Águas da Primavera (1872)
é uma meditação sobre um tema
recorrente da tradição ocidental, a oposição entre o amor puro e inocente, o verdadeiro amor,
e a paixão erótica, a sombra que conduz o homem à perdição. O romance insere-se
numa preocupação de Turguénev com o primeiro amor. Já em 1860 tinha escrito O Primeiro Amor (ver recensão aqui).
Fragilidade e ilusão do amante são os temas retratados nas duas obras. Em O Primeiro Amor é explorada a
situação frágil e impotente do jovem perante a submissão da amada ao desejo e
poder de um homem mais velho, o próprio pai do apaixonado. Na verdade, uma
espécie de anunciação do advento da psicanálise. Em Águas da Primavera o que está em jogo é a fragilidade do amor
perante a sedução erótica.
A primeira parte do romance narra o processo de
enamoramento, na Alemanha, de um jovem russo, Sánin, por Gemma, uma rapariga
italiana, filha dos proprietários de uma pastelaria. O acaso condu-lo ali e
através de um conjunto de peripécias – entre as quais estão o ajudar a recobrar
a consciência ao irmão da jovem, a entrada para o convívio da família, um
passeio pelo campo em companhia não apenas da família italiana mas também do
noivo da jovem (um burguês alemão, encarnação das virtudes comerciais
germânicas, que se viria a revelar cobarde e, mais tarde, desonesto), um
insulto por parte de um militar alemão e um duelo – o jovem russo e a jovem
italiana descobrem o amor e traçam planos para o futuro.
Quando procura satisfazer as condições materiais que
assegurem esse futuro, Sánin encontra uma mulher, também ela russa e
estranhamente casada com um antigo companheiro de escola, que o seduz até à
submissão mais completa e à destruição do seu futuro casamento, para o rejeitar
e desprezar de seguida, como se o interesse por ele existisse apenas enquanto
resistia aos seus jogos de sedução. A verdade, contudo, é que esta experiência
de submissão erótica é uma revelação, uma revelação que tem como arquétipo a
sedução que Eva exerce sobre Adão e que conduz, na mitologia hebraica, à
expulsão da humanidade do paraíso. Neste caso, revela-se a fragilidade
ontológica do homem e a natureza facilmente corruptível da inocência. Também no
romance de Turguénev há uma revelação: a da fragilidade do primeiro amor, de um
amor ainda inocente, que não tem energia suficiente para resistir ao jogo da
sedução.
Sánin, depois da experiência arquetípica da degradação da
paixão erótica, torna-se pragmático e, durante a vida de adulto não é ao amor
que presta culto, mas aos seus negócios, que faz prosperar. A experiência desse
amor e da queda para que se deixa arrastar é narrada em forma de rememoração. O
que significa esta estratégia narrativa? Significa uma hiper-ficcionalização do
acontecido. Amor inocente e a paixão erótica são figuras da imaginação, são
ficções e como tal são descritas enquanto ficção de uma ficção. É esta
hiper-ficcionalização realizada pelo protagonista que, passados dezenas de
anos, lhe permite olhar de forma distanciada e restabelecer contacto com esse
primeiro amor, que seguiu também o seu prosaico caminho. É como se a ligação
com a realidade fosse impossível na experiência directa e imediata e exigisse o
distanciamento que a ficção impõe ao acontecido. Percebe-se, deste modo, que
apesar da aparência, o amor inocente e a submissão erótica possuem um raiz
comum. Nascem da ilusão propagada pela imaginação que afecta a forma como
interpretamos os nosso próprios desejos. As águas da primavera acabam por secar
no verão, mas quando chega o outono da existência emergem sublimadas do fundo
da memória. É esta que ordena e dá sentido ao heteróclito da vida, às múltiplas
tensões a que o desejo é submetido, às inúmeras experiências e expectativas a
que cada um é submetido.
Como em todas as verdadeiras obras literárias, em Águas da Primavera existe,
subjacente à narrativa, uma assumpção sobre o que é a literatura e,
fundamentalmente, a ficção. Só é possível ficcionalizar aquilo que já é uma
ficção. Tanto o primeiro e inocente amor como a queda no abismo da submissão
erótica não são factos brutos da existência, mas ficções. Ficções devem ser
entendidas como fabricações, produções do espírito. Elas são factos apenas no
sentido em que são fabricadas, feitas. É a natureza operativa e fabricada -
isto é, ficcional - presente nos acontecimentos narrados que permite a sua
ficcionalização enquanto literatura.
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