Um dos comentários mais correntes sobre o romance de Gombrowicz refere
a inexistência de cenas pornográficas em toda a obra. “No
sexual reality. Everything remains in acondition of sexual potential. It
is exactly this that Gombrowicz calls pornography.” Esta leitura
coloca, numa perspectiva muito aristotélica, a tensão romanesca entre o sexo em
acto e o sexo em potência, dado por um clima erótico que nunca se concretiza. A
pornografia seria, segundo esta perspectiva, esse estado potencial da
sexualidade que não se realiza, que suspende a sua consumação e evita tornar-se
efectiva. Uma leitura legítima. No entanto, vale a pena pensar mais
demoradamente sobre o vocábulo que dá título ao romance.
Pornografia significa “representação de elementos de cariz sexual
explícito, sobre tudo quando considerados obscenos…” (dicionário Porto
Editora). Se se descer à etimologia da palavra encontramos porno- (do
grego porné, prostituta)
“elemento de formação de palavras que traduz a ideia de prostituição”
(dicionário Porto Editora) e grafia que nos envia para a escrita, para a
representação de algo através da escrita. Isto significa a existência de, pelo
menos, duas camadas de sentido.
O nível mais superficial do vocábulo remete para representação
obscena, que fere a decência e o pudor, de uma sexualidade explícita. O nível
mais fundamental vê a pornografia como uma representação do comércio sexual, da
venda de favores sexuais. Estamos no domínio da troca, mas de uma troca
específica. Toda a relação sexual está fundada na troca, mas numa troca que
pressupõe uma certa reciprocidade nas coisas trocadas (prazer, afecto, amor,
etc.). O que prostitui a relação sexual é a introdução de um elemento estranho
à reciprocidade. Pode ser o dinheiro, mas também qualquer outro bem. Assim
aquilo que a origem etimológica da palavra sublinha como pornográfico não é a
prostituição, mas a representação dela, a sua grafia, o escrever sobre ela.
Pornográfico é escrever ou representar trocas sexuais ou de prazer, mesmo que
potenciais, assimétricas e sem reciprocidade.
O romance de Gombrowicz é pornográfico neste sentido último. É-o de
duas maneiras. A primeira do ponto de vista da narrativa propriamente dita. A
segunda, a partir da consideração sobre a natureza das obras de arte em geral.
De forma bastante sub-reptícia, o romancista deixa transparecer, na história
que narra, uma consideração sobre a própria arte enquanto atitude pornográfica,
não precisando de dizer uma única palavra sobre o assunto. Limita-se a escrever
o seu romance.
A história passa-se numa propriedade rural, na Polónia, aquando da
ocupação alemã. Para lá dirigiram-se, vindos de Varsóvia, dois amigos de meia
idade, um escritor e um encenador. Não se pense contudo que esse horizonte
político tem um relevo decisivo na construção da narrativa. Na verdade, os
parcos acontecimentos que têm a ver com a luta política – a perda de coragem de
um dos chefes da resistência e a necessidade de ser executado – são mobilizados
pela encenação e pela configuração da intriga pelos dois amigos, mas com fins
ligados aos seus desígnios pornográficos. O que está em jogo é a tensão erótica
entre os dois homens de meia idade e um par – Henia e Carol – de jovens de 16
anos. Estes nada têm a ver, do ponto de vista amoroso, um com outro. Henia está
noiva de um advogado, Waclaw, e ambos sentem-se quase como irmãos. Mas Witold e
Fryderyk, os dois amigos, descobrem, cada um por seu lado e através de indícios
que eles próprios imaginam, que os jovens são feitos um para o outro. O
hipotético amor entre ambos é uma criação literária de Witold (o nome próprio
de Gombrowicz) e uma encenação de Fryderyk, o encenador. O que está em jogo,
pelo menos numa primeira abordagem, é o modo como a arte – a do escritor e a do
encenador – pegam nos elementos que a vida fornece e configura uma nova
realidade de acordo com os desejos do artista.
