como na acção político-militar, as
pulsões dionisíacas e a inclinação apolínea.
A construção da vida pessoal de Aue, decalcada da Oresteia, tem por fundo o
desaparecimento do pai e o ódio que devota à mãe, que acusa de ser responsável
pelo abandono a que a família foi votada. Do pai, na verdade, nada se sabe, mas
Maximilien parece estabelecer, pelo menos inconscientemente, uma analogia entre
o desaparecimento do pai e a morte de Agamémnon às mãos de Clitemnestra, sua
mulher, e de Egisto, o amante desta, na primeira peça da Oresteia. Ele é um Orestes abandonado que possui um ódio nunca
disfarçado à mãe. Embora, o romance nunca o esclareça, tudo indica que
Maximilien seja o responsável pelo assassinato da mãe e do padrasto, numa
reactualização da tragédia de Ésquilo.
Esta dimensão da formação do carácter da personagem
principal é completada pela relação incestuosa que mantém com a irmã gémea Una.
Esta acabará por ultrapassar a situação e colocar o incesto como uma mera
experiência do passado que não pretende repetir. Max, porém, nunca abandona o
desejo de união e de fusão com e na irmã. Este desejo frustrado de se perder na
fêmea original (Una remete para a ideia de uma unidade primordial, para uma
indistinção entre o masculino e feminino) é o outro lado da sua sexualidade
marcada pela homossexualidade, na qual ele, ao entregar-se passivamente a
outros homens, acaba por se reencontrar como sendo a sua própria irmã gémea.
Toda esta dimensão trágica, marcadamente dionisíaca, tem
contudo uma contrapartida apolínea. Esta dimensão residirá menos no Max Aue que
escapa, no pós-guerra, à Alemanha e à punição, casando em França, constituindo
família e dirigindo os seus negócios, do que na sua formação. A formação em
direito e o interesse na área da filosofia – para além de uma cultura alargada
no campo da literatura e da música – dão ao narrador e protagonista da obra uma
dimensão de racionalidade adequada à pulsão apolínea. No entanto, esta pulsão
apolínea não se manifesta na ordem moral ou política severa, mas na dimensão
técnica, na eficiência com que se entrega às suas funções de oficial das SS,
sejam essas as de matar ou as de calcular como tornar os campos de concentração
mais eficientes para o esforço de guerra nazi.
O romance de Littell permite deste modo encontrar uma
explicação para o mistério da função do carrasco, mistério esse sublinhado por
Joseph de Maistre. De um ponto de vista abstracto, poder-se-á dizer que o
carrasco resulta de uma combinação das pulsões dionisíacas com as apolíneas,
mas onde as primeiras, com todo o seu desejo de destruição das formas e das
diferenças, não são contidas pelas segundas, as quais abandonam a sua
preocupação com a ordem moral e política do mundo, como acontecia na
antiguidade clássica, para se concentrarem nos aspectos técnicos da acção no
mundo.
O carrasco é, na verdade, uma figura metafísica tal como a
intuíra Joseph de Maistre, mas não por ter sido o resultado de uma escolha
divina. O carrasco é o resultado de um desequilíbrio entre as forças
destruidoras e caóticas do dionisismo e das forças racionalizantes e
ordenadoras da dimensão apolínea. Este desequilíbrio, na idade moderna,
manifesta-se pela sujeição da razão à técnica. A razão não serve agora para
suster as pulsões destrutivas mas para as tornar eficazes, trazendo uma ordem à
produção do caos. O carrasco é o resultado de uma falência das forças
formadoras do indivíduo. Num tempo em que a quantidade se sobrepôs à qualidade,
o nazismo significou a multiplicação dos carrascos, transformando milhões de
seres humanos aparentemente normais nessa figura sinistra, da qual todos se
afastam.
A formação do carácter de Maximilien Aue é apenas uma parte
do romance. A outra é a da sua acção. O leitor acompanha o percurso do oficial
nazi na frente Este. Da Ucrânia a Estalinegrado, Jonathan Littell dá a ver a
organização meticulosa do exercício da função punitiva que cabe aos carrascos.
No caos da guerra, na grande dança báquica que é todo o conflito militar, Aue e
os outros oficiais alemães emergem como um princípio de racionalidade. Ora esta
racionalidade técnica – a procura de eficácia no combate, no genocídio e na prática
de outros crimes de guerra, bem como na organização dos campos de concentração –
está ancorada em duas ideias centrais. Em primeiro lugar, a convicção de que os
alemães são não um povo eleito mas o povo eleito. Esta eleição permite-lhes
tudo para ordenar o mundo segundo essa crença. Tamanha fé, como toda e qualquer
grande fé, traz com ela um dever ser, um imperativo ou mandamento que ordena
agir em conformidade com aquilo em que se crê.
Os crimes não são, desse modo, para os nazis e para o
próprio Aue, apesar da sua sofisticação intelectual, crimes mas o mero
cumprimento do dever. O que poderá haver de repugnante na prática de certo tipo
de acções – fisiologicamente repugnante, sublinhe-se – com a continuidade torna-se
um hábito, e um hábito, como ensinou Aristóteles, é uma segunda natureza. Esta
conjugação da crença na eleição do povo alemão, com a concomitante
desqualificação dos não alemães à condição de sub-humanos, e do dever que a
razão deduz dessa crença conduz-nos a uma consciência não atormentada pelo mal
praticado. E este é o ponto central. A acção de um carrasco só é possível
porque, na sua consciência, se legitimou o direito a torturar, violentar e
executar todos aqueles que a ordem política nomeia como objectos do seu
trabalho. É essa consciência que permite a Maximilien Aue dizer, logo no início
do romance, que desde “o fim da guerra
mantive-me um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como
alguns meus ex-colegas, de escrever as minhas Memórias com intuitos de
justificação, porque nada tenho a justificar”.
O que Jonathan Littell nos dá a ver é a formação e o
funcionamento, num singular cruzamentos de pulsões dionisíacas e de inclinações
apolíneas, da consciência do carrasco. O mal que este pratica não lhe afecta a
consciência e, por isso, não sente quaisquer remorsos ou necessidade de
justificação ou de prestação de contas. E não o sente porque as suas acções
dimanam de uma ordem supra-pessoal, provêm do poder político, ao qual os
agentes se limitam a obedecer, pois esse é o seu dever. Como diz Aue: “Não me
arrependo de nada; fiz o meu trabalho, e foi tudo”. Em última análise, através
da figura de um carrasco, daquele que pratica o mal por dever, somos colocados
perante o enigma do poder político, o qual assenta no carrasco e, por isso, o
legitima.