Além (no original
francês, Là-bas) é um romance do
francês Joris-Karl Huysmans publicado em 1891 e consolida o corte com o
naturalismo estético iniciado em 1884 com o romance À rebours. Huysmans, nos seus primeiros romances, cultivou um
naturalismo estrito, de grandes preocupações sociais. O início de Além é marcado por uma discussão entre o
principal protagonista, Dutral, um escritor que troca o romance pela narrativa
histórica, e um seu amigo, o médico des Hermies, sobre a falência filosófica do
naturalismo, pelo encerramento deste nas questões sociais, na sua falta de
impulso para uma realidade sobrenatural. Este romance é o primeiro de uma
tetralogia que, de certa forma, acompanha, na personagem de Dutral, a conversão
do autor ao catolicismo romano.
Esta abertura para o sobrenatural começa, porém, pelo
negativo, pelo mal e o satanismo, numa espécie de retrato de Paris da época. A
questão que se coloca é a seguinte: como é que Dutral, e também ele teria sido
um escritor naturalista, transita das preocupações sociais para a preocupação
metafísica? A obra dá duas pistas. Por um lado, o abandono do romance e a sua
substituição pela narrativa histórica, uma biografia de uma figura dos finais
da Idade Média, Gilles de Rais, um dos grandes de França no XV, que foi acusado
de satanismo por ter torturado, estuprado e assassinado um grande número de
crianças. A história permite a Dutral dar o salto para um mundo, o mundo
medieval, que já há muito desaparecera. Por outro lado, o cansaço com a vida
social que conduz a uma certa busca de refúgio, a uma desilusão com o mundo da
literatura e com a própria sexualidade e os jogos a que ela submete os
indivíduos.
A reconstrução da vida de Gilles de Rais, toda ela marcada
pelo sobrenatural, tanto visto pelo lado da fé em Deus como da busca de um
pacto com o diabo, leva Dutral a interessar-se pelo tema do satanismo. Descobre
que este continua activo em Paris e que um certo cónego Docre, excomungado,
celebra missas negras. Deseja assistir a uma dessas celebrações. Consegue-o
através de uma admiradora que, a princípio, se mantém secreta, mas que acaba
por se envolver sexualmente com ele. Ela própria é uma admiradora de Docre e
uma participante nesse tipo de missas. A abjecção e a irracionalidade do
evento, porém, levaram-no a uma rejeição total do satanismo, deram-lhe ocasião
para romper com a amante e conduziram-no a uma certa libertação desse mundo de
súcubos e íncubos.
Na obra, esta relação com a dimensão negra é contrabalançada
pelos encontros que ele e o seu amigo médico têm com um tocador de sinos, na
casa deste, um homem de fé profunda que, a partir da sua profissão, elabora uma
espécie de metafísica que permite integrar o conjunto da vida sob o ritmo do
toque dos sinos segundo o ritual da Igreja Católica Romana. O tocar dos sinos é
a voz que, mesmo numa sociedade já claramente não cristã, permite ainda dar-lhe
um sentido marcado pelo cristianismo. Estes encontros, apesar da presença de um
astrólogo e do cepticismo de des Hermies e do próprio Dutral, são aberturas
pelas quais o catolicismo se vai insinuando, mas não mais do que isso, em
Dutral.
Pode-se assim perceber que o romance de Huysmans se inscreve num debate sobre a modernidade, essa modernidade que tem os seus fundamentos no Renascimento e na ruptura com a Idade Média. Dutral, contudo, não deixa de ser um moderno, pois procura no abrigo da quase solidão salvaguardar a sua individualidade perante a ameaça do social, todo ele marcado pelos negócios, pela política e, como sempre, pelo jogo sexual que absorve uma parte do tempo, dos pensamentos e da energia dos homens. Perante o peso do mundo com as suas exigências, os seus jogos e a sua alienação, Dutral busca refúgio. Refugiou-se em casa e na solidão, refugiou-se na Idade Média, ou no momento da sua decomposição. Refugiou-se numa busca do além perante o desgosto que o aqui e agora arrastam, com as suas misérias e o trágico da existência, para cima dos indivíduos, que agora, desligados das antigas castas sociais que lhes davam um lugar inquestionável e um sentido existencial, estão perdidos num mundo de indivíduos. Estes, curiosamente, como se percebe no final do romance, pelo vitoriar pela plebe de um político vencedor, o mais que podem desejar é fundir-se ululantes na massa. E é disso também que Dutral e os seus amigos fogem.
Pois ao acabar de ler Submissão de Houellebecq hoje mesmo, decidi conhecer Huysmans e de facto este Além, é um dos livros dele que me interessaram e dos muito poucos disponíveis para aquisição no site onde compro as minhas obras.
ResponderEliminarApesar do post ter a capa da edição portuguesa, eu li-o em francês. Como utilizo um eReader (o Kindle da Amazon) comprei as obras completas do Huysmans por pouco mais de 2 euros. Mas existem também ebooks dele gratuitos tanto para o Kindle como para o Kobo.
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