O jogo de Witold e de Fryderyk está longe de ser inocente. Excluídos,
pela idade, do prazer que a beleza juvenil fornece, encontram na sua “produção”
o gozo erótico que a realidade lhes nega. Todas as manobras – na verdade,
verdadeiros exercícios artísticos – que visam a aproximação amorosa de Henia e
de Karol são representações de um erotismo que lhes foge. Como se percebe, há
uma assimetria instalada entre os fruidores e os objectos da fruição.
Os vários acontecimentos em que o candidato a marido de Henia se vê confrontado
com a traição desta são verdadeiras encenações, exercícios de pura
representação. E são de tal maneira representações cenográficas que Waclaw
sente a completa artificialidade das cenas, a sua falsidade, e ao mesmo tempo
pressente a traição de Henia, não no facto de haver uma relação sexual entre
ela e Karol, mas no jogo representacional a que se entregam, como se os jogos –
em aparência insólitos – transportassem uma carga erótica desmesurada, que a
idade dos participantes não poderia alguma vez sustentar. A traição não está no
acto, nem na sua possibilidade, mas na representação artificiosa desse mesmo acto.
Em nenhum momento do romance, Gombrowicz descreve uma cena sexual. A
pornografia não está nos actos. Tão pouco está no clima potencial que, a cada
momento, pode dar lugar ao exercício da sexualidade. Pornográfico é o jogo de
representações que os amigos, através de uma subtil manipulação dos
acontecimentos, produzem, explorando a assimetria entre os gozadores e
os objectos do gozo. Não há qualquer reciprocidade entre Witold e Frederyk e
Henia e Karol. A pornografia está toda na extracção de prazer através de uma
representação a priori desse
prazer e da manipulação da realidade de forma a que ela coincida com essa
representação. Na manipulação dos acontecimentos por parte dos dois amigos
encontra-se a assimetria que há entre o cliente e a pessoa prostituída. Assim
como pornografia significa literalmente a escrita, a grafia, de uma assimetria
na troca de prazeres eróticos, o que o romance encena é uma representação de
uma assimetria entre os dois homens de meia idade e os jovens objectos de
desejo, representação essa que se funda na invenção (mais uma representação) de
um desejo, o dos jovens um pelo outro, que não existia. Estamos sempre no
domínio das grafias, isto é, das representações e das ficcionalizações. Na
verdade, existe aqui uma revelação. Não há prazer que não seja ficção e
encenação, pura fabricação.
Por outro lado, Pornografia pode
ser lido como uma alegoria sobre a própria arte. Entre o artista e o consumidor
de arte (o leitor de romances, o espectador de uma peça teatral, para nos
fixarmos em dois exemplos da própria obra, os quais são extensíveis a todas as
áreas artísticas) existe uma relação assimétrica. A pornografia nasce do facto
do artista estar consciente dessa assimetria, de a representar e de querer que
a realidade corresponda a essa assimetria. Uma troca não assimétrica residiria
no facto de a cada narrativa recebida o leitor construir a sua narrativa e
oferecê-la ao escritor, a cada encenação assistida o espectador em vez de pagar
o bilhete produzir a sua própria encenação. Ora o mundo artístico implica a
diferenciação e a assimetria. Implica que uns sejam activos, produtores de
obras de arte, e outros receptores passivos. Sem esta assimetria a arte não
poderia existir. Pornográfico, no entanto, não é a mera assimetria, a falta de
reciprocidade entre autor e receptor, mas a representação que o artista faz
dessa situação e o prazer que daí retira. Pornografia é a consciência de que se
proporciona um dado prazer através de uma fabricação – a obra e arte – que
requer e mantém a diferença absoluta entre o criador e aqueles que recebem – ou
pagam – os artefactos criados.
Witold Gombrowicz (2012). Pornografia. Alfragide: D. Quixote. Tradução do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz