A generalidade dos romances acabam por se inscrever, de uma
forma ou de outra, na história dos homens. A Guarda Branca, de Mikhaíl Bulgákov, toma essa história não apenas
como pano de fundo longínquo, mas como o motivo central em torno do qual gira a
intriga. Não se trata, todavia, de um romance histórico, mas da exploração do
impacto da história na vida das personagens, os irmão Turbin, e da forma como
ela desconstrói e reconstrói as identidades individuais e testa crenças e
convicções, ao desagregar uma dada figura do mundo e fazer emergir uma outra,
radicalmente diferente daquela que parecia constituir a própria e única
realidade possível.
Os acontecimentos romanescos estão situados em Kiev, capital
da Ucrânia, em finais de 1918. Nestas paragens, o rio da história entregava-se,
naqueles dias, a grandes e perigosos redemoinhos, águas terríveis que nem o
inverno russo conseguia gelar. Acordes finais desse delírio de sangue, aço e
lama que foi a I Grande Guerra, onde a ordem que começara a desagregar-se em França,
nos anos que se seguiram à Revolução de 1789, encontrava a sua definitiva
certidão de óbito. Esse requiem, nas terras russas ou onde a influência
russa chegava, era acompanhado pelos acordes triunfantes dos hinos que o
exército vermelho, sem esquecer o sangue, o aço e a lama, fazia entoar,
acreditando estar na aurora do mundo. É a natureza excepcional do ano que abre
o romance: Era grande e terrível
aquele ano, o de 1918 após o nascimento de Cristo e o segundo após o começo da
revolução. Abundante de sol no verão e de neve no inverno; e dois astros
brilhavam muito altos no céu: a Vénus nocturna, estrela de pastores, e Marte
vermelho e trémulo.
Não é, todavia, a tensão entre o amor e a guerra que está em
jogo. A referência a Vénus funciona quase como um ideal longínquo naqueles dias
onde a presença de Marte era excessiva, preenchendo todas as forças anímicas
dos homens. A referência ao brilho de Vénus é, antes de mais, a indicação
daquilo que, secretamente, ecoava no coração humano. Os irmãos Turbin -
Aleksei, Elena e Nikolka - são partidárias da velha ordem czarista e vêem
com preocupação a frágil situação de Kiev. O amor encontra-se em estado de
suspensão. O governo do hetman Pavlo
Skoropadsky, um homem de mão dos ocupantes alemães, tenta congregar forças para
fazer frente à ameaça nacionalista ucraniana comandada por Simon Petlyura e,
também, ao exército vermelho. Os acontecimentos narrados centram-se nos dias em
que as forças nacionalistas ucranianas tomam conta de Kiev.
A fuga dos alemães e a cobardia do Estado-Maior do Exército
Branco deixam a cidade nas mãos dos nacionalistas. Bulgákov expõe
detalhadamente o conflito que cinde as forças leais ao czar e aos princípios
aristocráticos. O que se joga naquele turbilhão é menos o confronto militar mas
a desagregação do conceito central da ordem aristocrática, a honra. A honra e a
desonra jogam-se perante a adversidade, o inimigo e a morte. As chefias fogem
vergonhosamente, abandonando e traindo as forças leais à velha ordem. O
contraponto é dado pelos Turbin e alguns amigos. Contudo, se a cobardia
atraiçoa de forma infame homens, ideias e deveres, a honra surge já com um
valor inútil, pertencendo a um passado condenado a não voltar. As forças de
Simon Petlyura acabarão derrotadas pelo exército vermelho e pelos novos
valores, valores ainda em formação e retratados quase de forma surrealista,
como emergência de um sonho, e que trazem, por instantes, um novo sentido sobre
a terra.
A história surge assim como uma grande catástrofe natural. A
questão central é sobreviver sem perder demasiado a face, recompondo a vida,
até que ela, a vida, se esqueça de nós e dos valores que encarnámos e que,
possivelmente, guardámos como uma recordação de um passado morto, mas que se
visita nas horas de nostalgia. Um dos problemas que se podem colocar neste tipo
de narrativa é o da verdade. Será que a narrativa de Bulgákov retém a verdade
histórica dos acontecimentos? A questão tem dois aspectos. O primeiro diz
respeito à própria noção de verdade histórica. Se há coisa que é disputada em
história é o locus a partir
do qual se pode instituir um regime veridiccional que permita ajuizar da
verdade ou não das narrativas históricas – essas mesmas que pretendem o
estatuto de cientificidade. Este é um problema que pertence à epistemologia da
história ou a uma meta-história, não diz respeito ao romance.
Se narrativa romanesca e narrativa histórica se cruzam, como
é o caso de A Guarda Branca, o elemento desse cruzamento é o tempo e não a
verdade. São duas formas de tratar a temporalidade, de a estruturar através do
discurso. Seja qual for o princípio veridiccional que se adopte para julgar da
verdade das narrativas históricas ele será sempre estranho à ficção romanesca.
O facto de um romance ser ficção desliga-o de um compromisso com a verdade?
Será a verdade uma virtude apenas dos discursos científicos e cognitivos? A
resposta a ambas as questões é não. No entanto, o locus veridiccional da narrativa romanesca reside numa atitude
do leitor sublinhada por Coleridge: a suspensão da descrença. É esta atitude
que determina a verdade ficcional.
A verdade de A
Guarda Branca e dos acontecimentos que envolvem os irmãos Turbin não
se encontra na adequação da narração a factos supostamente ocorridos, mas na
capacidade que Bulgákov tem de levar o leitor a suspender a descrença na
narrativa. O que está em jogo não é se algo se passou daquela maneira, mas se
está narrado de forma a que se acredite que se poderia ter passado. É uma
questão artística e não factual. E Bulgákov, neste seu primeiro romance, é já
um artista consumado. Quem ler o episódio da milagrosa cura de Aleksei -
condenado à morte pela impotência da medicina - devido à oração de Elena à
Virgem, em momento algum sente qualquer necessidade de voltar a um regime de
verdade que questione o milagre. O conjunto de processos narrativos a que
Bulgákov lança mão constroem a verdade de uma ficção. A verdade ficcional é
também ela uma ficção, no sentido de uma fabricação que nos leve a suspender a
descrença e a confrontar-nos com o texto e, para falar à maneira de Paul
Ricoeur, o mundo que ele propõe; neste caso, olhar as metamorfoses de si-mesmo,
de vários si-mesmos, sob a tempestade da história.
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