Elegia para um caixão
vazio foi publicado pela primeira vez em 1984. Representa, ao mesmo
tempo, a crónica da desilusão de uma geração e a recapitulação da construção de
uma subjectividade, a tentativa, através da rememoração, de solidificar essa
subjectividade, quando o pano de fundo – com os seus mitos e os seus
imperativos – em que ela se formara se desvanece e o mundo, impiedoso, desenha
caminhos tão desencontrados daqueles que o protagonista desejara.
A subjectivação do protagonista gira em torno de dois topos centrais. Na verdade,
trata-se de duas utopias que percorreram uma parte daqueles que pertencem à
geração de sessenta do século passado. Uma dessas utopias é de natureza
política, a da construção de uma sociedade liberta da dominação económica e
social. A outra é de natureza erótica ligada à libertação sexual. É no
confronto com os imperativos da pólis e
com as solicitações de eros que
o indivíduo se constrói e organiza a mitologia e os rituais que compõem a sua
existência.
Tudo isto, porém, é já objecto de um exercício da memória,
como se pertencesse a um outro mundo a cuja verdade, e à maneira do platonismo,
se acedesse através da reminiscência. Esta referência ao platonismo não é
despropositada, pois os mundos utópicos emergem idealizados e os objectivos do
protagonista purificados. No entanto, essa idealização geracional é sempre
apresentada tendo por pano de fundo o trágico da existência com aquilo que a
vida tem de decepcionante e longe da idealidade. O sexo surge como um mundo
caótico e os companheiros de luta política nem sempre se apresentam como
moralmente virtuosos. Mas o contraponto mais verrumante com estes mundos
utópicos reside na tentação omnipresente do álcool. O álcool é a confissão de
que o entusiasmo político e o êxtase sexual estão longe de preencher a ânsia de
plenitude que assola a personagem central do romance.
Entre a idealização e a realidade vai uma longa e cruel
distância. As aspirações políticas da geração de sessenta – ou de uma parte
dela – mostraram-se impotentes para dobrar o curso do mundo. Se o 25 de Abril
ainda apresentou, por um momento, a possibilidade de fazer inscrever o ideal
utópico no terreno concreto das relações sociais, os anos oitenta são um tempo
onde todas as ilusões acabam, e uma imensa decepção se abate sobre quem julgou
ser possível uma revolução social que permitisse aos homens descobrir a sua
efectiva fraternidade e construir uma sociedade mais igualitária. O romance de
Baptista-Bastos também é, por isso, uma crónica da decepção, o reconhecimento
de uma derrota, talvez uma tentativa de salvaguardar, para memória futura, a
elevação moral dos pressupostos da geração a que pertenceu.
O conflito central, estruturante da narrativa, joga-se,
porém e de forma surpreendente, entre o espaço público e o espaço doméstico. Na
verdade, o protagonista escreve em casa rodeado pela família, pela mulher e
pelos filhos, pelo sogro que ali vem ler os jornais. Este é o ambiente onde
está, efectivamente, a personagem principal do romance, uma esfera doméstica,
um mundo tecido pela banalidade da vida familiar, pelas solicitações dos
filhos, pelas injunções da mulher. As aventuras no espaço público – políticas
ou eróticas – são já só recordações, memórias, anamnese. Eis a realidade que se
opõe à exaltação do tempo utópico onde a esperança política estava viva e a
sexualidade era uma promessa, nunca cumprida, de entusiasmo dionisíaco.
Não se trata apenas de mostrar o desencanto de uma geração
que viu o desfazer da sua mitologia, mas também de sublinhar a retracção do
espaço público onde os homens agiam, tanto no domínio político como no erótico.
O caixão vazio é uma metáfora sobre Portugal, a sua configuração, o facto de
parecer não ter lá dentro um povo. Mas por contiguidade, por efeito metonímico,
pode-se pensar o espaço desse caixão vazio como o espaço público de onde parece
haver uma retirada generalizada. Não haverá, por certo, maior confissão de
derrota do homem público do que a sua redução à condição doméstica. É esta
domesticidade que conduz às palavras finais do romance: Creio que estou na idade de escrever um
livro de amor.