O que surpreende na novela de Tolstoi, A Sonata de Kreutzer (geralmente, o título é A Sonata a Kreutzer), será
menos o tema tratado - o ciúme - que a questão da confissão e as implicações
que esta possui. Aparentemente, tudo gira em torno da vida de um casal que, desde
muito cedo, descobre a tensão entre o prazer físico que proporcionavam um ao
outro e a insuportabilidade da vida comum. Nesta tensão, o ciúme do homem tem
um papel preponderante. A estratégia narrativa da novela assenta no relato da
confissão, feita numa viagem de comboio, do protagonista ao narrador. Todo o
relato é um exercício confessional, onde a alma torturada do que se confessa se
exterioriza e se mostra numa tentativa para alcançar a verdade dos seus actos
(desde as cenas de ciúme até ao assassinato da mulher).
Apesar de juridicamente absolvido (um crime de honra ainda permitido
naqueles dias), o espírito do homem sente uma compulsão terrível para a
exteriorização. A confissão não é, pelo menos em primeiro lugar, a busca de uma
absolvição ou de uma compreensão de outrem. Ela é a objectivação da vida, o
torná-la exterior para a poder captar na sua realidade objectiva. Confessar-se
é projectar para fora de si aquilo que é do foro íntimo, trazê-lo para o espaço
público, aliená-lo da vida interior, para o poder captar sossegadamente - não
por acaso, o protagonista adormece após a confissão - e, no estranhamento assim
conquistado, afastar de si uma parte de si.
O génio de Tolstoi evidencia-se, nesta novela, de múltiplas maneiras,
desde a descrição das cenas de ciúme até à caracterização das personagens,
passando pela exposição das concepções ideológico-sociais daquele que se
confessa. O mais interessante, porém, é o jogo da confissão estar assente todo
ele na não confissão. Na hora da morte, no momento em que o protagonista
esperava a confissão da mulher, do reconhecimento que teria havido uma traição
e que tudo aquilo não era apenas o fruto de uma imaginação exacerbada, ela não
o faz. O segredo - mesmo que fosse o segredo de não haver qualquer segredo -
não foi revelado, ficou fechado na vida íntima da mulher, e nem mesmo a
iminência da morte a conduziu à necessidade de se exteriorizar num acto
confessional.
Publicidade e intimidade confrontam-se, deste modo, na novela de
Tolstoi, como modos eminentemente diferenciados de conviver consigo mesmo. A
confissão é uma invenção masculina e responde a essa necessidade de publicar
para suportar, e suportar porque compreende aquilo que agora se tornou público
e estranho. A razão justifica, apaga e apazigua. Na mulher tudo é mais secreto,
tudo fica fechado no coração. E isto apenas pelo motivo de que a verdade, a sua
verdade, é irrevelável. Não porque a queira ocultar, mas porque não há maneira
de a tornar pública. A verdade masculina é sempre confessável; a feminina é
sempre secreta. Os homens até a vida íntima precisam de torná-la exterior. As
mulheres, mesmo as mulheres públicas, só possuem vida interior.
Lev Tolstói (2007), A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.
Lev Tolstói (2007), A Sonata de Kreutzer. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.
Leitura interessante.
ResponderEliminarAbraço
Muito obrigado.
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