segunda-feira, 28 de abril de 2025

Marlen Haushofer, A Parede


Publicado em 1963, A Parede é o romance mais conhecido de Marlen Haushofer (1920–1970), escritora austríaca cuja obra explora a solidão, o isolamento e a condição humana perante a fragilidade da existência. A obra é a experimentação literária de um cenário hipotético, uma experiência de pensamento para explorar a condição humana. A protagonista – sem nome na história – está de visita a uma casa de campo de uns primos. À noite, eles saem para ir à aldeia. Quando ela de manhã acorda, depara-se com um cenário inesperado: uma parede transparente e inexpugnável tinha aparecido, separando-a do resto do mundo. Fica isolada, apenas na companhia do cão da família e de alguns animais. Compreende que qualquer coisa se passou do outro lado da parede, de onde a vida terá desaparecido.

Um dos testes que o romance faz está relacionado com a natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona: e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado, a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós, qualquer outro ser humano.

A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical. Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu. Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar, que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.

Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história. Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a disputa interminável entre homens e comunidades.

Esta saída da história e a perda de sentido do calendário põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará, nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido. Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha consciência dessa temporalidade.

Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir, nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.

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