O sucesso internacional de Os
Frutos da Terra (Markens Grøde,
no original norueguês), publicado em1917, é apontado como uma das causas
decisivas para a atribuição a Knut Hamsum do Prémio Nobel da Literatura, em
1920. O romance é, na verdade, uma espécie de epopeia centrada na glorificação
da vida na terra e do valor da persistência do indivíduo perante os problemas
que a natureza e a sociedade lhe colocam. No centro da narrativa está um herói
inesperado, o colonizador de terras pantanosas da Noruega, Isak de Sellanraa.
Esta epopeia, apesar da poeticidade inerente ao apelo da Terra e ao carácter
ferozmente individualista do herói, inscreve-se claramente no combate que Knut
Hamsun – ele que foi um dos grandes modernistas na literatura – trava contra a
modernidade, em nome de uma relação mais profunda do homem com a natureza.
Apesar da importância no desenrolar da intriga de figuras femininas como Inger, a mulher de
Isak, Oline, parente de Inger e personagem perigosa pelo seu oportunismo e
tendência para a coscuvilhice, e de alguns vizinhos, a obra funda o seu sentido
em quatro protagonistas masculinos. O herói Isak, os seus filhos varões Eleseus
e Sivert e o meirinho da aldeia próxima da quinta de Isak, Geissler, o qual foi
destituído do seu posto ainda numa fase inicial da narrativa. Isak representa o
ideal do homem em contacto com a natureza. Duro, persistente, trabalhador, mas
marcado pelo grande amor à terra e à família. É a personificação do ideal do
homem do campo, aquele que está em contacto com o que há de mais essencial na
vida. Um individualista que, apesar desse individualismo, se liga à grande
tradição dos homens que transformam, pelo trabalho, a terra num jardim. Tudo
nele o afasta da modernidade, enquanto projecto ideológico contaminado pelo
liberalismo económico e pela visão burocrática e desencantada do mundo.
Curiosamente, Isak o inconsciente herói anti-moderno não desdenha as conquistas
tecnológicas trazidas pela modernidade.
O meirinho Geissler é a personagem mais misteriosa do romance. Ele
próprio se designa como sendo nevoeiro. Vê o que é certo, mas não tem o
poder para o realizar, segundo afirma. Tudo nele é nebuloso. É nebulosa a
história que o leva a perder o lugar de meirinho, como é nebulosa a sua vida
posterior e os poderes que possui, entre eles a sua capacidade económica e a de
influenciar a justiça. Desde o início que se constituiu como uma espécie de
anjo protector de Isak de Sellanraa e da sua família. Ajuda Isak a adquirir os
terrenos da sua quinta ao Estado, ajuda Inger, devido a um caso de infanticídio,
perante a justiça, proporciona alguns negócios lucrativos à família. Tudo isto
em troca de nada. No último capítulo, Geissler pergunta a Sivert quantas
quintas há naquela zona. Este responde que são dez. Geissler diz então: Dez propriedades? Bem estou satisfeito. O
país precisa de 32 mil homens como o teu pai, digo-te eu, que o calculei.
Geissler é o anjo da ideologia, uma espécie de deus ex machina que resolve certos problemas e dá uma orientação e
um sentido: Escuta, Sivert: alegra-te!
Têm (os de Sellenraa) tudo porque viver, tudo com que viver, tudo em que
acreditar, nascem e dão à luz, e são essenciais à terra. Nem todos o são, mas
vocês sim: essenciais à terra. Sustentam a vida. Persistem de geração em
geração e sentem-se completos ao simplesmente procriar; quando morrem, os
filhos tomam o vosso lugar. É este o significado da vida eterna.
Sivert é importante na narrativa não apenas porque escutou a anunciação
do anjo da ideologia, mas porque é o continuador da saga iniciada por Isak.
Sivert é o segundo filho varão mas será ele que tomará em mãos a tradição
sagrada do homem da terra. Não é a sua acção no tempo da narrativa que lhe dá
importância, mas o facto de ele assegurar que a epopeia terá seguimento e que a
terra continuará a ser trabalhada por gente vista como essencial. Eleseus é o elemento
contrastante da família. Esteve, ainda jovem, num grande centro, onde adquiriu
hábitos adversos à vida na terra. É a presença do mundo moderno no seio da
família de Sellenraa. Um burocrata pouco vigoroso, talvez pouco masculino, demasiado
preocupado com a aparência e incapaz para o confronto com a natureza. Mais do
que os empresários e engenheiros ligados a uma mina de cobre adjacente à quinta
de Isak, Eleseus é o representante do mundo moderno e liberal. Inquieto,
consegue com a ajuda fraternal de Sivert algum dinheiro e parte, com promessa
de voltar, para a América, o lugar do mundo moderno por
excelência. Nunca voltou.
O que significa o facto de Eleseus nunca ter voltado?
Significa que dali, onde a modernidade se instala, não há retorno possível a um lugar onde a vida seja autêntica. A América não é meramente um país, mas o território da modernidade liberal,
o lugar daqueles que vivem rapidamente – que são relâmpagos, como assinala
Geissler – e que confundem os meios com os fins. O lugar da confusão. Não se
fica a saber nada do destino de Eleseus, apenas que não voltou. Este silêncio,
na economia da narrativa e da ideologia do autor, não é inocente. Seja o que
for o que lhe tenha acontecido, o fracasso ou o triunfo, isso é
irrelevante, porque a vida no mundo moderno é destituída de significação
autêntica. A autenticidade reside no solo pátrio, na luta individual do herói
com a natureza, até domesticar esta. Este silêncio é revelador de uma
opção ideológica do narrador e do próprio autor. Por muito que simpatizemos com
Isak e Sivert, por muito atraente que seja a epopeia narrada, por genial que
seja a técnica de Hamsun – o uso da corrente de consciência e do monólogo
interior, por exemplo –, o livro não deixa de ser inquietante e ajuda a perceber
muito bem a atracção do autor pelo nazismo germânico, onde encontramos muito
desta ideologia. Seja como for, uma grande obra a ler com toda a atenção.
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