As velas ardem até ao
fim, romance publicado em 1942 pelo escritor húngaro Sándor Márai, parece
uma reflexão sobre a questão colocada por Aristóteles sobre a amizade entre
desiguais. Há, subjacente ao pensamento de Aristóteles, a questão da
reciprocidade. Para que uma amizade possa subsistir, na sua verdade, é
necessária a reciprocidade e esta só pode existir entre iguais.
O romance de Márai é uma longa reflexão sobre a amizade e a
sua impossibilidade na desigualdade. O livro é um exercício de rememoração da
relação entre Henrik, rico aristocrata e general, e Konrád, proveniente de uma
família polaca decadente. A amizade entre ambos começa no início da frequência
do colégio militar, por volta dos dez anos, e prolonga-se por mais 22 anos,
quando Konrád abandona o exército e, de um dia para o outro, desaparece,
instalando-se no Oriente e vagueando pelo mundo.
Passados quarenta e um anos, Konrád regressa ao castelo do
amigo para um longo jantar. Um quase monólogo de Henrik apenas entrecortado,
aqui e ali, por perguntas ou frases misteriosas do amigo. O monólogo é, em
primeiro lugar, a descrição – ou um libelo acusatório – da traição de Konrád à
amizade entre ambos. No dia anterior ao desaparecimento de Konrád, este terá
sentido um desejo intenso de assassinar o amigo. Além disso, manteve um
caso amoroso com Krisztina, a mulher do General. Konrad nunca desmente as
acusações, mas também nunca as confirma, como se tudo aquilo, passado tantos
anos, não fizesse já sentido.
A desigualdade entre os amigos – aquilo que supostamente
conduziu a traição de Konrád, e esta é mais o seu desaparecimento do que o
desejo do homicídio ou o caso amoroso – reside não no destino das duas famílias
de origem (uma nobre e pujante e a outra decaída), mas no facto de responderem
a ethos diferentes. Henrik
é um militar, na linha da velha aristocracia do império austro-húngaro. Konrád,
por seu lado, não tem espírito de militar, é meditabundo, com propensão para a
música e, ainda por cima, vagamente aparentado com Chopin. A desigualdade dos
amigos nasce no ethos que
os anima e dá forma ao carácter, como se entre o dever e a ordem militares e a
criação artística, com um princípio de anarquia subjacente, existisse uma
incompatibilidade estrutural.
Contudo, deve-se recolocar o romance na sua época. Publicado
em 1942, o monólogo rememorativo em que assenta a acção dramática mostra que
essa desigualdade pertence a um mundo que já terminou. O confronto entre dois
velhos não passa de cinzas de um mundo que ardeu até ao fim na Guerra de
1914-1918. Em 1942, era tempo de outra guerra, mas a única acção possível para
homens de mais de 70 anos é a reminiscência ou o silêncio, a constatação da
inutilidade de tudo, mesmo do rancor causado por uma amizade traída.
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